sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Dilma 2 (Eduardo Giannetti)




O enredo foi dramático e tortuoso ao extremo, mas o desfecho seguiu a convenção do gênero: o trator governista garantiu a vitória da presidente, como é praxe desde a adoção da reeleição. A incerteza sobre o resultado das urnas deu lugar à dúvida sobre os rumos da política econômica no segundo mandato. Curva de aprendizado ou aposta redobrada?

É difícil não carregar nas tintas: economia em recessão; investimento em queda livre; deficit fiscal elevado; inflação alta e artificialmente represada (preços administrados e câmbio) e volta da vulnerabilidade externa (deficit em conta corrente acima de U$ 80 bilhões em 2014).

Se Lula 1 preparou o terreno para o avanço social em Lula 2, o estrago de Dilma 1 ameaça sepultar essa conquista em Dilma 2.

Considerando a gravidade do quadro, não deixa de haver justiça na recondução de Dilma ao Planalto. Quem armou e subestimou o tamanho da encrenca que cuide dela agora. À vencedora, os pepinos.

Dois cenários básicos se delineiam. O primeiro, menos pessimista, é o da curva de aprendizado. Passado o ardor da campanha, o governo admite pelo menos parte dos erros cometidos e promove uma correção de rumos.

Como a reputação não ajuda, isso exigirá bem mais que juras, jogo de cena e abertura ao diálogo. Exigirá transparência e resultados, com ênfase na área fiscal, além de uma presidente que aceite abrir mão da condição de patroa de uma equipe econômica café com leite.

Alguns indícios reforçam este cenário. Com anos de atraso, o governo avançou no marco regulatório para o investimento privado em infraestrutura; aceitou reduzir os repasses da bolsa-BNDES e descobriu que não é capaz de baixar os juros no grito. Economistas próximos ao governo tornaram-se críticos abertos da "nova matriz" e o ministro da Fazenda está de "aviso prévio".

O outro cenário é o da aposta redobrada. A reeleição seria a prova do sucesso e o sinal verde para ir até o fim. Não fosse a conjuntura externa adversa, tudo teria sido ainda melhor do que foi. Vale aqui o princípio da contra-indução, enunciado por Mario Henrique Simonsen: "uma experiência que dá errado inúmeras vezes deve ser repetida até que dê certo".

Entre os elementos de apoio à aposta redobrada destacam-se: a retórica agressiva e populista da campanha, incluindo a desmoralização do Banco Central e o autismo fiscal; o estado de negação em que vivem expoentes do petismo e a dificuldade da presidente em admitir erros e delegar poderes.

Some-se a isso a bomba-relógio do petrolão, a queda de preço das commodities, a alta dos juros americanos e a eventual perda do "grau de investimento" e a conclusão é só uma: a Argentina é logo ali.
Folha de S. Paulo

A reeleição de Dilma e a síndrome do ‘menos pior’ (Bruno Cava/entrevista)

- Qual é a sua análise da reeleição da presidente Dilma? Politicamente, qual é o significado dessa reeleição e de mais quatro anos de gestão petista, totalizando 16 anos de governo?

Bruno Cava - O processo como um todo indica o esgotamento final da representação político-partidária no Brasil, na medida em que um grande espaço político não foi ocupado por nenhuma das forças que se apresentaram nessa eleição. Fala-se muito em crise econômica, mas é também uma crise política, de incapacidade do governo de inovar e remobilizar produtivamente a sociedade para um novo ciclo de desenvolvimento, mais qualificado. As manifestações de 2013 e as transformações sociais não encontraram repercussão no debate eleitoral, reduzido rapidamente a campanhas negativas, investidas acusatórias, denuncistas, a um encadeamento de angústias, fobias e reações raivosas que tomou as redes sociais e, no final, parte das ruas do país.

