segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

As campeãs dos campeões (Luiz Carlos Azedo)

As investigações da Operação Lava-Jato estão desnudando as estranhas do “capitalismo de Estado” brasileiro e revelam sua simbiose com as ambições políticas do PT, no sentido de se perpetuar no poder e projetá-lo no âmbito da América Latina e da África Ocidental, Central e Austral, a partir da atuação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de suas relações com partidos de esquerda e governantes dos dois continentes. Fica cada vez mais evidente que duas das maiores empresas brasileiras, a Petrobras e a Odebrecht, mas não apenas, foram utilizadas para financiar esse projeto.
Por isso mesmo a atuação internacional do marqueteiro do PT, João Santana, e de sua esposa e sócia, Mônica Moura, em campanhas eleitorais de Angola, Argentina, El Salvador, Panamá, Venezuela e República Dominicana merece avaliação que extrapola o aspecto criminal, ou seja, o esquema de desvio de recursos da Petrobras e a atuação da Odebrecht no financiamento de campanhas eleitorais no Brasil e no exterior. Há que se discutir o modus operandi do modelo econômico adotado para compreender a sua resiliência e degeneração, uma vez que ele determina o modelo de acumulação das empresas envolvidas e não apenas o patrimonialismo dos políticos que lhe deram sustentação e o enriquecimento pessoal de seus operadores.
Além disso, está evidente que o modelo é incompatível com as regras do jogo democrático. Essa discussão é importante porque a presidente Dilma Rousseff está movendo mundos e fundos para salvar as empresas envolvidas no escândalo e o próprio modelo, a pretexto de preservar empregos e a engenharia nacional, quando sabemos que há dezenas de outras empresas que poderiam substituí-las nas mais diversas áreas.
O modelo
As condições para a chamada “nova matriz econômica” como resposta brasileira à crise mundial, ironicamente, foram estabelecidas no governo de Fernando Henrique Cardoso. Com as privatizações do setor produtivo estatal, o governo trocou seu controle na maioria das empresas por uma participação minoritária. Durante o governo Lula, porém, graças aos fundos de pensão dos trabalhadores dessas empresas e à ocupação de posições estratégicas no aparelho de Estado, o PT passou a ter grande influência nos seus investimentos e nos de centenas de outras empresas e negócios.
O modelo brasileiro não foge à regra histórica. Funciona a partir da fusão dos interesses privados com as agências do Estado encarregadas de normatizá-los e controlá-los, um convite aos desvios de finalidade e à corrupção. Quando surgiu, o capitalismo de Estado foi uma via de industrialização para países que ficaram fora da segunda revolução industrial, como os dominados pelo fascismo na primeira metade do século passado, e os regimes comunistas surgidos no pós-guerra.
Na América Latina, o modelo emergiu com o populismo no México, na Argentina e no Brasil, principalmente na década de 1950, mas também prestou serviços aos regimes militares, durante a Guerra Fria, nas décadas de 1960 e 1970. Entre nós, renasceu das cinzas durante o governo Lula, a partir do momento em que o governo optou por um modelo de expansão acelerada da economia com base no consumo e, ao mesmo tempo, passou a protagonizar uma política da concentração de capital e formação de monopólios com o objetivo de projetar internacionalmente algumas grandes empresas brasileiras, os chamados “campeões nacionais”.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e os fundos estatais de pensão passaram a investir pesado em empresas de diversos setores, desde mineração até produção de alimentos. Além disso, estimularam e financiaram fusões em áreas como telecomunicações e produção de celulose. Por trás dessa estratégia, há um projeto de poder que ultrapassa as fronteiras nacionais, a ponto de pôr o Itamaraty a serviço das alianças do PT com partidos e governantes da América Latina e na África, além dos negócios que financiam essa política e seus atores.
O símbolo do modelo passou a ser a Petrobras, com o bilionário programa de investimentos na exploração de petróleo da camada pré-sal, que estava muito acima das suas possibilidades. O modelo se estendeu também ao setor elétrico, com o fortalecimento da Eletrobras. A intervenção do governo federal resultou, porém, em desastres financeiros e escândalos de corrupção. A mesma estratégia foi adotada na área da mineração, onde a Vale amarga déficits astronômicos. Mas foi a Odebrecht, a gigante do setor privado, que apostou todas as fichas no “capitalismo de Estado”.

Fonte: Correio Braziliense (28/02/16)

É o fim do caminho (Fernando Gabeira)

“A liberdade é vermelha”, escreve num post de Paris Mônica Moura, mulher do marqueteiro João Santana. É uma alusão a uma trilogia de filmes inspirados nas cores da bandeira francesa. O primeiro deles se chamou “A liberdade é azul”. É compreensível que Mônica Moura tenha escolhido o vermelho entre as cores da bandeira. E que tenha escolhido a liberdade do lema da Revolução Francesa, que também conta com fraternidade e igualdade.
João Santana e Mônica ficaram milionários levantando a bandeira vermelha, no Brasil, na Venezuela, com as campanhas agressivas do PT e do chavismo. Com os bolsos entupidos de dólares, a liberdade é vermelha, pois à custa da manipulação dos eleitores latino-americanos, João Santana e Mônica Moura podem viajar pelo mundo com um padrão de vida milionário.
Mas chega o momento em que a cadeia é vermelha, e Mônica Moura não percebeu essa inversão. Nas celas da Polícia Federal e do presídio em Curitiba, o vermelho predomina. José Dirceu, Vaccari, o PT é vermelho. Marcelo Odebrecht, a Odebrecht é vermelha, basta olhar seus cartazes.
Uma vez entrei na Papuda e filmei uma cela vermelha com o número 13. Os condenados do mensalão estavam a ocupar o presídio. A divulgação da imagem foi um Deus nos acuda, insultos: as pessoas não têm muita paciência para símbolos. Mônica Moura fala esta linguagem. Se tivesse visto o take de seis segundos da cela vermelha, ela iria buscar outra cor para a liberdade.
A situação de Dilma e a do chavismo convergem para um mesmo ponto: tanto lá quanto aqui a aspiração majoritária é derrubá-los do poder. João Santana, num país onde se valoriza a esperteza, foi considerado um gênio. Gênio da propaganda enganosa, dos melodramas, dos ataques sórdidos contra adversários. O único critério usado é a eficácia eleitoral avaliada em milhões de dólares, certamente com taxa extra para os postes, Dilma e Haddad.
Sua obra continental se espelha também no resultado dos governos que ajudou a eleger: Dilma e Maduro são rejeitados pela maioria em seus países. O que aconteceu na semana passada é simplesmente o fim do caminho. Com abundantes documentos, cooperação dos Estados Unidos e da Suíça, não há espaço para truque de marqueteiros.
O dinheiro de Santana não veio de fora. Saiu do Brasil. Saiu de uma empresa que tinha negócios com a Petrobras, foi mandado para o exterior por seu lobista Zwi Skornicki. E saiu também pela Odebrecht.
A Lava-Jato demonstrou que a campanha de Dilma foi feita com dinheiro roubado da Petrobras. E agora? Não é uma tese política, mas um fato, com transações documentadas.
Na semana passada ouvi os panelaços por causa do programa do PT. O programa foi ao ar um dia depois da prisão de João Santana. Mas o tom era o mesmo, uma mistificação para levantar os ânimos. E um pedido de Lula: parem de falar da crise que as coisas melhoram.
Em que mundo eles estão? Em 2003, já afirmei numa entrevista que o PT estava morto como proposta renovadora. Um pouco adiante, com o mensalão, escrevi “Flores para los muertos”, mostrando como uma experiência que se dizia histórica terminou na porta da delegacia.
Na semana passada, escrevi “O processo de morrer”. Não tenho mais saída exceto apelar para “O livro tibetano dos mortos”, que dá conselhos aos que já não estão entre nós. O conselho é seguir em frente, não se apegar, não ficar rondando o mundo que deixaram.
Experimentei aquele panelaço como uma cerimônia de exorcismo: as pessoas saíam às janelas e varandas para espantar fantasmas que ainda estavam rondando as casas. Poc, poc, poc. Na noite escura, o silêncio, um grito ao longe: fora PT. E o PT na tela convidando para entrar nas fantasias paradisíacas tipo João Santana, já trancafiado numa cela da PF em Curitiba.
Simplesmente não dá para continuar mais neste pesadelo de um país em crise, epidemia de zika, desemprego, desastres ambientais, é preciso desatar o nó, encontrar um governo provisório que nos leve a 2018.
De todas as frentes da crise, a que mais depende da vontade das pessoas é a política. Se o Congresso apoiado por um movimento popular não resolver, o TSE acabará resolvendo. Com isso que está aí o Brasil chegará a 2018 como um caco, não só pela exaustão material, mas também por não ter punido um governo que se elegeu com dinheiro do assalto à Petrobras.
É hora de o país pegar o impulso da Lava-Jato: carro limpo, governo derrubado, de novo na estrada. É uma estrada dura, contenções, recuperação da credibilidade, quebradeira nos estados e cidades. É pau, é pedra, é o fim do caminho.
A semana, com a prisão do marqueteiro do PT e os dados sobre as transações financeiras, trouxe mais claramente o sentido de urgência. E a esperança de sair desta maré.
Fonte: O Globo (28/02/16)

