- Qual é a sua análise da reeleição da presidente Dilma? Politicamente, qual é o significado dessa reeleição e de mais quatro anos de gestão petista, totalizando 16 anos de governo?
Bruno Cava - O processo como um todo indica o esgotamento final da representação político-partidária no Brasil, na medida em que um grande espaço político não foi ocupado por nenhuma das forças que se apresentaram nessa eleição. Fala-se muito em crise econômica, mas é também uma crise política, de incapacidade do governo de inovar e remobilizar produtivamente a sociedade para um novo ciclo de desenvolvimento, mais qualificado. As manifestações de 2013 e as transformações sociais não encontraram repercussão no debate eleitoral, reduzido rapidamente a campanhas negativas, investidas acusatórias, denuncistas, a um encadeamento de angústias, fobias e reações raivosas que tomou as redes sociais e, no final, parte das ruas do país.
A reeleição de Dilma é, antes, a reafirmação do sistema político brasileiro em não mudar os termos de sua disputa, reencenando a polarização entre PT e PSDB, uma dialética do menos pior que substitui o esvaziamento da dinâmica político-partidária. O último ato dessa peça, com Dilma de branco pedindo diálogo com a oposição, teve como pano de fundo o sorriso amarelo de Michel Temer. Ali estão Kátia Abreu, Collor, Pezão, Sartori e tantos outros, onde também serão bem-vindos banqueiros, grandes proprietários e megaempresários que, terminada a eleição, se reacomodam no poder constituído. Esse pano de fundo inquestionado seria o mesmo, caso Aécio vencesse.
Quando Marina sugeriu, no 1º turno, que tentaria governar sem o PMDB, até parte da esquerda respondeu imediatamente que não se governa sem o PMDB. É um dogma. E não é só o PMDB enquanto partido, mas uma lógica, o que Marcos Nobre tem chamado de pemedebismo. Isto não significa que PT e PSDB sejam iguais, embora estejam implicados num mecanismo igualmente infernal, que leva sempre o governo mais à direita e o impermeabiliza às alternativas.
Fora dos alinhamentos automáticos de um lado e de outro, instintos maturados por 20 anos de polarização PT-PSDB e que reaparecem nas horas críticas como certezas ideológicas entre quem é esquerda e direita, boa parte do eleitorado não partilha dessa mesma chave binária de classificação.
No 2º turno, Marina levantou a bola para Aécio com um conjunto de condições, como manutenção da maioridade penal, meio ambiente e demarcação de terras indígenas, que tornariam o candidato mais palatável para aquela faixa de indecisos que não queria a continuidade do governo do PT, mas tem desconfianças quanto ao PSDB.
Aécio não se comprometeu e o apoio de Marina perdeu força, porque ela perdeu a confiança de uma fatia de apoiadores (me incluo neste grupo). Aécio então optou por reforçar seu discurso à direita, falando em Cuba, "ameaça bolivariana", e agressivamente prometendo libertar o Brasil do PT, o que visou eleitores que já iriam votar nele de qualquer modo. Ele repetiu a estratégia usada para arrancar votos da Marina para obter ainda mais votos de seus 21,5%, mas esses que faltavam eram justamente aqueles que não tinham migrado para ele com aquela estratégia. E teve um contraefeito indesejado.
Essa estratégia não só afugentou indecisos, como propiciou à Dilma assumir o outro polo, impingindo a Aécio uma campanha preconceituosa e demofóbica, o que por sua vez provocou uma minionda já no limiar da votação, arrastando inclusive abstenções e votos que seriam nulos. Isto não demonstra que Dilma encampou uma posição à esquerda em relação aos últimos quatro anos de governo, mas sim como é fácil mostrar-se à esquerda quando você tem o PSDB do outro lado. Então talvez tenha sido interessante tê-lo do outro lado e assim reduzir a disputa a esses termos. Esse, aliás, foi o cálculo da campanha do PT no primeiro turno, quando centrou fogo em Marina.
- Alguns analistas dizem que não há problema no fato de o PT estar no poder por 16 anos, porque foram dois governos de Lula e outros dois governos de Dilma. Outros, por sua vez, criticam. Como avalia esses discursos?
Bruno Cava – André Singer tem dito que a vitória eleitoral do PT em 2006, 2010 e 2014 se deu graças à força do lulismo. Com isso ele está falando dessa aliança entre o presidente e uma massa desorganizada que ele chama de "subproletariado". Ele chama de "sub", porque não tem a estrutura orgânica de classe nos moldes fordistas, isto é, representada por sindicatos, associações de bairro, movimento estudantil e, finalmente, pelo partido operário.