A reeleição de Dilma é, antes, a reafirmação do sistema político brasileiro em não mudar os termos de sua disputa, reencenando a polarização entre PT e PSDB, uma dialética do menos pior que substitui o esvaziamento da dinâmica político-partidária. O último ato dessa peça, com Dilma de branco pedindo diálogo com a oposição, teve como pano de fundo o sorriso amarelo de Michel Temer. Ali estão Kátia Abreu, Collor, Pezão, Sartori e tantos outros, onde também serão bem-vindos banqueiros, grandes proprietários e megaempresários que, terminada a eleição, se reacomodam no poder constituído. Esse pano de fundo inquestionado seria o mesmo, caso Aécio vencesse.

Quando Marina sugeriu, no 1º turno, que tentaria governar sem o PMDB, até parte da esquerda respondeu imediatamente que não se governa sem o PMDB. É um dogma. E não é só o PMDB enquanto partido, mas uma lógica, o que Marcos Nobre tem chamado de pemedebismo. Isto não significa que PT e PSDB sejam iguais, embora estejam implicados num mecanismo igualmente infernal, que leva sempre o governo mais à direita e o impermeabiliza às alternativas.
Fora dos alinhamentos automáticos de um lado e de outro, instintos maturados por 20 anos de polarização PT-PSDB e que reaparecem nas horas críticas como certezas ideológicas entre quem é esquerda e direita, boa parte do eleitorado não partilha dessa mesma chave binária de classificação.

No 2º turno, Marina levantou a bola para Aécio com um conjunto de condições, como manutenção da maioridade penal, meio ambiente e demarcação de terras indígenas, que tornariam o candidato mais palatável para aquela faixa de indecisos que não queria a continuidade do governo do PT, mas tem desconfianças quanto ao PSDB.

Aécio não se comprometeu e o apoio de Marina perdeu força, porque ela perdeu a confiança de uma fatia de apoiadores (me incluo neste grupo). Aécio então optou por reforçar seu discurso à direita, falando em Cuba, "ameaça bolivariana", e agressivamente prometendo libertar o Brasil do PT, o que visou eleitores que já iriam votar nele de qualquer modo. Ele repetiu a estratégia usada para arrancar votos da Marina para obter ainda mais votos de seus 21,5%, mas esses que faltavam eram justamente aqueles que não tinham migrado para ele com aquela estratégia. E teve um contraefeito indesejado.

Essa estratégia não só afugentou indecisos, como propiciou à Dilma assumir o outro polo, impingindo a Aécio uma campanha preconceituosa e demofóbica, o que por sua vez provocou uma minionda já no limiar da votação, arrastando inclusive abstenções e votos que seriam nulos. Isto não demonstra que Dilma encampou uma posição à esquerda em relação aos últimos quatro anos de governo, mas sim como é fácil mostrar-se à esquerda quando você tem o PSDB do outro lado. Então talvez tenha sido interessante tê-lo do outro lado e assim reduzir a disputa a esses termos. Esse, aliás, foi o cálculo da campanha do PT no primeiro turno, quando centrou fogo em Marina.

- Alguns analistas dizem que não há problema no fato de o PT estar no poder por 16 anos, porque foram dois governos de Lula e outros dois governos de Dilma. Outros, por sua vez, criticam. Como avalia esses discursos?

Bruno Cava – André Singer tem dito que a vitória eleitoral do PT em 2006, 2010 e 2014 se deu graças à força do lulismo. Com isso ele está falando dessa aliança entre o presidente e uma massa desorganizada que ele chama de "subproletariado". Ele chama de "sub", porque não tem a estrutura orgânica de classe nos moldes fordistas, isto é, representada por sindicatos, associações de bairro, movimento estudantil e, finalmente, pelo partido operário.

Ocorre que o "sub" aí não é só uma falta de consistência, um déficit de consciência. Com as transformações do pós-fordismo, o "sub" implica outros tipos de organização, mobilização, comunicação. O "subproletariado" vem se organizando nessas novas coordenadas políticas de classe, o que não aparece em chaves de leitura mais ancoradas na visão ortodoxa do fordismo. Em 2014, os termos lulistas da representação não estão tão claros como em 2006 e 2010, especialmente nos grandes centros urbanos, onde aconteceram as grandes manifestações de 2013.