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Síndrome de Allende (Demétrio Magnoli

O socialista Salvador Allende governou o Chile, em meio a uma crise permanente, por menos de três anos, entre 1970 e 1973, até o golpe militar de Pinochet. Os intelectuais de esquerda chilenos dividiram-se, alguns optando pela crítica ao que interpretavam como excessiva moderação do presidente, outros reprimindo suas convicções para cerrar fileiras com o governo.
Sob o lema "este es un gobierno de mierda, pero es el mío", os segundos alertavam que a crítica dos primeiros contribuiria para o triunfo final da direita golpista. No Brasil, há anos, a "síndrome de Allende" circula nas rodas dos intelectuais de esquerda como justificativa para a cega adesão ao lulopetismo. Nada –nem mesmo os desastres econômicos e éticos à vista de todos– provoca mais danos à esquerda brasileira que esse recuo dos intelectuais à trincheira da militância.
No Chile da época, os supostos pecados de Allende situavam-se na esfera das opções de política econômica e social. No Brasil do lulopetismo, outra coisa está em jogo: a captura do Estado pela aliança criminosa entre uma elite política corrompida e a parcela do alto empresariado que faz fortunas às custas de contratos com o poder público. O "gobierno de mierda", isto é, o bloco político liderado pelo PT, patrocinou a santa aliança desvendada pela Lava Jato. Mesmo assim, praticamente não se ouve a crítica dos intelectuais de esquerda. A prisão de João Santana, acompanhada de novas evidências contundentes do assalto aos recursos públicos, não os comove. Há algo de trágico na paisagem seca.
Uma década atrás, na hora do "mensalão", deputados petistas choraram em plenário enquanto Duda Mendonça fazia uma confissão parcial, mas devastadora. Naqueles dias, Tarso Genro falou numa "refundação" de seu partido e o próprio Lula, encurralado, esboçou um ambíguo pedido de desculpas. Contudo, a hipótese de um diálogo franco do PT consigo mesmo e com a sociedade fechou-se pela intervenção dos mais estrelados intelectuais de esquerda. No estúdio de Wanderley Guilherme dos Santos, gravou-se o samba-canção da "conspiração das elites" contra Lula. No de Marilena Chaui, a ária de um "golpe da mídia" contra o "governo popular". Outros, quase todos, seguiram as partituras recebidas. Nunca mais derramou-se uma lágrima. O governo "es el mío" –mesmo se, de fato, nas frias planilhas contábeis, é de Marcelo Odebrecht.
No Chile da Guerra Fria, a sombra perene do golpe oferecia um argumento ponderável, ainda que discutível, para o chamado à ordem unida. No Brasil atual, a invenção de um Pinochet de cartolina sustenta a "síndrome de Allende". Daí que, desde o "mensalão", num país em que as principais lideranças de oposição pertencem a partidos de centro ou centro-esquerda, a linguagem petista encheu-se de referências oníricas a uma "direita golpista" e ao perigo representado pelos "fascistas".
As narrativas têm sua própria lógica. A dupla conspiração, das "elites" e da "mídia", evocada junto com a eclosão do "mensalão", foi expandida até abranger também o Ministério Público e o Judiciário. Os procuradores e os juízes, de diferentes instâncias, participariam de uma vasta trama de classe destinada a perseguir Lula, Dilma e o PT. As partituras escritas na emergência de 2005 evoluíram como uma acusação geral contra as instituições da democracia brasileira.
De tanto repetir o álibi formulado pelos intelectuais de esquerda, o PT passou a acreditar nele. Imerso na "síndrome de Allende", o partido celebra hoje 36 anos construindo em torno de si mesmo uma muralha guarnecida por baluartes e canhões. Acantonados na sua imaginária fortaleza sitiada, os petistas recusam-se a conversar com os "infiéis" e, também, a falar a sério no espaço restrito aos "fiéis". Condenaram-se a entoar hinos marciais –e aos brados, para que nada mais seja ouvido.

