quinta-feira, 14 de junho de 2018

A realidade esquizofrenizada (Ricardo Rangel)

Caminhoneiros e transportadores conseguiram subsídio, controle de preços e cartel. O setor privado, que reclama do ambiente de negócios e da complexidade tributária, agrava o ambiente e aumenta a complexidade. E o governo, que persegue o ajuste fiscal e a retomada do crescimento, inviabilizou o ajuste, derrubou a perspectiva de crescimento e fez o dólar disparar (o que aumenta o preço do diesel).
Os donos dos postos dizem que para repassar o subsídio, só reduzindo o ICMS (o setor privado, que reclama... etc.). Os contratantes dizem que, nesse preço, não dá para contratar. Nem os transportadores gostaram: parece que com a tabela da ANTT fica mais barato transportar explosivo do que leite (o governo revogou a tabela, depois revogou a revogação).
A confusão nos transportes ofuscou, talvez, a notícia de que o Brasil teve, em 2016, 62 mil mortes violentas, num aumento de 6% sobre o ano anterior.
A equivocada e fracassada política de combate às drogas está na raiz da violência, mas a direita, que é quem mais se queixa do problema, recusa-se, com o auxílio das igrejas católica e evangélicas, a sequer falar do assunto. Cigarro, cachaça e rivotril, pode; maconha, não pode. Por quê? Mistério. Gente que tem dependente na família defende uma legislação que não poupou seu parente da dependência, mas pode lhe dar o inferno do encarceramento.
A esquerda reclama da violência e da corrupção da PM, mas torce o nariz para investimentos que a tornem mais técnica e menos brutal, e opõe-se à intervenção, que visa a depurá-la. A direita, que exige ordem acima de tudo, parece apoiar a PM de forma cega, e seus setores mais radicais defendem a insubordinação militar (a desordem absoluta) e votam num candidato que defende tortura (a ilegalidade suprema).
Só educação eleva o nível socioeconômico da população, mas a esquerda, que denuncia as condições de vida do povo, é contra premiar bons professores, o que melhoraria o ensino. O crime é aliado dos baixos níveis de escolaridade, mas a direita, que reclama do crime, não reclama do ensino deficiente.
A esquerda defende os direitos humanos, mas parece crer que há humanos mais humanos do que outros; a direita parece crer que há humanos e subumanos, e que a PM sabe quem é quem. A esquerda denuncia que os presos vivem amontoados, mas, opõe-se à construção de presídios, o que melhoraria a situação.
Está provado que quanto mais criminosos leves prendemos, mais violência criamos (quem entra em presídio sempre adere a uma facção criminosa), mas a direita quer prender até os ladrões de galinha. Já a esquerda parece querer soltar até os assassinos seriais. Resultado: prendemos quem deveria ficar solto e deixamos solto quem deveria estar preso.
Outra notícia ofuscada pela crise dos transportes foi a divulgação do Plano Estratégico da Intervenção Federal: o combate ao crime deve custar, nos próximos dez meses, um bilhão de reais. O Rio ainda não recebeu um tostão (e ninguém sabe se ou quando vem esse bilhão), mas o setor de transportes vai receber, em apenas dois meses, dez vezes mais do que nós. Cada país escolhe suas prioridades.
Quem disse (Deleuze?) que “é preciso esquizofrenizar a realidade” deveria vir ao Brasil.
Esta semana faz três meses que Marielle foi assassinada.
Fonte: O Globo (11/06/1*)

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