A crise da representação no Brasil, assim, é uma crise do lulismo. Só que essa crise não é tanto o esgotamento do lulismo; é a sua qualificação, é o descolamento entre a representação e os representados, o que eu chamei noutra ocasião, com Giuseppe Cocco, de "lulismo selvagem", ou o que Hugo Albuquerque chama de "ascensão da classe sem nome".


- Como explica a reeleição de Dilma diante dos protestos do ano passado, das manifestações contra a Copa e da militarização nas ruas? O que a reeleição indica acerca da relação do Estado com os movimentos sociais?

Bruno Cava - O governo Dilma foi madrasta com as lutas e mobilizações sociais. Ativistas presos durante a Copa, tanques e tribunais militares na favela, e os projetos de Belo Monte e Tapajós estão na conta desse governo que, em sérios apuros na eleição, anuncia arrogantemente a obrigação moral de que a esquerda vote nele.

O apoio de alguns movimentos organizados no 2º turno, como MTST, Brigadas Populares de MG ou grupos LGBT, foi para vetar o "pior maior", que seria um governo Aécio embalado com um discurso antiesquerda. A reeleição indica, novamente, a ausência de uma alternativa capaz de furar o cerco do sistema político. Nem Marina nem Luciana nem Eduardo Jorge conseguiram canalizar em escala a expressão massiva do descontentamento e do desejo por mudança que apareceu nas ruas no ano passado. Tenho a impressão, não confirmada por pesquisas, que quem estava nas ruas se distribuiu entre os candidatos, ou invalidou o voto.

 - Como avalia ainda o fato de a disputa entre os dois candidatos ter sido tão apertada, com pouco mais de 3% dos votos? Na sua avaliação, o Brasil está dividido? Sim ou não e por quais razões?

Bruno Cava - O Brasil está dividido porque a desigualdade é das maiores do mundo, porque racismo, homofobia, machismo são fenômenos profundamente enraizados nas instituições. Mas a divisão eleitoral não coincide com essa polarização que é da estrutura social brasileira. Fora das caricaturas e memes, das adesões automáticas e certezas ideológicas, a maior parte do eleitorado vota no “menos pior”.

Dilma fez uma campanha mostrando que o Brasil não está tão mal, então é melhor não arriscar o pior, que a melhor mudança é a continuidade. Aécio fez uma campanha mostrando que o Brasil está tão mal conduzido, que qualquer mudança é melhor do que a continuidade, que é o pior. Essa divisão, no entanto, não significa que a maioria dos eleitores aderiu ideologicamente ao que seriam dois projetos distintos de Brasil, o do PT ou do PSDB. Esse é um discurso dicotômico que só existe nas formulações dos dois partidos, que se cacifam como inimigos entre si.

- Qual é o significado de mais de 25% de abstenções nessa eleição? Politicamente, como interpreta o fato de parte significativa do eleitorado não escolher um representante? As abstenções representam o voto das pessoas que foram às ruas no ano passado? Como, no seu entendimento, as pessoas que manifestaram sua indignação com as ações do Estado votaram?

Bruno Cava - É difícil apreender um sentido político das abstenções, que têm aumentado gradualmente numa curva histórica. Não houve grande mudança no índice de votos inválidos no segundo turno da eleição presidencial; os indecisos, na hora H, se decidiram. No Rio de Janeiro, no nível estadual, a soma de nulos, brancos e abstenções ganhou por mínima margem do primeiro colocado, Pezão, do PMDB. Esse resultado já me parece mais expressivo de uma recusa engrossada pelas manifestações, considerando que Pezão é o sucessor do governador Sérgio Cabral, o alvo preferencial dos protestos com o slogan "Fora Cabral" e a ocupação em frente à sua residência. É um fenômeno que merece maior estudo. Vale apontar, também, a onda por Tarcísio, o candidato do PSOL, que chegou a 9% dos votos numa eleição em que os quatro primeiros colocados (Pezão, Crivella, Garotinho e Lindberg) contaram com Dilma em seus palanques.