Fonte: Folha de São Paulo (27/02/16)

Por uma política democrática radical ( Marco Aurélio Nogueira)

O ano começou e as nuvens continuam carregadas. O País segue sem perspectivas, a polarização permanece a confundir, tirando força e clareza da sociedade, dos governos e do Estado. A recessão se fixou, a inflação promete crescer. A exasperação social está nas ruas.
A Lava Jato mantém-se como fator mais explosivo. Ainda que concentrada em apurar falcatruas dos atuais grupos governantes (PT e PMDB), a operação ameaça atingir também o PSDB, num movimento que, se tiver continuidade, porá em xeque todo o sistema político. Como reação, os agentes políticos buscam ativar seus arsenais para prejudicar os adversários, impactar a opinião pública e ganhar tempo. Independentemente de se saber onde está a verdade dos fatos, mergulhamos no reino puro da pequena política, que cola fácil na fase de miséria política e espetacularização midiática em que estamos.
O momento é propício à reflexão crítica, a iniciativas que busquem criar zonas mínimas de consenso, um entendimento que “civilize” a competição política e produza soluções. Apostar no aguçamento do conflito como se ele, por si, trouxesse um futuro mais risonho nas mãos ou maior sucesso eleitoral é insistir em mais do mesmo, atitude conservadora que não levará a lugar nenhum.
Tanto para o governo quanto para a oposição, para o Estado e a sociedade civil, muito mais inteligente seria agir para radicalizar aquilo de que mais se necessita: a qualificação da democracia, a melhoria de seu funcionamento institucional, a correção de suas insuficiências, a recomposição ou revisão do presidencialismo, a reforma do sistema político. Ou nos convencemos de que o arranjo existente não é adequado, ou seguiremos em marcha batida para o despenhadeiro. Sem mudança, manteremos nossa vidinha nacional de segundo escalão, nem tanto ao céu nem tanto à terra. O País não acabará, mas correrá o risco de perder o bonde.
Recuos táticos, reconhecimento da força dos adversários e da sua própria fraqueza relativa, busca de atalhos que evitem as áreas de conflagração aberta fazem parte do estoque de recursos de todo Estado que deseja agir sobre o mundo. Capitulações são indignas dos Estados que acreditam em si. Sua força nasce de dentro: quanto mais coesa uma população, quanto mais os cidadãos compartilharem uma concepção de vida coletiva, mais poder terá um Estado – e seus governos – de agir, para fora e para dentro de seu território.
Não estamos falando de guerra, mas de política. Quem hoje se preocupa em oferecer aos brasileiros uma plataforma para a ação coletiva? Há muita movimentação das partes sociais, mas pouco diálogo entre elas e nenhuma proposição abrangente. Cada movimento tem sua pauta específica, seu estilo, sua narrativa. Os partidos se tratam como se fossem diferentes entre si, mas não expressam distintos interesses sociais e correntes ideológicas. Seus objetivos são tópicos, convenientes, sem densidade programática. Buscam atrair simpatizantes, mas não lhes dão nenhum direcionamento inteligente. As “campanhas” são sempre contra, desejam quebrar as pernas de ídolos e mitos, não lançam ideias.
A “judicialização” em curso é um efeito colateral do fracasso da política. Paradoxalmente, o cerco que juízes e promotores fazem aos políticos e aos partidos “deslegitima” aquilo que está instituído e é, ao mesmo tempo, uma janela de oportunidade para a renovação política.
Não há uma direita que se organize homogeneamente, a própria esquerda está estilhaçada. É puro nonsense afirmar que todos os poderes fáticos se voltaram contra um governo de esquerda, que estaria cercado por capitalistas e neoliberais salivando sangue, por uma mídia golpista e uma classe média sedenta de vingança.
A disputa política está sem dignidade, encharcada de oportunismo.
A discussão sobre o impeachment fez a política chegar ao limite do suportável, em que as opções se reduzem dramaticamente. Ajudou a clarear o quadro, a definir melhor o campo de batalha. A consequência mais lógica disso, porém, não se produziu. Continuamos necessitados de um programa de ação que se organize em torno de uma política democrática que não só pressione para que o governo passe a governar, como exija que ele e seus apoiadores proponham um pacto político aos adversários e ajudem a pacificar a sociedade. Às oposições, idênticas exigências: passem a pensar no todo e menos em seus botões.
Somente uma política democrática radical pode dar um rumo ao País: reformar a política, isolar os reacionários, afastar os medíocres, os oligarcas, os corruptos e os fisiológicos de todos os partidos, tirar a luta de classes da intransparência, dar espaço às vozes democráticas, recompondo assim o Estado como ator administrativo e comunidade política. Não se trata de “salvar a Nação”, mas de desenhar um futuro, obra complexa que exige tempo, concentração de esforços e agregação de ideias.
Radicalizar é ir ao essencial, à raiz das coisas. Radicalizar a política democrática é fazer com que a democracia possa ser vivida de modo pleno.
Hoje estamos sem um sistema político funcional. A classe política está desorientada, há um déficit brutal de lideranças. A personificação e a falta de escrúpulos para travar os embates bloqueiam as saídas. Os partidos não são confiáveis, não expressam interesses sociais claros. Governo e oposição são polos protocolares: não referenciam a sociedade e por isso não surgem como efetivas opções políticas. Olhamos todos para o STF, o Ministério Público e a Lava Jato simplesmente porque o sistema político evaporou e rompeu relações com a sociedade civil. O troca-troca de acusações só serve para o governo dizer que não pode governar com um “golpe” em marcha e para a oposição justificar sua incapacidade de planejar o futuro.
Uma política democrática que vá às raízes do sistema e o ponha de ponta-cabeça se tornou necessidade estratégica.
(*) Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp

Fonte: O Estado de S. Paulo (27/02/16)

O brilho de uma estrela extinta (César Felício)

