O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tem-se movimentado deliberadamente para aquele local misterioso denominado por um ministro do STF como ponto fora da curva. Esse ponto fora da curva corresponde à sua manifesta oposição ao impeachment da presidente Dilma, na contramão do que defendem lideranças de seu partido. O ex-presidente também já manifestou sinais de abertura para eventualmente "pactuar" com o governo uma saída para a crise econômica.
FHC escolheu uma posição pessoal, no mínimo muito singular. Fora da curva do seu partido e do presidente do partido, Aécio Neves, que vem adotando uma atitude dura com Dilma e o PT; fora da curva do sentimento popular de hostilidade ao PT e de rejeição do governo Dilma; fora da curva do debate político em que se tornou o alvo de Lula, Dilma e políticos do PT em ataques à sua pessoa, à sua administração e ao legado do seu governo; fora da curva da oposição, que por mais de uma década se mostrou inapetente para a função e agora deseja manter o governo e o PT enfraquecidos. Não há como saber com certeza as razões dessa sua opção. Pode-se, entretanto tentar algumas conjeturas.
FHC deve sentir-se (e tem sobradas razões para tal) muito acima da maioria dos líderes mundiais na escala dos estadistas e, muito mais ainda, dos brasileiros. Para ele Lula, Dilma, Aécio, Temer, Marina não passam de políticos voluntaristas, ambiciosos e superficiais que não estão preparados para as responsabilidades do governo de um país do porte e potencial do Brasil. Ele deve se ver como professor, por vezes o preceptor, no mínimo como um possível exemplo para essas lideranças que, por sua imaturidade, desmontaram o País que ele com tanta competência havia consertado. Não sendo persuadidos pela razão nos bons momentos, talvez nos momentos de crise possam abrir-se para uma influência mais madura e equilibrada. Creio que essa interpretação pode não ser a mais exata, mas não deve estar muito distante da realidade.
Dir-se-á que, se verdadeira, a postura de FHC seria de vaidade e presunção, traços pessoais que se não forem exatos também não estarão muito longe da realidade, já que o ex-presidente não costuma ser "acusado" de humildade.
Impossível saber com certeza as razões que fazem FHC buscar esse ponto fora de todas as curvas que só favoreceria o PT. Em situações como essas, a sabedoria da política ensina que devemos recorrer à expressão latina cui prodest - a quem beneficia esse curso de ação?
Não a Aécio, que se cacifou para a estatura presidencial pelo combate dado a Dilma na campanha e, com a próxima eleição marcada para daqui a três anos, não se pode afastar demais do sentimento popular.
Não a Dilma, que se chegar ao fim do segundo mandato estará politicamente exaurida.
Não a Lula, que agora precisaria da ajuda de FHC. Do mesmo FHC cujo legado há 12 anos tenta demonizar na lembrança dos brasileiros, com agressividade, mau gosto e demagogia.
Não à oposição, que encontra agora, com os escândalos da corrupção e o desgaste de Lula, de Dilma e do partido, sua chance de derrotar o PT no Congresso, na opinião pública e nas eleições municipais de 2016.
Não a Temer, que recém-ganhou protagonismo por causa do enorme desgaste de Dilma; nem ao PMDB, que nada teria a ganhar com o ingresso no jogo político de cardeal de elevada estirpe, reconhecida habilidade política e carreira irreprochável.
Incidentalmente, FHC traiu-se ao usar o termo cardeal numa palestra promovida pela Goldman Sachs, quando afirmou que, "se a situação de Dilma piorar muito, chegará um momento em que os cardeais do País deverão se reunir para costurar uma saída para este governo".
Ao implicitamente se incluir como cardeal (termo que não vem sendo usado no vocabulário político) no jogo político brasileiro, quis inevitavelmente significar sua posição superior em relação aos demais e sua presença como player neste jogo. O jogo político dominado por cardeais sempre visou o poder papal e só ocorria na combinação de um papa fraco com um baixo clero desqualificado.
De outro lado, não seria sensato admitir que FHC adotasse essa posição política generosa para com Dilma e o PT num momento em que quem pode deles busca se afastar. Deve haver uma razão muito mais elevada do que as usuais acusações de "murismo", "covardia", "esquerdismo enrustido" que justifique seu comportamento e possa compensar os riscos a que expõe sua imagem.
Esse ponto fora da curva somente pode ser ocupado por ele. Num momento em que todas as outras lideranças nacionais (Dilma, Aécio, Marina, Temer e Lula) estão derrotados ou sem chances de vir a disputar a Presidência, quem vai sobrar daqui a três anos e meio? Mais ainda: assim como o Lula dos tempos de glória abafava FHC, agora o Lula desgastado pode ressuscitar FHC.
Se Aécio não sobreviver politicamente ao desgaste deste período; se Lula, Dilma e o PT estiverem inviabilizados politicamente; quem além de FHC poderá unir um PT fraco, mas agradecido pela proteção recebida no seu pior momento, e um PSDB que finalmente, com ele, poderá voltar ao poder?
FHC pode (e acredito que está tentando) emergir como o estadista acima dos medíocres interesses políticos, voltado para os grandes objetivos da Nação e emprestando seus talentos, sua sabedoria e sua respeitabilidade à recuperação do Brasil. Não lhe faltam saúde, nem condições intelectuais e, deve-se supor, tampouco vontade para se dedicar a essa missão.
Talvez não seja um ponto tão fora da curva lembrar que o povo brasileiro pode querer convocá-lo novamente para presidir o País num regime, quem sabe, parlamentarista, em mais um desafio de recuperação nacional. Por certo esse não é hoje o resultado mais provável. Trata-se, entretanto, de uma hipótese que nem nós nem ele, neste momento, podemos excluir.
Fonte: Política Para Todos (03/05/2015)
Estadão (02/05/2015)
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