O sucesso da atuação das Forças Armadas no comando da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), que se encerrou no ano passado ao completar 13 anos, faz com que uma ação semelhante nas favelas brasileiras, especialmente no Rio, seja considerada possível.
As experiências brasileiras estão sendo base para treinamentos e cursos no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil Sérgio Vieira de Mello, o que faz do Brasil referência internacional na preparação de pessoal qualificado, militar e civil, para a execução de missões de paz. Mas há diferenças fundamentais que precisam ser avaliadas.
Recentemente, num seminário internacional realizado no Centro de Instrução dos Fuzileiros Navais, onde foi feito um balanço desses 13 anos de atuação da Força de Paz, muitas questões foram levantadas a esse respeito. Há diversos oficiais, como o General Augusto Heleno, que comandou a missão de paz da ONU no Haiti durante um período, que não têm dúvida de que as tropas brasileiras estão preparadas para uma atuação interna desse tipo.
Ele me disse certa vez, anos atrás, ao fazer um balanço da atuação no Haiti, que nossos soldados são quadros profissionais que tiveram uma experiência que, no Brasil, não teriam jamais uma vivência real de combate, trocando tiro, aprendendo a reconhecer o terreno, dominando o medo. Mas há diferença marcantes, e a primeira é o aspecto político, porque no Haiti os soldados brasileiros trabalhavam sob a égide da ONU, com regras de engajamento bem definidas e bem compreendidas pelas tropas.
Depois desses anos todos, com troca de contingentes a cada seis meses, o treinamento foi feito de maneira bastante sofisticada. O contingente que viajaria era treinado nos seis meses anteriores exaustivamente, de modo que já chegavam lá conhecendo bem todas as normas. Cada um sabia o que podia fazer. Ao contrário, no Brasil, o poder de polícia do Exército é muito limitado. O temor de que os soldados possam ser expostos a uma condenação por causa de uma operação foi em boa parte superado pela lei sancionada em outubro passado pelo presidente Michel Temer, que transfere para a Justiça Militar o julgamento de militares que cometerem crimes contra civis nas chamadas missões de “garantia da lei e da ordem”.
Também caberá à Justiça Militar julgar os crimes praticados durante o cumprimento de atribuições estabelecidas pelo governo, ou quando envolver a segurança de instituição ou missão militar, mesmo que não beligerante. Nas regras do ato de engajamento da Missão de Paz da ONU, há referências expressas aos cuidados com danos colaterais, e a ação tem que ter proporcionalidade de forças.
Os militares, sempre que questionados sobre essas missões, afirmam que não pensam em tomar o lugar da polícia, que é mais adestrada para esse tipo de operação, conhece a bandidagem. O que querem é assumir o comando da operação e coordená-la, de maneira a que todos trabalhem com a sua habilidade. Esse foi um dos maiores problemas das recentes operações das Forças Armadas no Rio, pois a coordenação entre elas, as Polícias Civil, Militar, e Rodoviária sempre foi problemática.
Há também uma diferença fundamental entre o tipo de criminosos nas favelas de Porto Príncipe e as do Rio. Lá o tráfico de drogas é mínimo, a defesa de posições dos traficantes do Rio é muito mais forte e os armamentos, mais pesados. Eles estão defendendo um comércio que rende muito dinheiro e a reação é muito mais violenta. Porém, para Fernando Gabeira, que como deputado federal esteve no Haiti acompanhando a primeira fase de conquista de Bel-Air, a fórmula não é muito complicada de replicar no Rio. Ele me disse na ocasião, relato que publiquei na coluna, que no início era muito difícil fazer operações conjuntas com policiais do Haiti, “pois eles avisavam os bandidos. Tiveram que apreender os telefones celulares deles e impor uma ordem”.
Bel-Air estava totalmente fechada pelas gangues, que não têm relação com o narcotráfico, que é incipiente, mas são forças populares treinadas e armadas pelo presidente deposto Jean Marie Aristides e que partiram para uma ocupação territorial com componente político e muito de bandidagem mesmo, como sequestros-relâmpagos e assaltos.
