terça-feira, 5 de maio de 2015

sobre o voto distrital (I) - (Bruno Pinheiro Wanderley Reis/entrevista)

- Aprovação da proposta para as Câmaras Municipais de grandes cidades pelo Senado ainda gera certo ceticismo e muitas divergências em relação ao modelo

Iuri Pitta - Estado de S. Paulo

SÃO PAULO - Mudar o atual sistema eleitoral não é consenso, mas mobiliza a comunidade acadêmica e os políticos há pelo menos uma década. Com a aprovação do voto distrital puro para as Câmaras Municipais de grandes cidades pelo Senado, um primeiro passo para aprimorar o sistema de representação no País parece ter sido dado, mas permanece certo ceticismo e muitas divergências em relação a esse modelo.

O Estado entrevistou três cientistas políticos sobre o assunto, confira a íntegra das entrevistas abaixo:

- Bruno Pinheiro Wanderley Reis

• Cientista político da UFMG, estuda financiamento de campanhas na Universidade da Pensilvânia (EUA)

Estado - O sr. considera válida e adequada uma das premissas adotadas nessa discussão sobre o voto distrital: a de que se trata de um "ponto de partida" para a tão desejada reforma política mudar o sistema de votação na eleição para vereador das grandes cidades e, posteriormente, ampliar as mudanças para os demais legislativos e para as outras questões?

Bruno: Preliminarmente, vou fazer uma explicitação de um viés. Eu não acho que o sistema distrital seria uma boa ideia. Ele tende a favorecer máquinas locais e a fazer proliferar "distritos seguros", elevando barreiras à entrada de um modo indesejável. Dito isso, porém, nada impede que cogitemos de reformas que incidam sobre parte do sistema, sem necessariamente mexer nele inteiro. Mas devemos ter noção de que isso não é necessariamente "experiência" no sentido de que, se der errado, voltamos pra trás. Isso nunca é assim. Toda mudança cria relações de poder específicas e clientelas próprias, e pode muito bem acontecer de, mesmo com resultados negativos, a mudança se mostre irreversível. Mais interessante de um ponto de vista federativo (embora bastante arriscado) seria deixar cada estado ou município resolver as regras que quer adotar. Mas deveríamos nos preparar para um festival de casuísmos locais...

Estado - Um primeiro risco, então, seria a dificuldade de se reverter o modelo adotado, sem entrar no mérito de qual sistema que se escolha?

Bruno: Isso. A proposta do (senador José) Serra tem um sabor de "experimento" que, de fato, nunca acontece no mundo real, em instituições políticas. Gradualismo, de um modo geral, faz sentido, é claro. Exatamente porque não conseguimos ver todos os efeitos de uma mudança, cabe cautela nessas manobras. Mas a gente deve ter clareza de que, a rigor, não há volta. Feita uma mudança, interesses se realinham, e o cenário com que vamos nos defrontar depois já é outro, com dinâmica própria.

Estado - Tratando agora especificamente do voto distrital, de suas vantagens e desvantagens. O sr. já apontou um problema, o risco de se criar "distritos seguros" e de proliferar os casuísmos locais. Isso é um problema que já ocorre hoje, o Rio, por exemplo, tem locais em que o acesso dos candidatos depende de autorização de por forças paramilitares, sejam ligadas ao narcotráfico, sejam milícias. O voto distrital puro necessariamente agravaria situações assim? O que poderia ser feito para amenizar ou coibir esses redutos dominados por alguma força paramilitar ou mesmo por uso de máquina político-administrativa?

Bruno: São coisas diferentes. Uma coisa é uma área territorial qualquer em que o cidadão tem dificuldade de contar com os serviços do estado, e máfias criminosas se insinuam. Outra coisa é a franca hegemonia de uma máquina partidária sobre determinados distritos eleitorais. Isso pode se dar, em princípio, em qualquer lugar do país. O valor importante a ser preservado nessa discussão é a perspectiva de representação adequada da pluralidade dos interesses existentes na sociedade. Isso depende fundamentalmente de visibilidade dos atos dos representantes eleitos, e do grau de competitividade política pelas posições em jogo. A ideia de que vamos ter visibilidade garantida por termos um representante por distrito é bem fantasiosa. Frequantemente sabemos melhor o que se passa na Câmara em Brasília do que aquilo que faz o síndico do prédio em que moramos. Essa visibilidade depende da existência de um sistema de comunicação plural e uma imprensa independente ativa e diversificada. E tudo isso vai depender também da existência de oposição partidária local viável. Se temos um só representante por distrito, e o PMDB tem um cara no local que controla os canais de comunicação e os fluxos de recursos, a competição seca, e a visibilidade dos atos vai embora junto.

Estado - O sistema distrital misto, que combina a divisão por distritos geográficos e mantém bancadas partidárias em toda a extensão da cidade ou Estado, é suficiente para resolver essas questões colocadas?