Uma citação exaustivamente repetida e atribuída a Winston Churchill afirma que na guerra, só se morre uma vez, e na política, muitas. A moral do chavão é que o tempo na política é instável apenas em sua superfície. Na essência, estamos diante de fenômenos de longa duração. Não amanhece um Brasil novo a cada fase da Operação Lava-Jato, vive-se o Brasil de sempre. A luz de uma estrela extinta, como prova a astronomia, pode durar muito.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva já é alvo de investigações formais no Ministério Público no Distrito Federal e em São Paulo, e, sem que se admita ainda, em Curitiba. Os fatos falam por si ao se medir o desgaste em sua imagem. A última pesquisa de opinião divulgada, encomendada pela CNT, sugere que hoje Lula iria ao segundo turno da eleição presidencial de 2018, mas não se elegeria. O levantamento mostra que para 70,3% dos entrevistados Lula é culpado de corrupção no âmbito das investigações da Lava-Jato, dentre os 88,6% do universo pesquisado que tomou conhecimento das denúncias.
Há duas questões centrais: se este quadro tende a manter-se nos próximos anos e qual seria seu significado caso ele se consolide, ou seja, com uma quarta derrota de Lula em uma eleição presidencial.
É razoável supor que um núcleo lulista sólido sobreviva ainda que o ex-presidente termine preso. Esta é uma opinião compartilhada mesmo por observadores da cena política extremamente distantes do PT, como é o caso do sociólogo José de Souza Martins, que lançou este ano o livro "Do PT das lutas sociais ao PT do poder", coletânea de artigos que mostra a mudança de sua percepção sobre o ex-presidente entre 2002 e 2015.
"Ele sai como mártir", opinou Souza Martins, que justifica a tese em sua análise da matriz do lulismo. O sociólogo acredita que o ex-presidente e o PT emanaram de três fontes: o sindicalismo, o radicalismo da esquerda que pegou em armas durante o regime militar e o catolicismo de base. É o último vetor que permitiria, até hoje, uma comunicação fluida de Lula com um segmento do eleitorado que, em sua primeira eleição presidencial, era cativo de oligarquias.
Este veio reveste Lula de características messiânicas, um líder capaz de levar seu povo excluído para uma terra prometida, porque, ainda que esteja circunstancialmente misturado com a família do Faraó, não se torna igual aos dominadores.
Não por acaso Lula obteve suas maiores votações em 2002 em áreas de religiosidade mais intensa, independente da confissão, como o oeste gaúcho e catarinense, a periferia paulistana, o sertão mineiro e nordestino e o interior do Amazonas.
O enraizamento de Lula nos municípios de maior vulnerabilidade social foi consolidado com o programa Bolsa Família, como mostrou a pesquisadora Sonia Luiza Terron em sua tese de doutorado sobre o padrão territorial da votação de Lula, apresentada no Iuperj em 2009 e disponível na internet. Quebrou-se com o programa as relações de troca que edificaram o clientelismo.
Escândalos de corrupção, por um lado, e a própria dinâmica econômica, pelo outro, foram esmaecendo os demais vetores, sindical e de esquerda, que alimentavam Lula e sua principal correia de transmissão, o PT. O padrão estabelecido em 2006 repetiu-se nas eleições presidenciais seguintes.
É o silêncio das panelas no bairro do Perus, em São Paulo; frente à estridência dos protestos em Higienópolis e em Copacabana, pelo outro, que ainda precisa ser interpretado para se entender o que pode ocorrer em 2018. O eleitor típico lulista não é surdo e nem cego, e logo considerar que Lula ganhará a condição de mártir caso seja buscado pela Polícia Federal é um exagero, mas por ora permanece mudo.
A história pregressa mostra que Lula já entrou em uma eleição fadada à derrota, em 1998, para manter espaço político. É o tal do "ganhar perdendo", a que várias vezes se referiu em 2014 Marina Silva, uma potencial herdeira da vertente messiânica da política. Seria possível repetir a manobra dos anos 90 em 2018?
Barrar o caminho de Marina Silva pode ser um dos fatores propulsores de uma sexta candidatura presidencial de Lula. A ex-senadora transita na mesma faixa do ex-presidente por fatores que vão muito além do religioso, aspecto de centralidade cada vez mais relativa nos dias atuais: ela se situa, em um plano simbólico, como ligada a classes de menor poder aquisitivo. Também de certo modo é apoiada por uma frente, capaz de congregar movimentos sociais, militantes de esquerda e aproveitadores de oportunidades empresariais que se abrem em um processo eleitoral.
Em 2018, Marina é a adversária a quem Lula pode superar. O PSDB só perde seu favoritismo caso suas tensões internas levem a uma explosão da sigla.
O PT, sem Lula, não tem como manter a condição de polo político na próxima eleição. Garantindo-se no comando da oposição, o petismo ganha uma chance para buscar outra identidade.
Ter voz é outra motivação para uma candidatura previamente derrotada. Partir para a competição eleitoral é tentar retomar o controle da narrativa da própria vida política. Se por um lado a presença de Lula no cenário eleitoral acirra a oposição contra si, por outro tinge com as cores da paisagem da disputa palestras bem remuneradas, viagens ao exterior em áreas estratégicas para empreiteiras, usufruto de imóveis inexplicavelmente reformados e outros quetais.
A derrocada econômica de Dilma, paradoxalmente, é um terceiro fator que pode justificar uma candidatura. Sem estar no palanque para se explicar, Lula pode deixar evidente quem é o sócio majoritário do catastrófico governo de sua sucessora.
Na situação em que se encontra, caso fique fora do cenário eleitoral, Lula estaria exercitando a opção da retirada. Tenderia a perder influência. Como dizia a abertura da música de sua campanha de 2002, da lavra de Duda Mendonça, "não dá para apagar o sol, não dá para parar o tempo". Lula calcina na planície, longe do panteão dos heróis da pátria.
Fonte: Valor Econômico (26/02/16)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

PT continua com dificuldade de reabrir diálogo com a sociedade (Marco Aurélio Nogueira)


Havia grande expectativa quanto ao programa eleitoral que o PT levou ao ar ontem. O próprio partido contribuiu para criá-la: Lula seria o destaque, receberia clara defesa contra a campanha que vem sofrendo, o PT mostraria a verdade dos fatos e dos ataques que seus governos e realizações vêm sofrendo. Além do mais, o programa traria a marca registrada de um novo marqueteiro, que chegou falando em renovação.
Em suma, o programa seria uma prévia da grande festa que o PT realizará no próximo sábado para comemorar seus 36 anos de vida.
No entanto, o que se viu foi um anticlímax. Nenhuma novidade, nenhuma revelação, nada de explicações ou admissão de erros. O partido optou por fornecer mais do mesmo: ênfase nas conquistas sociais e ataques aos “mesmos de sempre”, aos golpistas de plantão, que querem vencer no tapetão porque não aceitam as ações de promoção social, a ascensão social dos pobres e as políticas afirmativas dos governos petistas. Erros? Alguns, disse Lula, mas os acertos foram muito mais numerosos e importantes. Diante deles, tudo o mais seria irrelevante.
O programa bateu firme no que vem chamando de “ódio e intolerância” ao PT. A tese é que isso tem sido estimulado artificialmente pela mídia e pelos poderosos para desmontar a imagem positiva que o partido construiu nos últimos anos. Haveria um tempestade perfeita: todos os que se sentiram de algum modo prejudicados pelo igualitarismo dos governos petistas estariam agora unidos para liquidar o PT, impedir que ele se reproduza, antes de tudo jogando no lixo suas glórias, suas políticas e seus heróis. Nada haveria de sério nas investigações que apuram irregularidades relacionadas ao partido e menos ainda a Lula. O ex-presidente estaria a ser “humilhado” com ataques que o “caluniam” e o “desrespeitam”. A meta dos golpistas não seria somente derrotar o PT, mas calcificar a terra em que ele nasceu, matando tudo o que nela respirar.
É uma narrativa apocalíptica, que não parece ter apoio nos fatos. Mas o programa não se afastou um milímetro dela.
Lula ainda insistiu em acabar com o pessimismo e combater a “moda de falar mal do Brasil”. Falou na primeira pessoa: “Hoje tenho muito mais confiança no Brasil do que eu tinha quando tomei posse em 2003. Pessoas que falam em crise repetem isso todo santo dia, ficam minando a confiança no Brasil, mas nós continuamos sendo gigantes no agronegócio mundial, somos o terceiro maior exportador de aviões do mundo e, entre as 10 maiores economias, o Brasil é a que tem a matriz energética mais limpa. Continuamos sendo o sétimo maior mercado consumidor do mundo. Nosso povo está muito mais forte”.
Foi pouco, quase nada. O programa não arrebatou, nem ocupou espaço político. Durante o dia, todos acompanharam a chegada ao Brasil do marqueteiro João Santana e de sua esposa, presos pela Lava-Jato. O ar arrogante, irônico e confiante com que ambos foram filmados no aeroporto funcionou como uma espécie de provocação, contribuindo para encrespar um pouco mais a parcela antipetista da população. À noite, um sonoro panelaço serviu de fundo para o programa.
Não se pode esperar ou exigir que o PT vista o manto da humildade e corte na própria a carne. Não é da natureza dos partidos políticos fazer haraquiris públicos. Mas espera-se que façam uso da inteligência política para sair das dificuldades e enfrentar o efeito de erros e decisões equivocadas. Não precisam dar a cara a tapa, mas mostrar altivez e dialogar com os cidadãos, mediante a apresentação da visão que têm sobre o que está acontecendo. Devem partir do reconhecimento da realidade, não daquilo que acham que é a realidade, ou seja, dos fatos e não de uma interpretação apriorística deles.
Ao bater na mesma tecla de sempre, sem criatividade, sem contundência e dramaticidade, o PT fez um programa inócuo. Perdeu ótima oportunidade para reabrir o diálogo com a sociedade e se repor como ator político qualificado para ajudar o país a encontrar um rumo.
(24/02/16)