- A presidente Dilma disse que vai governar pela união. Isso significa que não haverá oposição ao governo, ou o PSDB fará oposição? Que alianças políticas vislumbra para o próximo mandato? Que PT sai das eleições deste ano? Na sua avaliação, qual partido sai fortalecido das eleições? O PMDB?

Bruno Cava - O discurso da união é praxe depois de uma vitória numa eleição majoritária, com ainda mais razão quando a margem é pequena. Esse discurso é protocolar. Ela falou em diálogo e alguns grupos, talvez em wishful thinking, já falam que vai dialogar com movimentos e lutas. Pode ser, também, diálogo com a oposição no Congresso, que se fortaleceu.

O PSDB se fortaleceu como oposição bem estruturada. No 1º turno, Aécio chegou a ter 15% das intenções de voto, numa reta estável, e havia rumores de que renunciaria à candidatura. A campanha do PT escolheu Marina como "mais pior" da vez, no que foi acompanhado pelo PSOL, que viu a chance de bater na Marina como oportunidade de diferenciação, e a campanha presidencial sugou quase toda a atenção. Enquanto isso o PSDB passeou, conquistou uma fatia significativa do eleitorado no Sul, Sudeste e Centro-Oeste, e aumentou suas bancadas. Ainda está para ser feita a avaliação dessa manobra perigosa no 1º turno, que quase levou Aécio à presidência.

Em certa medida, todos os partidos perderam, porque nenhum conseguiu, ou não têm condições de conseguir canalizar as transformações sociais e as novas lutas, não conseguindo recuperar confiança no sistema representativo. Dentro do jogo representativo, é claro, o apoio do PMDB se reafirma como dogma, o PSB caminha no sentido de emular o PMDB, o PT anuncia pela enésima vez a promessa de renovação e "guinada à esquerda", a Rede perdeu muito com o desastre da campanha de Marina e o PSOL ganhou força no Rio de Janeiro, única dissonância ao consenso petista-pemedebista, embora em nível nacional a votação tenha sido aquém do que se esperaria depois de tantas lutas e mobilizações em 2013.

- O que teria sido uma alternativa política à situação nesta eleição?

Bruno Cava - Não havia. Olhando em retrospectiva fica claro como as pressões eram muito fortes e bem articuladas pela anulação de qualquer alternativa, inclusive que Dilma se apresentasse como alternativa de si própria. É preciso continuar construindo essa alternativa, o que num país de dimensão continental e tantas diferenças é um desafio imenso.

Certamente não é possível seguir o caminho do PT nos anos 1980. Não basta restabelecer a horizontalidade, o participacionismo, a capacidade de composição de movimentos e lutas daquele período fundacional do PT. Não é uma questão de recuperar algum modelo puro em termos de procedimentos. A organização social do trabalho mudou. Mudou a forma das relações produtivas, do tempo, da comunicação, numa situação pós-fordista. Isto não significa que as estruturas de classe fordistas desapareceram, mas que foram requalificadas.


Sindicatos, movimentos, coletivos não desaparecem, mas precisam se reinventar, se rearticular com outras redes e fluxos produtivos, semióticos e comunicativos.

No filme "Terra em transe", Glauber critica uma imagem do povão do imaginário "nacional-popular" que até hoje está no imaginário de esquerda. É a imagem daquela massa alegre, autêntica, apaixonada, tantas vezes romantizada pela esquerda, no que há certa desqualificação reversa. Esse povão fica à deriva, amorfo, entre as negociatas da elite e os nobres ideais de emancipação da esquerda intelectualizada. Até hoje "povão" é uma expressão ambígua, inclusive à esquerda.