Para Gabeira, o mais importante “foi uma série de ações para substituir o governo. Os soldados que faziam a patrulha entraram em contato com a população recolhendo o lixo. A população levava o lixo para um ponto e jogava, ficavam montes muito altos e perigosos para a saúde. Além do mais, os montes de lixo serviam de trincheira para os bandidos. Depois do recolhimento do lixo, os soldados tiveram condições de expulsar os bandidos com o apoio da população. Contrataram uns meninos para fazer alguns trabalhos, de intérprete, ensinaram português a outros”.
Gabeira acha que “a chance de dar certo aqui é muito grande. Se você se coloca para as comunidades, depois de ocupar, com o governo em ação, tem o reconhecimento e o apoio”. Ele lembra que a atuação das tropas jordanianas em Cité Soleil, antes de os brasileiros assumirem o comando das ações na maior favela do Haiti, é prova de que “ocupação só não resolve. O Brasil construiu escolas, implantou programas esportivos, fez cisternas que possibilitaram o acesso à água. Fizeram toda uma política de assistência social e de melhoria de infraestrutura elementar que viabilizou o êxito”.
Cité Soleil, uma favela plana onde vivem 300 mil pessoas em condições de muito mais miséria do que os nossos favelados, segundo depoimento generalizado, só foi considerada oficialmente ocupada pelas forças da missão da ONU depois de três anos de presença das tropas multinacionais no país e de um ano de cerco pelas tropas brasileiras.
O sociólogo Rubem César Fernandes, do Viva Rio, que trabalha no Haiti em contato direto com a ONU, foi chamado porque os primeiros militares que lá chegaram acharam que a situação era parecida com a do Rio, e lembraram-se da experiência da ONG nas favelas. Assim como nas favelas cariocas, facções lutam pelo território. Lá havia quatro comandos que se enfrentavam. O Viva Rio promove projeto de reabilitação urbana de Bel-Air, área do século XVIII um pouco parecida com Nova Orleans. A inspiração foi a Lapa.
Recuperar uma área que tem história forte de cultura local, onde o carro-chefe seria a boemia: comida, música, dança, artesanato, explica Rubem Cesar. Bel-Air está dominada, do ponto de vista militar. As gangues, desde julho de 2005, não entram em confronto direto com o Exército, mas ainda há conflitos.
As experiências dos militares brasileiros e outros atores desse trabalho mostram que, para exercer o efetivo controle onde há bandidagem, é preciso entrar e permanecer. Encontrar um ponto forte, e a partir daí fazer o patrulhamento e efetivamente controlar a área. Com isso se conquista a confiança da população. Onde entrar a repressão, tem que entrar a construção, costumam dizer. O general Heleno afirmou na ocasião que, “se continuar a ausência do Estado, vamos continuar tendo a situação que vivemos no Rio, onde se faz uma operação, há troca de tiros, morre gente, e depois sai. Aí o bandido fala para a população: ‘estão vendo, eles não são capazes de ficar, quem fica somos nós. Se vocês ficarem do lado deles, nós massacramos vocês.’ Isso nós aprendemos no Haiti”.
O apoio da companhia de engenharia, que atua junto com a tropa, foi fundamental para prestar serviços básicos para a população: cavar poço artesiano, arrumar escola, asfaltar rua, instalar posto de saúde. A população passou a se aproximar da tropa, ressaltam sempre os militares. Essa capacidade de agregação demonstrada pelas tropas brasileiras transformou-se num ativo importante da nossa política externa. No seminário internacional organizado para fazer um balanço dos 13 anos da atuação brasileira à frente da força de paz no Haiti, que teve o patrocínio da Academia Brasileira de Letras e da PUC-Rio, o historiador José Murilo de Carvalho, meu colega da ABL, ressaltou essa capacidade brasileira, embora tenha firmado sua posição contrária à participação das Forças Armadas em ações internas de caráter policial. Para ele, a missão que durou 13 anos constituiu experiência inédita para o país em termos de dimensão, duração e comando das operações.