Ocorre que o "sub" aí não é só uma falta de consistência, um déficit de consciência. Com as transformações do pós-fordismo, o "sub" implica outros tipos de organização, mobilização, comunicação. O "subproletariado" vem se organizando nessas novas coordenadas políticas de classe, o que não aparece em chaves de leitura mais ancoradas na visão ortodoxa do fordismo. Em 2014, os termos lulistas da representação não estão tão claros como em 2006 e 2010, especialmente nos grandes centros urbanos, onde aconteceram as grandes manifestações de 2013.
A crise da representação no Brasil, assim, é uma crise do lulismo. Só que essa crise não é tanto o esgotamento do lulismo; é a sua qualificação, é o descolamento entre a representação e os representados, o que eu chamei noutra ocasião, com Giuseppe Cocco, de "lulismo selvagem", ou o que Hugo Albuquerque chama de "ascensão da classe sem nome".
- Como explica a reeleição de Dilma diante dos protestos do ano passado, das manifestações contra a Copa e da militarização nas ruas? O que a reeleição indica acerca da relação do Estado com os movimentos sociais?
Bruno Cava - O governo Dilma foi madrasta com as lutas e mobilizações sociais. Ativistas presos durante a Copa, tanques e tribunais militares na favela, e os projetos de Belo Monte e Tapajós estão na conta desse governo que, em sérios apuros na eleição, anuncia arrogantemente a obrigação moral de que a esquerda vote nele.
O apoio de alguns movimentos organizados no 2º turno, como MTST, Brigadas Populares de MG ou grupos LGBT, foi para vetar o "pior maior", que seria um governo Aécio embalado com um discurso antiesquerda. A reeleição indica, novamente, a ausência de uma alternativa capaz de furar o cerco do sistema político. Nem Marina nem Luciana nem Eduardo Jorge conseguiram canalizar em escala a expressão massiva do descontentamento e do desejo por mudança que apareceu nas ruas no ano passado. Tenho a impressão, não confirmada por pesquisas, que quem estava nas ruas se distribuiu entre os candidatos, ou invalidou o voto.
- Como avalia ainda o fato de a disputa entre os dois candidatos ter sido tão apertada, com pouco mais de 3% dos votos? Na sua avaliação, o Brasil está dividido? Sim ou não e por quais razões?
Bruno Cava - O Brasil está dividido porque a desigualdade é das maiores do mundo, porque racismo, homofobia, machismo são fenômenos profundamente enraizados nas instituições. Mas a divisão eleitoral não coincide com essa polarização que é da estrutura social brasileira. Fora das caricaturas e memes, das adesões automáticas e certezas ideológicas, a maior parte do eleitorado vota no “menos pior”.
Dilma fez uma campanha mostrando que o Brasil não está tão mal, então é melhor não arriscar o pior, que a melhor mudança é a continuidade. Aécio fez uma campanha mostrando que o Brasil está tão mal conduzido, que qualquer mudança é melhor do que a continuidade, que é o pior. Essa divisão, no entanto, não significa que a maioria dos eleitores aderiu ideologicamente ao que seriam dois projetos distintos de Brasil, o do PT ou do PSDB. Esse é um discurso dicotômico que só existe nas formulações dos dois partidos, que se cacifam como inimigos entre si.
- Qual é o significado de mais de 25% de abstenções nessa eleição? Politicamente, como interpreta o fato de parte significativa do eleitorado não escolher um representante? As abstenções representam o voto das pessoas que foram às ruas no ano passado? Como, no seu entendimento, as pessoas que manifestaram sua indignação com as ações do Estado votaram?
Bruno Cava - É difícil apreender um sentido político das abstenções, que têm aumentado gradualmente numa curva histórica. Não houve grande mudança no índice de votos inválidos no segundo turno da eleição presidencial; os indecisos, na hora H, se decidiram. No Rio de Janeiro, no nível estadual, a soma de nulos, brancos e abstenções ganhou por mínima margem do primeiro colocado, Pezão, do PMDB. Esse resultado já me parece mais expressivo de uma recusa engrossada pelas manifestações, considerando que Pezão é o sucessor do governador Sérgio Cabral, o alvo preferencial dos protestos com o slogan "Fora Cabral" e a ocupação em frente à sua residência. É um fenômeno que merece maior estudo. Vale apontar, também, a onda por Tarcísio, o candidato do PSOL, que chegou a 9% dos votos numa eleição em que os quatro primeiros colocados (Pezão, Crivella, Garotinho e Lindberg) contaram com Dilma em seus palanques.
- A presidente Dilma disse que vai governar pela união. Isso significa que não haverá oposição ao governo, ou o PSDB fará oposição? Que alianças políticas vislumbra para o próximo mandato? Que PT sai das eleições deste ano? Na sua avaliação, qual partido sai fortalecido das eleições? O PMDB?