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Crise, partido, nação (Luiz Sérgio Henriques)

Ganhou a solidez própria do senso comum a definição de crise como intervalo acidentado e cheio de riscos entre o velho, que muitas vezes não morre, e o novo, cuja afirmação não é linear. Vale para a trajetória dos países e a de seus partidos significativos, cuja história, segundo outra indicação conhecida, é um aspecto “monográfico” da história mais ampla do contexto nacional e internacional em que atuam.
Os 36 anos do Partido dos Trabalhadores, há quase 14 instalado no poder central, são uma ocasião privilegiada para pensar o partido e nosso país. A trajetória daquele teve impacto forte neste, mobilizando setores genericamente ditos “subalternos” e distintas tradições culturais, reunidos sob um grupo dirigente capitaneado por um operário “autêntico”, formado “a partir de baixo” – e já nisso muito diferente de agrupamentos precedentes da esquerda, habituados ao cálculo político e, ainda quando proscritos, desejosos de se integrar ao sistema partidário e ao jogo parlamentar.
É tentador investigar a forma como Lula e seu PT ajudaram a moldar a experiência inaugurada com a Carta de 1988, quais valores e orientações fomentaram entre eleitores e cidadãos, mesmo não filiados, e quais, em troca, relegaram a plano subordinado. Um papel que está longe de ser negligenciável, dado o caráter praticamente único desse partido diante da fragilidade dos demais. Diferentemente do PT, as outras agremiações, ainda que relevantes, têm uma vida interna rarefeita, que só se adensa nas conjunturas eleitorais, e relações intermitentes com a vida social, dando a impressão de ainda não terem compreendido a fundo as características de massa da nossa democracia.
Daquele núcleo sindical decisivo, transposto sem maiores mediações para a arena política, guarda o petismo traços até hoje não superados. O dado social bruto, “concreto e objetivo”, conferiu aura de radicalidade classista avessa a maquinações de corredores e gabinetes refrigerados. A grande e a pequena política se diferenciariam pelo fato de a primeira se manter exclusivamente, ou quase, com os ouvidos colados ao chão social, a cujas diferentes e conflitantes manifestações se recusava o trabalho da síntese propriamente política. Pequena política seria todo o resto, inclusive, para mencionar um elemento emblemático, tecer alianças além da esquerda por ocasião da ultrapassagem do regime autoritário.
Foram ações “clássicas” desse núcleo petista a expulsão dos representantes que se dispuseram a votar no colégio eleitoral em Tancredo Neves, um democrata com relevantes serviços prestados à República, ou o voto contrário ao texto constitucional, vazado – aquele voto – em termos estridentemente sindicais. Como resultado, pequena e grande política se embaralharam: ao contrário do que supunha o petismo, o grande movimento era participar da refundação do País, aderindo sem restos à letra e ao espírito da Constituição; o pequeno lance, em vez disso, consistia em conferir aparência de radicalidade à fragmentação corporativa que assolava a sociedade brasileira, mal saída de selvagem modernização capitalista em regime de exceção.
Discutível, nesse sentido, a contribuição pedagógica do PT para o conjunto da sociedade: valeria mais a expressão de um radicalismo despolitizado do que a construção de uma razão política atenta tanto aos movimentos sociais quanto às exigências da redemocratização. De pouca serventia, ainda, a presença no petismo original de conspícuos elementos do catolicismo de esquerda ou de difusas ideologias de extrema esquerda, “cubanas” e terceiro-mundistas, que logo se amalgamaram ao núcleo sindicalista. Podem ter-lhe dado penetração em comunidades religiosas ou expertise na montagem do aparelho burocrático, sem, contudo, contribuir para um pensamento e uma prática que “educassem” para a democracia.
Sobre o catolicismo de esquerda, uma palavra. Estamos muito longe de qualquer visão redutiva ou “ateia” do laicismo republicano, ignorando as relações entre religião e razão ou cancelando os valores religiosos na esfera pública. Aliás, impossível ignorá-los: e se fosse possível, seria indesejável. No entanto, está claro que na fisionomia do petismo, como tem lembrado José de Souza Martins, o dualismo religioso, sem nenhum filtro, terminou por gerar uma compreensão dicotômica da luta política entre o bem (a esquerda e o PT) e o mal (a direita e os “neoliberais”). Ainda em 2014, para dar um exemplo, ouviu-se em importante área religiosa a caracterização do adversário como “inimigo do povo” – categoria infame, matriz de intolerância e de todo tipo de autoritarismo.
Quanto às diferentes manifestações de extrema esquerda, é bom que existam livremente, como, de resto, suas congêneres simétricas e antagônicas, respeitados os comandos constitucionais. Ruim é quando encontram um caldo de cultura favorável à expansão da mentalidade apparatchik e minúsculos “valores” a esta associados, como a subestimação da “democracia burguesa” e o ataque reiterado a seus pilares, como, entre outros, uma Justiça e uma imprensa não partidariamente controladas e uma oposição perfeitamente legitimada para assumir o poder a cada rodada eleitoral, em qualquer das instâncias da União.
Neste fim de ciclo do petismo no poder, convém, pois, considerá-lo mais como figura de uma crise geral do que como expressão de novidade histórica, que, a partir da esquerda, contribua para atualizar e ampliar as instituições. Os ingredientes que o constituíram não terão sido os melhores, ou não foram reagrupados segundo sábia e prudente razão política, mas não era inevitável que a “receita” desandasse a tal ponto.
Não é a primeira vez nem será a última que uma força de esquerda falha – um sinal adicional de que, na sociedade dos homens, não pode haver quem detenha o monopólio da virtude e possa subtrair-se ao jogo democrático.
(*) Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. É um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Fonte: O Estado de São Paulo (20/02/16)

