O ano começou e as nuvens continuam carregadas. O País segue sem perspectivas, a polarização permanece a confundir, tirando força e clareza da sociedade, dos governos e do Estado. A recessão se fixou, a inflação promete crescer. A exasperação social está nas ruas.
A Lava Jato mantém-se como fator mais explosivo. Ainda que concentrada em apurar falcatruas dos atuais grupos governantes (PT e PMDB), a operação ameaça atingir também o PSDB, num movimento que, se tiver continuidade, porá em xeque todo o sistema político. Como reação, os agentes políticos buscam ativar seus arsenais para prejudicar os adversários, impactar a opinião pública e ganhar tempo. Independentemente de se saber onde está a verdade dos fatos, mergulhamos no reino puro da pequena política, que cola fácil na fase de miséria política e espetacularização midiática em que estamos.
O momento é propício à reflexão crítica, a iniciativas que busquem criar zonas mínimas de consenso, um entendimento que “civilize” a competição política e produza soluções. Apostar no aguçamento do conflito como se ele, por si, trouxesse um futuro mais risonho nas mãos ou maior sucesso eleitoral é insistir em mais do mesmo, atitude conservadora que não levará a lugar nenhum.
Tanto para o governo quanto para a oposição, para o Estado e a sociedade civil, muito mais inteligente seria agir para radicalizar aquilo de que mais se necessita: a qualificação da democracia, a melhoria de seu funcionamento institucional, a correção de suas insuficiências, a recomposição ou revisão do presidencialismo, a reforma do sistema político. Ou nos convencemos de que o arranjo existente não é adequado, ou seguiremos em marcha batida para o despenhadeiro. Sem mudança, manteremos nossa vidinha nacional de segundo escalão, nem tanto ao céu nem tanto à terra. O País não acabará, mas correrá o risco de perder o bonde.
Recuos táticos, reconhecimento da força dos adversários e da sua própria fraqueza relativa, busca de atalhos que evitem as áreas de conflagração aberta fazem parte do estoque de recursos de todo Estado que deseja agir sobre o mundo. Capitulações são indignas dos Estados que acreditam em si. Sua força nasce de dentro: quanto mais coesa uma população, quanto mais os cidadãos compartilharem uma concepção de vida coletiva, mais poder terá um Estado – e seus governos – de agir, para fora e para dentro de seu território.
Não estamos falando de guerra, mas de política. Quem hoje se preocupa em oferecer aos brasileiros uma plataforma para a ação coletiva? Há muita movimentação das partes sociais, mas pouco diálogo entre elas e nenhuma proposição abrangente. Cada movimento tem sua pauta específica, seu estilo, sua narrativa. Os partidos se tratam como se fossem diferentes entre si, mas não expressam distintos interesses sociais e correntes ideológicas. Seus objetivos são tópicos, convenientes, sem densidade programática. Buscam atrair simpatizantes, mas não lhes dão nenhum direcionamento inteligente. As “campanhas” são sempre contra, desejam quebrar as pernas de ídolos e mitos, não lançam ideias.
A “judicialização” em curso é um efeito colateral do fracasso da política. Paradoxalmente, o cerco que juízes e promotores fazem aos políticos e aos partidos “deslegitima” aquilo que está instituído e é, ao mesmo tempo, uma janela de oportunidade para a renovação política.
Não há uma direita que se organize homogeneamente, a própria esquerda está estilhaçada. É puro nonsense afirmar que todos os poderes fáticos se voltaram contra um governo de esquerda, que estaria cercado por capitalistas e neoliberais salivando sangue, por uma mídia golpista e uma classe média sedenta de vingança.
A disputa política está sem dignidade, encharcada de oportunismo.
A discussão sobre o impeachment fez a política chegar ao limite do suportável, em que as opções se reduzem dramaticamente. Ajudou a clarear o quadro, a definir melhor o campo de batalha. A consequência mais lógica disso, porém, não se produziu. Continuamos necessitados de um programa de ação que se organize em torno de uma política democrática que não só pressione para que o governo passe a governar, como exija que ele e seus apoiadores proponham um pacto político aos adversários e ajudem a pacificar a sociedade. Às oposições, idênticas exigências: passem a pensar no todo e menos em seus botões.
Somente uma política democrática radical pode dar um rumo ao País: reformar a política, isolar os reacionários, afastar os medíocres, os oligarcas, os corruptos e os fisiológicos de todos os partidos, tirar a luta de classes da intransparência, dar espaço às vozes democráticas, recompondo assim o Estado como ator administrativo e comunidade política. Não se trata de “salvar a Nação”, mas de desenhar um futuro, obra complexa que exige tempo, concentração de esforços e agregação de ideias.
Radicalizar é ir ao essencial, à raiz das coisas. Radicalizar a política democrática é fazer com que a democracia possa ser vivida de modo pleno.
Hoje estamos sem um sistema político funcional. A classe política está desorientada, há um déficit brutal de lideranças. A personificação e a falta de escrúpulos para travar os embates bloqueiam as saídas. Os partidos não são confiáveis, não expressam interesses sociais claros. Governo e oposição são polos protocolares: não referenciam a sociedade e por isso não surgem como efetivas opções políticas. Olhamos todos para o STF, o Ministério Público e a Lava Jato simplesmente porque o sistema político evaporou e rompeu relações com a sociedade civil. O troca-troca de acusações só serve para o governo dizer que não pode governar com um “golpe” em marcha e para a oposição justificar sua incapacidade de planejar o futuro.
Uma política democrática que vá às raízes do sistema e o ponha de ponta-cabeça se tornou necessidade estratégica.
(*) Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp
Fonte: O Estado de S. Paulo (27/02/16)
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