Bruno Cava - O discurso da união é praxe depois de uma vitória numa eleição majoritária, com ainda mais razão quando a margem é pequena. Esse discurso é protocolar. Ela falou em diálogo e alguns grupos, talvez em wishful thinking, já falam que vai dialogar com movimentos e lutas. Pode ser, também, diálogo com a oposição no Congresso, que se fortaleceu.
O PSDB se fortaleceu como oposição bem estruturada. No 1º turno, Aécio chegou a ter 15% das intenções de voto, numa reta estável, e havia rumores de que renunciaria à candidatura. A campanha do PT escolheu Marina como "mais pior" da vez, no que foi acompanhado pelo PSOL, que viu a chance de bater na Marina como oportunidade de diferenciação, e a campanha presidencial sugou quase toda a atenção. Enquanto isso o PSDB passeou, conquistou uma fatia significativa do eleitorado no Sul, Sudeste e Centro-Oeste, e aumentou suas bancadas. Ainda está para ser feita a avaliação dessa manobra perigosa no 1º turno, que quase levou Aécio à presidência.
Em certa medida, todos os partidos perderam, porque nenhum conseguiu, ou não têm condições de conseguir canalizar as transformações sociais e as novas lutas, não conseguindo recuperar confiança no sistema representativo. Dentro do jogo representativo, é claro, o apoio do PMDB se reafirma como dogma, o PSB caminha no sentido de emular o PMDB, o PT anuncia pela enésima vez a promessa de renovação e "guinada à esquerda", a Rede perdeu muito com o desastre da campanha de Marina e o PSOL ganhou força no Rio de Janeiro, única dissonância ao consenso petista-pemedebista, embora em nível nacional a votação tenha sido aquém do que se esperaria depois de tantas lutas e mobilizações em 2013.
- O que teria sido uma alternativa política à situação nesta eleição?
Bruno Cava - Não havia. Olhando em retrospectiva fica claro como as pressões eram muito fortes e bem articuladas pela anulação de qualquer alternativa, inclusive que Dilma se apresentasse como alternativa de si própria. É preciso continuar construindo essa alternativa, o que num país de dimensão continental e tantas diferenças é um desafio imenso.
Certamente não é possível seguir o caminho do PT nos anos 1980. Não basta restabelecer a horizontalidade, o participacionismo, a capacidade de composição de movimentos e lutas daquele período fundacional do PT. Não é uma questão de recuperar algum modelo puro em termos de procedimentos. A organização social do trabalho mudou. Mudou a forma das relações produtivas, do tempo, da comunicação, numa situação pós-fordista. Isto não significa que as estruturas de classe fordistas desapareceram, mas que foram requalificadas.
Sindicatos, movimentos, coletivos não desaparecem, mas precisam se reinventar, se rearticular com outras redes e fluxos produtivos, semióticos e comunicativos.
No filme "Terra em transe", Glauber critica uma imagem do povão do imaginário "nacional-popular" que até hoje está no imaginário de esquerda. É a imagem daquela massa alegre, autêntica, apaixonada, tantas vezes romantizada pela esquerda, no que há certa desqualificação reversa. Esse povão fica à deriva, amorfo, entre as negociatas da elite e os nobres ideais de emancipação da esquerda intelectualizada. Até hoje "povão" é uma expressão ambígua, inclusive à esquerda.
Hoje, talvez, com a sucessiva organização de classe no pós-fordismo, se possa substituir a imagem do "povão" pelo conceito de multidão, nos termos de Antonio Negri e Michael Hardt. A multidão brasileira está nos vetores de mobilização, de reelaboração das dificuldades e experiências de sofrimento, de vida na metrópole, e também de alegria na cooperação, no comum, que a tornam politicamente qualificada. Além de qualquer confinamento sociológico ("batalhadores", "ralé"), da ciência política aplicada às eleições ("subproletariado") ou economicista ("nova classe média"), a multidão brasileira é a única força motriz capaz de requalificar o desenvolvimento com mais democracia. E ela está em êxodo das tentativas de enquadrá-la. Como isso se organiza e continuará se organizando, é tarefa de pesquisa e envolvimento militante.
(*) Bruno Cava é graduado e pós-graduado em Engenharia de Infraestrutura Aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA, graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e mestre em Direito na linha de pesquisa Teoria e Filosofia do Direito. É blogueiro do Quadrado dos loucos e escreve em vários sítios; ativista nas jornadas de 2013 e nas ocupas brasileiras em 2011-2012; participa da rede Universidade Nômade e é coeditor das revistas Lugar Comum e Global Brasil.
(Por Patricia Fachin/IHU On-Line)
Eu acredito que o Pezão fará um bom governo. As pessoas acham que na verdade o Cabral que vai governar, mas pra mim o Cabral pode até estar por trás, mas o Pezão tomará as decisões.
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