Aos sem-partido (Luiz Carlos Azedo)

A crise de representação dos partidos políticos não é um fenômeno novo. Ganhou corpo com o surgimento dos modernos meios de comunicação de massa, a sociedade de consumo e a desconstrução do sujeito moderno, cuja existência estava associada a classes sociais mais ou menos homogêneas, que deram origem aos modernos partidos de massas. Com a globalização, o enfraquecimento dos estados nacionais e o surgimento de novos atores políticos, essa crise adquiriu a configuração que temos hoje.
Devido à crise ética e ao impasse político que estamos vivendo, o fenômeno virou uma megajabuticaba aqui no Brasil. Tem todos os ingredientes da crise de representação que sacode, por exemplo, a política europeia, cujos melhores exemplos são a Grécia e a Espanha, do ponto de vista de novos atores, e a França, a Itália e Portugal, quanto às agremiações tradicionais. Mas ocorre em meio à recidiva do populismo latino-americano, que já colapsou na Argentina e na Venezuela. E tem como ponto alto o “nunca antes neste país” do PT, cujo transformismo desaguou no escândalo da Petrobras, que está sendo desnudado pela Operação Lava-Jato.
Cerca de 36 partidos com representação no Congresso compõem o cenário do impasse político brasileiro, porém, seus principais protagonistas são três: o PT, partido da presidente Dilma Rousseff e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva; o PMDB, do vice-presidente Michel Temer, encastelado no comando do Congresso; e, na oposição, o PSDB do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do governador paulista Geraldo Alckmin e dos ex-governadores José Serra e Aécio Neves, os três pré-candidatos a presidente da República.
Embora se digladiem, esses grandes partidos engessam o sistema político brasileiro, de maneira que os demais só conseguem emergir como uma quarta força, com caráter de renovação, seja qual for o espectro político que represente. E bloqueio do processo político existe em razão de um arranjo institucional complexo: presidencialismo; federação esvaziada pela União; voto proporcional unipessoal para as casas legislativas, com exceção do Senado, onde o voto é majoritário; e sistema de distribuição do tempo de televisão e do fundo partidário que favorece o status quo. Aprovado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o fim do financiamento privado de pessoas jurídicas nas campanhas eleitorais aumentou a barafunda partidária.
A reação dos grandes partidos à mudança foi triplicar o fundo partidário, cuja distribuição é proporcional ao número de deputados de cada partido, e abrir uma janela de 30 dias para filiações partidárias, sem risco de perda de mandato, que começou a vigorar na sexta-feira passada. Legendas de aluguel procuram atrair deputados na Câmara dos Deputados oferecendo a divisão dos recursos adicionais do tempo de televisão na base do meio e meio, ou seja, metade para o “dono” do partido, metade para os deputados, que passam a administrar as seções regionais como se fossem franquias.
O canto da sereia atrai parlamentares que desejam se candidatar às prefeituras de suas cidades e não têm como financiar suas campanhas eleitorais, o que estressa as relações nas bancadas dos partidos que não adotam esse tipo de prática. É desnecessário dizer que esse leilão é um ingrediente a mais na panela de pressão da crise ética, que ameaça degolar dezenas de cabeças do Congresso envolvidas nas investigações da Lava-Jato.
Sangue novo
O modelo de financiamento de campanha adotado pelo STF seria mais compatível com o voto distrital, pois obstrui ainda mais a renovação da política brasileira, ao favorecer quem já está no poder, os candidatos de grandes posses e a utilização de caixa dois. Com o desgaste dos políticos, a possibilidade de levantar recursos nas campanhas eleitorais mediante as doações de pessoas físicas é muito exígua. A grande maioria dos eleitores não quer saber dos partidos, o que dirá doar dinheiro para suas campanhas.
Mas o problema é que não se pode prescindir dos partidos para construir saídas democráticas para a crise que o país atravessa. Esse é o drama atual da sociedade brasileira, cuja conta será paga pelas próximas gerações, uma vez que a atual elite política fracassou, tanto quanto a anterior. O Estado brasileiro não cabe mais no seu orçamento e o atual sistema político está bloqueado. São problemas que não se resolvem à margem da política e sem a participação dos políticos.
Fonte: Correio Braziliense (20/02/16)

domingo, 21 de fevereiro de 2016

A política com Dilma até 2018 (Alberto Carlos Almeida)