O reconhecimento internacional da capacitação dos “pacificadores” brasileiros fez com que recuperássemos “um pouco nossa imagem no exterior e nossa autoimagem em casa”, comentou José Murilo de Carvalho. Para ele, “todos os que acompanharam, mesmo que superficialmente, a atuação brasileira no Haiti devem ter sentido algum orgulho pelo trabalho lá realizado por nossos compatriotas. Em um país devastado pela violência, pela miséria, pela fome e por desastres naturais, militares e civis, homens e mulheres, órgãos públicos e ONGs, com destaque para o Viva Rio, souberam recorrer a um rico arsenal de procedimentos que iam muito além do simples uso da força. Houve grande esforço de dialogar com o povo haitiano, de mostrar empatia, de respeitar a cultura local, inclusive a religiosa”.
Para José Murilo, “é difícil não se comover diante de cenas em que brasileiros, fardados ou não, brincam com crianças, distribuem presentes, organizam festas, ensinam música e futebol, participam de cultos de vodu. Minha impressão é que levamos para o Haiti o melhor de nós mesmos, que transportamos para lá o que nos parece fazer falta aqui hoje”.
Ao abordar no mesmo seminário a atuação do Brasil, chamei a atenção para como o “soft power” passou a ser um instrumento fundamental de nossa politica externa a partir da atuação de nossas Forças Armadas nas missões da ONU. Expressão cunhada pelo cientista político Joseph S. Nye Jr, professor de Harvard com larga experiência dentro da máquina administrativa do governo dos Estados Unidos — trabalhou nos governos Carter e Clinton, nas secretarias de Estado e de Defesa —, o “soft power” seria uma terceira dimensão do poder, superando em certas ocasiões o poder econômico e o militar.
Num mundo multipolar, esse “poder suave”, cultivado nas relações com aliados, na assistência econômica e em intercâmbios culturais, resultaria em uma opinião pública mais favorável e maior credibilidade externa. No governo Obama o “soft power” teve mais importância na política externa americana, enquanto hoje o governo Trump dá mais valor à confrontação militar e ao poder econômico.
As missões de paz seriam uma maneira de o Brasil dar relevância ao seu “soft power”, que é a capacidade de ser relevante na região em que é líder natural. Desde que assumiu em 2004, a pedido dos Estados Unidos, o comando da Força de Paz da ONU no Haiti, o governo brasileiro vinha fazendo gestões junto aos organismos internacionais, inclusive a própria ONU, para que se empenhassem com mais vigor na recuperação do país mais pobre do Ocidente, com programas de ajuda humanitária, mais apoio de forças de outros países, máquinas para limpar as ruas, dinheiro para programas sociais.
A estratégia de passar a prestar serviços básicos à população, depois de dominar as partes de Porto Príncipe que estavam controladas por gangues, foi fundamental para o êxito da força internacional de paz que o Brasil comandou no Haiti. O clima de simpatia em relação aos militares brasileiros passou a predominar, consolidado pelo Jogo da Paz, em que a seleção brasileira se apresentou no Haiti. Até bem pouco tempo atrás, era comum ver bandeiras brasileiras pintadas nos muros da cidade, e crianças com camisas da seleção.
A necessidade de maior financiamento está explícita justamente nessa estratégia de dominação do território, onde o combate às gangues tem que ser seguido de uma atuação social imediata, levando escolas, postos de saúde, delegacias de polícia à população. Da mesma forma que acontece nas favelas cariocas dominadas pelos traficantes, cuja ação falha, como falhou, se não houver depois a ocupação “do bem”, com o cumprimento efetivo do que se espera do Estado.
A experiência do Exército brasileiro no Haiti é considerada algo que tem sido efetivamente inovador no campo militar, por não se limitar à tarefa de polícia, e dar aos militares treinamento em uma nova forma de atuação que pode ser útil em outras operações. Como a que começa agora no Rio.
Fonte: 17/02/18)