Hoje, talvez, com a sucessiva organização de classe no pós-fordismo, se possa substituir a imagem do "povão" pelo conceito de multidão, nos termos de Antonio Negri e Michael Hardt. A multidão brasileira está nos vetores de mobilização, de reelaboração das dificuldades e experiências de sofrimento, de vida na metrópole, e também de alegria na cooperação, no comum, que a tornam politicamente qualificada. Além de qualquer confinamento sociológico ("batalhadores", "ralé"), da ciência política aplicada às eleições ("subproletariado") ou economicista ("nova classe média"), a multidão brasileira é a única força motriz capaz de requalificar o desenvolvimento com mais democracia. E ela está em êxodo das tentativas de enquadrá-la. Como isso se organiza e continuará se organizando, é tarefa de pesquisa e envolvimento militante.
(*) Bruno Cava é graduado e pós-graduado em Engenharia de Infraestrutura Aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA, graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e mestre em Direito na linha de pesquisa Teoria e Filosofia do Direito. É blogueiro do Quadrado dos loucos e escreve em vários sítios; ativista nas jornadas de 2013 e nas ocupas brasileiras em 2011-2012; participa da rede Universidade Nômade e é coeditor das revistas Lugar Comum e Global Brasil.

(Por Patricia Fachin/IHU On-Line)

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Ao vencedor, a pedreira (Fernando Gabeira)




Quando um presidente se reelege, não há lua de mel, apenas curtas férias conjugais. O dia seguinte já coloca em sua agenda quase todos os problemas que aqueceram a campanha eleitoral. O primeiro e mais importante é o econômico. As necessidades de ajustes de rumo podem levar Dilma a tomar algumas medidas que ela própria condenava, sobretudo aumento nos preços da gasolina e da energia.

O preço da energia subiu 17% enquanto todos se envolviam na campanha. No campo político, Dilma terá de se relacionar com um Congresso bem mais fragmentado e com maior presença da oposição. As dificuldades de organizar a base de governo e acumular recursos para a reeleição estão na origem dos grandes escândalos do Brasil.

O da Petrobras está apenas começando. Passado o momento eleitoral, os depoimentos de Paulo Roberto Costa e do doleiro Alberto Youssef serão conhecidos na íntegra, com os nomes de todos os políticos envolvidos. A oposição chegou mais forte ao final da campanha do que nas eleições anteriores. Pela primeira vez, sua presença nas ruas foi relevante.

Ao término de um processo tão disputado como esse, o vencedor costuma lançar uma mensagem de reconciliação. Mas o PT e seus aliados têm pela frente uma consistente rejeição e devem, simultaneamente, lidar com a estagnação econômica e as acusações de que assaltaram a Petrobras.

Foi uma campanha de mentiras e calúnias. Elas vão perder força para que entrem na agenda um outro tópico: as verdades escondidas pela propaganda oficial. Dados sobre o ensino em escala nacional, a redução da pobreza e o desmatamento são apenas alguns que esperam o fim do momento eleitoral para passarem por análises. Estamos diante de mais quatro anos de governo e muitos temas de campanha serão lembrados ao longo do caminho.

É um tempo de reconciliação, mas isso não significa que o debate sobre o presente e o futuro do Brasil irá sumir. Os eleitores estiveram tão envolvidos na campanha que não tiveram tempo para avaliar uma boa e suprapartidária notícia: ontem choveu no Sudeste. O quanto vai chover é outra dúvida, passada a certeza sobre o vencedor nas urnas. Guimarães Rosa dizia : quem moi no áspero não fantasia. Os fatos, a partir da agora, valem mais que a idílica propaganda de campanha eleitoral. O ano de 2015 será uma pedreira.

Reeleita, presidente precisa se reinventar (Carlos Melo)

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Que não haja ilusão: a eleição não somou, dividiu - se não fragmentou. Qualquer que fosse o resultado, seria assim. Agora, o desafio para reunir os cacos do diálogo e de algum consenso que a intemperança dos últimos tempos estraçalhou. A oposição poderia ter sinal trocado, mas o mesmo dedo em riste e faca nos dentes, ressentida, esperando a volta. Que não haja ilusão: o pleito definiu o vencedor ao estilo Machado - “ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”. Esta eleição não termina com a votação: segue hoje e amanhã, com temperatura e pressão elevadas.