O governo Dilma vai até 2018, como está previsto na Constituição, e as reformas mais profundas demandadas pelos principais agentes econômicos e formadores de opinião não serão realizadas. Este é meu cenário básico, não apenas para 2016, como também para os anos seguintes. Há quem se mostre indignado diante dessa possibilidade e afirme que o Brasil não resistirá a três anos assim. Obviamente, essa forma de pesar pode ser questionada de diversas maneiras, e uma delas é tão simples quanto óbvia. Por mais profunda que seja a crise, três anos não são nada quando se pensa em perspectiva histórica. Qualquer país resiste a crises profundas por vários anos seguidos. A Europa resistiu a uma imensa guerra que durou seis anos. O continente outrora destruído por ele próprio está aí, após pouco mais de 50 anos, unido, firme e forte como uma das regiões mais desenvolvidas do mundo.
Findo o Carnaval e iniciado efetivamente o ano legislativo, veremos, em breve, que 2016 tenderá a ser na política, e em diversos aspectos, muito semelhante a 2015. Teremos pela frente um ano de intenso conflito político, caracterizado pelo equilíbrio de forças entre governo e oposição. Sim, equilíbrio. Apesar de nominalmente o governo ter ampla maioria no Congresso, essa vantagem lhe falta em momentos importantes (do mesmo modo que a tem em outros momentos igualmente importantes), como ocorreu na votação da comissão que daria início ao processo de impeachment.
A primeira dimensão de meu cenário básico é o cumprimento constitucional do mandato presidencial. No dia 11 de novembro de 2015, nesta coluna, em artigo intitulado "O que está a favor de Dilma", afirmei que as chances de impeachment eram muito baixas. Naquela semana, essa afirmação estava inteiramente contra a corrente: a abertura do processo de impeachment acabava de ser aceita por Eduardo Cunha e o governo tinha sofrido uma grande derrota na Câmara, que havia votado a favor de uma comissão de impeachment francamente contrária ao governo. Naquela semana, grande parte da mídia e dos analistas afirmava que o impeachment de Dilma era apenas uma questão de tempo. Afirmar, então, nesta coluna, que "a probabilidade de que Dilma sofra o impeachment permanece baixa" aparentava ser menos resultado de uma análise fria e mais a consequência de uma suposta torcida a favor do governo. A análise fria, quando se trata de prever, acaba sendo superior a qualquer tipo de torcida, a favor ou contra.
A afirmação de que Dilma tende a concluir seu mandato em 2018 está baseada em nada mais simples do que dizer que vivemos no presidencialismo. No presidencialismo, o mandato é fixo, com datas exatas para começar e para terminar. Qualquer mudança só pode ser resultado de uma imensa crise política, algo sem precedentes. O presidencialismo protege o presidente. Há inúmeras salvaguardas para o ocupante do cargo. Uma é a necessidade do apoio de 2/3 de deputados para que a abertura do processo de impeachment tramite em direção ao Senado. Graças a essas salvaguardas, o governo recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) e fez com que etapas do impeachment já aprovadas na Câmara fossem anuladas.
Se o impeachment se tornou algo improvável, afirmam alguns, é possível que Dilma e Michel Temer percam o mandato em função do julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). É difícil fazer qualquer previsão em relação a uma decisão tomada por apenas sete pessoas. O que sabemos é que o TSE jamais cassou o mandato de governadores de Estados importantes ou prefeitos de capitais da região Sudeste. É possível que agora, diante da quebra de vários precedentes, como foi o caso da prisão de um senador em exercício de mandato, o TSE venha a cassar a presidente e o vice-presidente da República. Diante disso, talvez o melhor seja jogar uma moeda numa disputa de cara ou coroa. Minha sugestão é que o leitor se reúna com mais seis amigos em torno de uma mesa para refletir sobre quão grave é a decisão de cassar os mandatários máximos da nação quando tomada por somente sete pessoas. Neste caso, e considerando-se também a ausência de precedentes para Estados e capitais importantes, a moeda poderia dar um resultado enviesado a favor do governo.
Há especulações, até mesmo delírios, acerca de como abreviar o mandato de Dilma. Vira e mexe, fala-se de semipresidencialismo ou semiparlamentarismo. Mudanças de regime de governo não são coisas triviais. Prova maior disso é que, quando se propôs o parlamentarismo, ele foi submetido a um plebiscito que o derrotou. Nos anos 1960, o parlamentarismo foi adotado como forma de evitar que Jango se tornasse presidente com plenos poderes após a renúncia de Jânio Quadros. A experiência, como acontece com frequência com casuísmos ostensivos, foi temporária e mal avaliada.
Tancredo Neves foi o primeiro-ministro que mais tempo ficou no cargo. Nas atas das reuniões de gabinete, o sapiente Tancredo afirmou que o parlamentarismo no qual ele era o líder máximo funcionava como se fosse presidencialismo, porque o Congresso não aprovava o que o governo propunha e mesmo assim o governo não caía. Sei disso porque minha tese de doutorado é sobre esse período. Por fim, se o parlamentarismo fosse adotado agora, ainda que em seu formato "semi", isso seria um golpe, porque teria como objetivo único reduzir os poderes de Dilma. É muito difícil levar a cabo um golpe dessa natureza quando há um grande equilíbrio de forças, como acontece agora.
A segunda dimensão do meu cenário básico é a impossibilidade política de que sejam aprovadas reformas que mudem as expectativas de atores econômicos, como investidores e empresários. Em primeiro lugar, quando se fala em reformas, é preciso deixar claro de que reformas estamos tratando. Considero que a grande reforma que mudaria as expectativas é a da Previdência, com o estabelecimento de 65 anos como idade mínima de aposentadoria para homens e mulheres. Seria importante também que as despesas fossem desvinculadas do orçamento e a regra de aumento do salário mínimo fosse modificada. Dificilmente essas medidas serão aprovadas.
Há várias razões para isso. A primeira é que Dilma não foi reeleita com essa finalidade. O eleitor que manteve Dilma na Presidência desejava a continuidade de seu governo. Esse eleitor considerava que sua vida tinha melhorado não apenas nos oito anos de Lula, como também nos primeiros quatro anos de Dilma. Essa melhoria é sinônimo de expansão de direitos - em particular, do direito de consumir por meio do aumento da renda familiar. A imagem do PT é a imagem de defensor dos mais pobres.
Os mapas de votação do partido, em qualquer eleição, são claros quanto a isso: quanto mais pobre a região, maior a força relativa do PT. É por isso que o Nordeste deu grande vantagem a Lula e Dilma nas quatro últimas eleições. Realizar uma reforma que levasse as pessoas a trabalhar mais tempo, como seria o caso da reforma da Previdência, é sinônimo de piorar as condições de vida dos mais pobres. O interesse difuso expresso pelo voto no PT é contra isso.
O interesse organizado petista também. Em 13 de novembro e 2015, um domingo, 40 mil pessoas foram à avenida Paulista manifestar-se a favor do impeachment. Apenas três dias depois, na quarta, 55 mil pessoas foram às ruas manifestar-se contra o impeachment. Todos os que fizeram isso são contra o aumento da idade mínima para a aposentadoria de homens e mulheres. Dilma precisa da mobilização de rua contrária ao impeachment no caso de crescimento das chances reais de que isso aconteça. Ora, ela jamais ficaria contra os interesses daqueles que defendem nas ruas a conclusão de seu mandato em 2018. A entrevista do ministro da Previdência, Miguel Rossetto, na edição do Valor do dia 15 deixa claro que o governo ouvirá esses setores organizados. Isso significa que dificilmente vai propor a reforma tal como almejada pelos agentes econômicos.
Não podemos esquecer, obviamente, do Poder Legislativo. A reforma da Previdência exige a maioria constitucional de 308 deputados para que seja aprovada. Segundo as últimas pesquisas públicas, o governo tem hoje uma avaliação positiva, de "ótimo" e "bom", da ordem de 12%. Dificilmente deputados e senadores votariam a favor de uma reforma nesse contexto de avaliação de governo. Mais importante ainda, eles estão começando o segundo ano de seus mandatos. Quanto mais se aproxima a data da próxima eleição, menor é o incentivo para os parlamentares votarem a favor de medidas que diminuem direitos, como é o caso da Previdência. Como o governo debaterá o tema durante o primeiro semestre, no momento em que a proposta for encaminhada ao Congresso já se terão passado, no mínimo, mais seis meses.
Não se pode esquecer que em outubro há eleições municipais e muitos deputados ou são candidatos a prefeito ou apoiam prefeitos em seus Estados. Votar a favor de uma reforma da Previdência este ano é gerar um argumento a mais para que seus eleitores punam nas urnas a ele, deputado, e a seus aliados. Dito de forma simples: não faz sentido gerar ruído em ano eleitoral. Deputados e senadores mais provavelmente votariam a favor de uma reforma profunda da Previdência se estivessem no primeiro ano de seus mandatos, e se fossem levados a fazer isso por um Poder Executivo eleito para mudar e não para continuar, como acontece com Dilma.
A situação pela qual estamos passando tem muito a ver com o equilíbrio entre governo e oposição. Caso a avaliação do governo fosse melhor, acima de 40% de "ótimo" e "bom", por exemplo, certamente não haveria esse equilíbrio e o governo teria condições bem mais favoráveis para aprovar amplas reformas. O contrafactual não interessa. O equilíbrio tende a permitir que Dilma conclua seu mandato em 2018, mas também tende a impedir que aprove as reformas demandadas pelos principais agentes econômicos. O governo seguirá o caminho do meio termo, adotando medidas variadas que venham a apontar na mesma direção das reformas mais amplas. Assim, do ponto de vista dos agentes econômicos, a direção poderá ser considerada a correta, mas a velocidade será bem mais lenta. Não será por isso que o Brasil acabará.