Bruno: Esse é bem mais engenhoso. Os alemães fizeram um bom trabalho de combinar os méritos dos dois sistemas mais famosos. Mas isso porque, apesar do nome com que o sistema é conhecido no Brasil, deve-se sublinhar que se tratade um sistema proporcional. É a distribuição dos votos entre as listas partidárias que define o tamanho das bancadas e a relação de forças partidárias no parlamento alemão. Os eleitos nos distritos (cujo número equivale a aproximadamente metade das cadeiras) simplesmente garantem sua própria cadeira, e tomam o lugar dos últimos da lista, caso já não estivessem eleitos por ela também. É um bom sistema. Mas gosto ainda mais da variante sueca. Ela é idêntica, exceto pelo fato de que os distritos não elegem um só. São distritos pequenos (com cinco a oito deputados na última vez em que vi isso), mas isso assegura um desejável pluralismo local, evitando o risco de eventuais monopólios longos demais.

Estado - Para você, esse modelo sueco serviria para o Brasil? Existe um sistema mais "adequado" para um país continental e desigual como o Brasil?

Bruno: Eu não correria para grandes mudanças. Como diz o meu colega Jairo Nicolau, todo cientista político tem sua reforma política de estimação, mas devemos a todo custo evitar pautar o debate por elas. Sim, gosto do sistema sueco. Mas, se trata de reformar o sistema brasileiro, precisamos de um diagnóstico sobre o que é que funciona mal entre nós, para atuarmos especificamente sobre aquilo. 

De outra maneira, ficamos perdidos, e não é à toa que nada acontece. No caso do Brasil, apesar de a imprensa sempre culpar o Congresso por não sair a reforma, a verdade é que pelo menos desde 2003 são os deputados quem está sempre trazendo a discussão de volta, embora o desacordo sobre o que fazer só aumente. O motivo me parece muito claro: é o financiamento de suas campanhas. A ciência política brasileira demorou mais do que deveria para acordar para esse problema, e para a legitimidade da conversa sobre reforma. Tendemos a uma posição muito defensiva, de dizer que tudo estava bem e não precisávamos mudar nada. De fato, o Brasil nunca tinha tido tanta estabilidade política e econômica quanto teve no período entre 1995 e 2013, e isso não deve ser minimizado. Mas o financiamento estava erodindo a base do regime, inclusive entre os próprios políticos.

Estado - Então resolver a questão do financiamento de campanha deveria ser a prioridade, e é ela quem cria problemas como falta de representatividade e de corrupção envolvendo políticos?

Bruno: Claro que há corrupção para além do financiamento de campanhas. Como em toda parte. Mas o fato de que todos os 513 deputados federais, e mais as centenas de deputados estaduais e os milhares de vereadores País afora tenham de correr para bancar pessoalmente sua próxima campanha dali a quatro anos, é um problemão para as instituições de controle. E isso, assim como a fragmentação partidária, decorre do sistema eleitoral. Daí que o esforço de se equacionar devidamente o tema do financiamento das campanhas não é um assunto desconectado do sistema eleitoral. Foi esse o problema que os deputados federais puseram na mesa com a "proposta Caiado" em 2003. Para lidar com o problema do financiamento de campanhas, eles propuseram (até por falta de ideia melhor no debate da época) a novidade do financiamento público exclusivo. Para viabilizá-lo, se dispuseram a propor a lista pré-ordenada (mais conhecida como lista fechada). O financiamento público exclusivo era uma proposta radical, sem precedente, e muito problemática. Mas era uma proposta séria, que tentava lidar com um problema real, e foi muito mal tratada tanto na imprensa quanto na ciência política. Minha impressão é de que eles atiraram no que viram e acertaram no que não viram.

Estado - O sr. disse que é importante ter o financiamento mais fragmentado, desconcentrar as fontes de financiamento, mais do que simplesmente reduzir a extensão territorial da campanha, como propõe o sistema distrital. Como fazer isso?

Bruno: Fazendo o que quase todo mundo faz. Impondo tetos nominais (relativamente "baixos") para as doações, por doador. Esse é o teto usual, e por isso mundo afora as pessoas presumem que, se há tetos, então o sistema é mais equânime. Ocorre que o Brasil adotou um tipo de teto muito peculiar, que é um percentual da renda do doador. Isso provavelmente tem o efeito oposto, de concentrar as doações entre poucos, enormes doadores. Se o teto é 2% do faturamento bruto para as empresas, e 10% da renda bruta para as pessoas físicas, então o dono da padaria da esquina vai poder doar apenas alguns milhares, mas o banco e a empreiteira vão poder doar milhões. Os candidatos a deputado ou vereador, na prática, simplesmente não têm escolha, a não ser submeterem-se ao ritual humilhante de bater na porta do grande doador. Sabendo desde o início que, sendo um candidato entre centenas, será o doador quem ditará os termos da conversa. Um candidato a presidente ou governador ainda pode chegar a ter uma conversa minimamente horizontal com o doador, mas os das proporcionais, sem chance. As exceções parciais são os raros candidatos que já são "donos" de algum "reduto", ou então as chamadas "celebridades". Esses dependem menos de dinheiro para serem lembrados na hora agá. 