A presidente reeleita não é a Dilma de 2010, cercada de boa vontade e esperança. As expectativas a respeito de seu novo governo são defensivas: defender o emprego, a inclusão, o partido; defender o governo. Terá a desconfiança de setores econômicos que não se limitam aos demonizados “banqueiros”. Há a classe média, a mídia, os críticos melindrados. E, claro, um Congresso mais fisiológico e fracionado por interesses diversos, divergentes, difusos, e um governo com menor margem fiscal para saciar apetites fisiológicos.

Atender e recompor a credibilidade demandará morder a língua, desdizer o que se disse, capitular ao inimigo que venceu. Há pouco espaço político para isso, pois a base social, criada e cevada na crença de soluções simples, não compreenderá a complexidade da política, obliterada pelo debate. Dilma não é Sarney, para, no dia seguinte, praticar estelionato e passar o resto do mandato com cara de paisagem. Seus custos e princípios são maiores. Ao mesmo tempo, fazer suavemente o ajuste não contornará os espíritos mais sectários. “Crise” é o nome dessa sinuca.

Os desafios econômicos são grandes, mas os obstáculos políticos são maiores - a política mal manejada pode pôr a perder avanços econômicos. Limitar o necessário ao medíocre possível não é saída. O País pressionará por mudança logo. O desafio requer uma presidente que de modo algum divida a galera em duas torcidas, mas que recomponha a unidade do cristal trincado. Que não haja ilusão, o País carecerá de liderança política de altíssimo nível. A presidente terá de se reinventar.
Fonte: O Estado de S. Paulo

Detritos de campanha (Demétrio Magnoli)



Aécio tem o direito de lamentar, mas não o de reclamar: Minas Gerais conferiu o triunfo a Dilma. Os 3,3 milhões de votos que separaram a presidente do desafiante correspondem à soma quase exata da vantagem que ela obteve em Minas com a diferença que, meses atrás, ele planejou alcançar em “seu” estado. Minas é um “Brasil em miniatura” num sentido bem preciso: sua porção norte exibe indicadores sociais similares aos do Nordeste, contrastantes com os da parte sul. A vitória da presidente candidata reflete a força esmagadora do aparelho de Estado. No Brasil, como em tantos outros países ainda marcados por carências e desigualdades sociais, o governo quase sempre tem os votos dos mais pobres.

Analistas superficiais apontam para um elemento de continuidade: a persistência da polarização entre PT e PSDB, um traço da política brasileira que completa duas décadas. Entretanto, a eleição de ontem
singulariza-se por um elemento de ruptura. O lulopetismo venceu três eleições sucessivas por larga maioria, mas, agora, triunfou quase no fio de cabelo. Mais : o PT perdeu por amplas margens no eleitorado urbano das grandes e médias cidades do Centro-Sul, uma tendência que observamos, em menor escala, nos pleitos de 2006 e 2010. A base política do governo deslocou-se para longe dos polos sociais e econômicos mais dinâmicos.

Para vencer, a campanha de Dilma desceu aos subterrâneos, bombardeando todos os adversários com insultos e calúnias. Eduardo Campos (“playboy mimado”), Marina Silva (“pretende tirar a comida da mesa dos pobres”) e Aécio (“alcoólatra, drogado e violento com as mulheres”) foram tratados como “inimigos do povo”. É um sinal assustador para a saúde das instituições democráticas. No fim, a própria Dilma insurgiu-se contra o mensageiro, para fugir da mensagem, acusando a revista ‘‘Veja’’ de promover um “processo golpístico”. O governo já deveria saber, 12 anos depois, que é missão da imprensa publicar sem dilação as informações que têm. O escândalo na Petrobras não desaparecerá por um arroubo de fúria do Planalto. Que o segundo mandato não seja envenenado, desde o início, por uma cruzada contra a liberdade de informar.

Fonte: O Globo

O PT chega ao quarto governo (Renato Janine Ribeiro)



Foi duro, exigiu nervos de aço, mas o PT ganhou sua quarta eleição presidencial. Mas fica o risco de ter sido uma vitória de Pirro, para lembrar o rei do Épiro que vencia os romanos, porém a tal custo que alguém lhe disse: "Mais três vitórias como esta, e estamos perdidos"... Examinemos o que pode acontecer de agora em diante. Não será fácil para a vitoriosa.