Fonte: Valor Econômico/Eu &Fim de Semana (20/02/16)

Desconstrução da esquerda (Cristovam Buarque)

Os constantes noticiários sobre a Lava-Jato têm levado militantes dos partidos do governo a dizerem que está em marcha uma campanha de desconstrução do PT e da imagem do ex-presidente Lula, cujo objetivo seria a desconstrução da esquerda. É até possível que as oposições estejam usando as notícias com esta intenção; mas a desconstrução foi feita pela própria esquerda, contando com a colaboração do Lula, do PT e demais partidos de apoio ao governo.
A desconstrução da esquerda ocorreu por causa da aceitação da corrupção, sob o argumento de que todos a praticam; pela perda do vigor transformador e o consequente acomodamento; a falta de imaginação para formular nossas alternativas para avanço social; a incapacidade para perceber e entender a vertiginosa transformação tecnológica e política no mundo e o desprezo por compromissos programáticos e ideológicos.
A esquerda não foi capaz de entender o pleno significado da queda do Muro de Berlim, do fim do socialismo pela distribuição da produção e o consumo industrial depredador; a consolidação do poder sindical da aristocratização do proletariado em contraposição aos interesses das grandes massas; não entendeu a dimensão da crise que vai além da luta de classes e contesta a própria base da civilização industrial; não tem proposta para a ampliação do bem-estar, combinado com o equilíbrio ecológico; não percebe a força da globalização implantando o livre comércio, quebrando as fronteiras nacionais; nem a realidade da economia atual, onde o principal fator de produção é o conhecimento, não o capital financeiro, nem os recursos naturais. A esquerda desconstruiu-se ao adotar a voracidade pelo poder e seus cargos e privilégios, envenenando os músculos de sua militância por estupidez e imoralidade. Faz parte também deste esforço da autodestruição, a anulação, pela cooptação, dos movimentos sociais como UNE, CUT, MST.
Somado à irresponsabilidade fiscal que provoca a maldade da inflação; o aparelhamento e a má utilização do Estado; a degradação de estatais símbolos da nação, como a Petrobras e os Correios; o desmantelamento do funcionamento do Estado e a desnacionalização do parque produtivo por causa da desvalorização cambial.
No lugar de criar novas utopias, formular novas propostas, a esquerda preferiu cair nos braços do sistema tradicional, reduzindo seus programas a meras transferências de renda já implantadas por governos anteriores; colocou o poder como meta suficiente, não como etapa necessária; aceitou qualquer aliança, desconstruindo a própria imagem.
A foto de Lula no jardim de um palacete para eleger seu candidato poderá ser um dia mostrada como marco da desconstrução da esquerda no Brasil, tanto quanto as fotos de jovens derrubando as pedras do Muro de Berlim significou a desconstrução do socialismo real na Europa.
A esquerda se auto desconstruiu sobretudo ao não perceber seus erros e jogar a culpa da desconstrução nos adversários.
Fonte: O Globo (20/02/16)

Diálogos com José de Souza Martins

http://g1.globo.com/globo-news/dialogos-com-mario-sergio-conti/videos/v/dialogos-jose-de-souza-martins-sociologo-e-professor-da-usp/4824594/

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

O petismo encurralado (Gustavo Müller)

Elio Gaspari dividiu em quatro livros os períodos da ditadura militar; “A ditadura envergonhada”, “A ditadura escancarada”, “A ditadura encurralada” e “A ditadura derrotada”. Com base nos fatos, nas investigações, nos inquéritos e no que já transitou em julgado, seria possível a utilização de pelo menos três das fases de Gaspari para tentar compreender a era petista.
Os fatos envolvendo a não esclarecida morte de Celso Daniel até o caso Valdomiro Diniz poderiam se enquadrar na fase do “petismo envergonhado”. Havia suspeita de arrecadação ilícita de fundos para as campanhas por meio de propina cobrada de empresas que prestavam serviço à prefeitura de Santo André e, segundo o que foi veiculado pela imprensa, Celso Daniel não teria compactuado com tal esquema. Já no caso Diniz, trata- se de um assessor da Casa Civil, na época de José Dirceu, que teria arrecadado dinheiro junto ao jogo do bicho.
A fase do “petismo escancarado” cobriria tanto o mensalão como o petrolão. Nessa fase, os esquemas de corrupção ganham uma denominação superlativa. Mas não apenas isso. No “petismo escancarado”, tanto o presidente Lula quanto a cúpula dirigente do partido e seus “intelectuais orgânicos” lançam mão de malabarismos retóricos para dizer que, na verdade, se trata de uma conspiração “da mídia nativa”. O “petismo escancarado” do mensalão tentou uma narrativa romanceada na qual não era possível governar sem a compra de apoio. Já no petrolão, a exemplo de Goebbels, repete- se exaustivamente que “todas as doações foram declaradas à Justiça Eleitoral”, omitindo- se o fato de que se trata de contratos superfaturados.
Todavia, quando Lula se torna alvo das investigações, parte- se da suspeita de ocultação de patrimônio, entramos na fase do “petismo encurralado”. O objetivo agora não é salvar o mandato de Dilma, mas salvar o mito Lula, mito que se confundiu com o próprio partido. Tal qual o personagem do filme “A grande ilusão”, que conquistou o eleitorado de seu estado repetindo a frase “um caipira tem que votar em outro caipira”, Lula, um filho do Brasil, encarnava na própria pele o suor do povo brasileiro. A partir do momento em que o Lula de tantas lutas aceita de bom grado, para seu merecido descanso, duas dachas, o mito se desfaz. A corrupção perde o seu sentido teleológico para adquirir conotações “humanas, demasiadamente humanas”, e a narrativa do líder popular adquire um tom opaco que não combina com o tampo da pia da cozinha do seu tríplex. O petismo agora se encontra encurralado em um elevador privativo.
“A ditadura derrotada” de Gaspari faz alusão à derrota da linha-dura. A passagem do petismo encurralado para o petismo derrotado dependerá do que sobrar das instituições democráticas.

(*) Gustavo Müller é professor de Ciência Política da Universidade Federal de Santa Maria

Fonte: O Globo (12/02/16)