Já li em jornais que, ao contrário do Obama com sua máquina de arrecadação desconcentrada online, os políticos brasileiros "preferem" bater na porta das grandes empresas. Ora, não são eles quem prefere. É a legislação que praticamente determina. Tetos nominais forçam a pulverização dos doadores. Ou então os grandes doadores vão ter pelo menos de se virar para encontrar "laranjas" para doarem por eles - por sua própria conta e risco. Hoje eles têm o controle legal do financiamento das campanhas, e assim estão em posição de exercer influência desproporcional sobre os mandatos.

Estado - Depois da Operação Lava Jato, os partidos têm reclamado da queda nas doações aos partidos. Esse ambiente de "torneira seca" e os desdobramentos da investigação, inclusive com prisão de executivos envolvidos nas contribuições às legendas, pode ser visto como momento de se mudar o sistema de financiamento das campanhas? Ou o sr. é cético em relação à disposição dos políticos de mudar esses mecanismos?

Bruno: Na verdade, acho que os políticos querem mudar o financiamento de campanhas há muito tempo. Por isso o tema da reforma política entra na pauta em todo início de legislatura no Congresso. Se formos recapitular essa história veremos que é a Câmara dos Deputados quem tem pautado mais insistentemente a reforma política nas últimas décadas. Candidatos a presidentes da Câmara têm feito campanha junto ao plenário prometendo tocar a reforma. O que falta é consenso, maioria clara para a aprovar alguma reforma específica. E esse impasse tem sido favorecido também por falta de massa crítica sobre o assunto na sociedade, na imprensa e (até recentemente) mesmo na ciência política. 

Durante a crise do "mensalão", em 2005, político que falasse em reforma política a propósito do episódio costumava ser acusado de diversionista, de querer erguer uma cortina de fumaça sobre a investigação, que a hora era de punir os culpados etc. Mas o escândalo tornava evidente o que já se sabia havia muito tempo: havia problemas sérios com o financiamento. Agora, com a Lava Jato, talvez de fato não tenha mais jeito de ignorarmos a questão. Desta vez, não apenas políticos, mas também executivos das empreiteiras foram presos. Agora, além de entrar na sala, o elefante sentou no sofá, está espalhando a comida e quebrando a decoração. Não vai dar mais pra ignorar.

Além da Lava Jato, há também a decisão iminente do STF, de proibir a doação feita por pessoas jurídicas. O ministro Gilmar Mendes "sentou em cima" do processo quando pediu vistas há mais de um ano, mas o placar vigente, de seis a zero, deixa evidente que as doações serão proibidas se não houver mudanças na lei. A obstrução do Gilmar está dando tempo ao Congresso para tentar sair em busca de alguma coisa. O grande aumento recente no fundo partidário deve ser compreendido nesse contexto. É uma provisão de recursos que os partidos fizeram, para atravessar esse período de incerteza. Neste momento, sei que há conversas sobre a introdução de tetos nominais para os doadores, e entendo que esse é o caminho a ser trilhado.

Não me atreveria a mudar, numa tacada só, um sistema de doações tão pesadamente empresarial como o nosso para a proibição completa das doações por pessoas jurídicas. Temo que isso nos expusesse ao risco de aumentar o descontrole sobre as prestações de contas. Mas acho que os eventuais tetos nominais devem ficar em valores que induzam os candidatos a diversificar as suas fontes. O princípio básico é que nenhum doador deve poder ser o "dono" de uma campanha, e assim o teto deve ficar bem abaixo do orçamento típico de uma campanha.

Estado - Entidades civis, como CNBB e OAB, defendem o chamado modelo belga, com eleição para o Legislativo federal em dois turnos (o primeiro para eleição das bancadas partidárias, apenas com voto nas legendas, e o segundo para formar a lista de cada partido, conforme o número de cadeiras obtidas na votação prévia). O que o sr. acha dessa proposta?

Bruno: Me desculpem os proponentes, mas essa é uma proposta ingênua. Se eu sou um eleitor engajado, com fortes simpatias partidárias, eu vou simplesmente votar no meu partido no primeiro turno, favorecendo a sua quota de cadeiras, e depois votar num candidato fraco do partido rival, tentando tumultuar a lista deles e tirar do legislativo um adversário poderoso. Não faz sentido deixar o sistema de representação política e os partidos vulneráveis a esse tipo de sabotagem pelos adversários. E esse não é o sistema belga. A Bélgica tem um sistema federativo complicado, mas o sistema eleitoral é convencional. É um sistema proporcional, com listas pré-ordenadas mas flexíveis, em que o eleitor pode optar por votar em uma das listas tal como apresentadas ou tentar modificá-la. Em um turno só. Ela é famosa por uma razão histórica simples: foi o primeiro país a introduzir, em 1899, o sistema de representação proporcional, com listas partiidárias fechadas.

A última coisa que devemos tentar fazer a esta altura é improvisar, inventar sistemas de efeitos desconhecidos. A política no Brasil ainda nos impõe desafios importantes, mas é preciso reconhecer que o país nunca tinha sido tão estável quanto nos últimos vinte anos. E temos resultados importantes para mostrar: tanto estabilidade econômica quanto importantes melhorias nos indicadores sociais. 

Agora precisamos de ajustes, mas é preciso moderação e cabeça fria ao avançarmos, para não colocarmos tudo a perder.

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