Sua primeira dificuldade é com a mídia e a opinião pública. Uma comentarista de televisão teria dito há um tempo que a população (ou o povo) vai de um lado, e a opinião pública de outro. A "opinião pública" é contrária ao PT, mas o povo deu vitória a este partido em seguidas eleições. A mídia, o empresariado, a classe média sobretudo paulista, mas não só, destoam do que a maioria de pobres quer. A sociedade está dividida, com os mais vocais na oposição, os silenciosos (ou silenciados, como dizia Fernando Morais) a favor do governo. Não tivemos conflito dessa magnitude desde 1989, quando Collor venceu Lula com golpes baixos, mas na ocasião a mídia não fechou tanto assim com o vencedor. Pode Dilma vencer o ódio? A forma usual - que é chamar alguém da oposição para integrar o ministério - soa improvável.

Somem-se as dificuldades da presidenta com a política. Ela foi escolhida por Lula, dentre outros nomes possíveis, porque mostrou qualidades como gestora, além de ser a pessoa mais simpática no primeiro escalão à produção e aos empresários. Hoje é criticada pela gestão, a produção cresce pouco e o patronato não gosta dela. Um de seus problemas seria que não dialoga, manda.

Isso afeta as relações com os empresários, mas também com os políticos e com o próprio povo. São três dimensões autônomas nas quais é preciso fazer política, isto é, não dar ordens, mas escutar e dialogar. A dimensão dos empresários não é bem democrática, porque o peso econômico deles depende do capital - mas negociar com eles é uma imposição da realidade. Depois, temos os políticos eleitos que, por mais que se desconfie deles, representam o povo e nesta condição tomam parte nas decisões.

Já a conversa com o povo, que deixei em terceiro lugar, é a mais importante no plano democrático, mas foi desconsiderada pelo PT fora do período eleitoral. Aqui está o eixo das dificuldades de comunicação de Dilma. O problema não é gaguejar, não está na construção das frases. Está na capacidade de conquistar o povo. FHC ganhou a classe média, Lula arrasava no povão. Dilma ficou atrás de ambos. Para um governo popular, a comunicação não é mera técnica, é da essência das coisas. Mas o PT desistiu dela. Não tanto por falta de uma hipotética "lei de meios de comunicação", mas porque renunciou a disputar a hegemonia das consciências. Preferiu ganhar votos pelo aumento (necessário, justo) do consumo, em vez de dar nova vida ao ponto que fez sua glória na oposição: o do caráter ético da luta contra a miséria.

Dilma precisaria do beneplácito pelo menos do patronato e do Congresso, e de um apoio decidido - e organizado, senão orgânico - do eleitorado. Com nenhum deles, porém, priorizou o diálogo durante o primeiro mandato. Quererá mudar? Conseguirá?

Há também o ministério. Ao contrário da equipe de Lula, que brilhava, temos um grupo discreto, em que até as estrelas do governo precedente - como Celso Amorim - empalideceram. A presidente se disporá a delegar mais, a confiar mais? Parará de corrigir os auxiliares em público? Esta não é só uma questão de método. É essencial para que o governo funcione. Se os ministros não tiverem senso de iniciativa, pouco farão e isso repercutirá em todo o sistema.

Vamos ao espectro político.

Por um lado, temos uma oposição que, mesmo perdendo, sai das urnas reforçada. Nem que seja sobretudo pelo ódio. Cada lado armazena um estoque enorme de insultos ao outro. Parei de ver programas políticos porque me sentia diante de uma briga infantil. Os dois lados reclamavam do clima de ódio, mas cada um acusava o outro de ter começado. Parecia coisa de criança:

"Ele puxou o meu cabelo!"

"Mas ela deu primeiro um chute na canela!"

Foi um espetáculo triste - e infelizmente pode continuar.

Então, suponhamos que Dilma faça um gesto de grandeza na direção do outro lado. Será aceito? Em que consistirá? Hoje, a simples boa educação não basta. Não dá mais para desejar feliz aniversário a FHC ou levar todos os ex-presidentes no avião oficial para o enterro de Mandela. Será preciso efetuar concessões. Mas quais? O melhor seria comprar o que puder da agenda econômica da oposição. Não o aumento de juros, a redução de gastos públicos, com arrocho salarial e social - mas pelo menos uma desburocratização intensa, regras claras e estáveis para o investimento privado, fim de qualquer criatividade contábil. Mais que isso é difícil, porque seria renunciar aos fundamentos mesmos da divergência com o PSDB.

E há outro problema. Nossos governos de centro-esquerda se elegem com votos decisivos da esquerda, mas depois governam com os deputados necessários da direita. Em São Paulo, duas vezes o PT apoiou Mario Covas no segundo turno, para depois ele governar com o então PFL, que nas eleições apoiara a direita. Em sua campanha, Dilma contou com o apoio decidido de quem defende a liberdade gay - mas no primeiro mandato ela vetou o kit anti-homofobia. Para que lado irá? Uma possibilidade seria uma agenda avançada na questão dos costumes, abrindo-se para a esquerda, e um gesto de conciliação para a direita empresarial, que está mais interessada na economia do que em questões comportamentais. Mas isso exigirá mais habilidade e gosto políticos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Dilma 2, a crise (Demétrio Magnoli)





Se, neste domingo, Dilma Rousseff obtiver a reeleição, estará instalado um governo de crise. A candidata terá sido eleita por metade do país, contra a vontade do eleitorado urbano do Centro-Sul e derrotando as aspirações de mudança que detonaram as manifestações de junho de 2013. Num cenário de acelerada deterioração econômica, o governo será compelido a restringir o crédito e o consumo, desonrando a nota promissória assinada pela candidata durante a campanha eleitoral. Refém da máquina do lulopetismo, a presidente que fracassou em seu primeiro mandato precisará inclinar-se a uma série de exigências políticas do PT. Então, lembraremos com saudade dos anos medíocres de Dilma 1.

Em eleições democráticas, o vencedor fica com as batatas. Na hipótese de triunfo de Dilma, mesmo que por um mísero voto de diferença, ela terá a legitimidade jurídica para governar — e Aécio deverá cumprimentá-la como presidente de todos os brasileiros. A legitimidade política, contudo, é algo diferente. Uma vitória do lulopetismo no domingo não significaria a reprodução dos triunfos anteriores de Lula e da própria Dilma, mas a reiteração anômala de um governo cujo tempo passou. Uma prova elucidativa disso está na campanha da presidente, que repete lendas sobre um passado já distante (o governo de FH) sem nunca articular um rumo de futuro.

A caravela do lulopetismo chegou ao porto do poder insuflada pelos ventos fortes de uma utopia possível: mais igualdade e justiça social. Aquela promessa de mudança rendeu alguns frutos, mas estiolou-se aos poucos, degradando-se num projeto político-partidário vazio. Dilma nada tem, hoje, a dizer aos cidadãos. A narrativa central de sua campanha é que todos os adversários (Eduardo Campos, Marina Silva, Aécio Neves) encarnam o mal absoluto. Só o PT e seus patrióticos aliados, entre os quais despontam as mais nefastas figuras da República, têm o direito de conduzir o país — eis a mensagem absurda veiculada pela campanha oficial. Dilma 2 seria o resultado do triunfo do medo, isto é, de uma inércia sustentada pela força esmagadora do aparelho de Estado. A presidente teria o cetro e o trono, mas careceria da legitimidade tipicamente democrática, que decorre da persuasão.

O lulopetismo beneficiou-se de um ciclo econômico internacional especialmente favorável, tanto sob o ponto de vista dos fluxos de capitais quanto sob o dos termos de intercâmbio. Nunca antes, sob a vigência da democracia, um mesmo bloco político experimentara doze anos ininterruptos de poder. Fenômenos similares de estabilização política, largamente influenciados pelo ciclo econômico global, verificaram-se na Rússia, na Turquia, na Venezuela e na Argentina. Contudo, desde 2010, ruíram os fundamentos externos do crescimento econômico moldado pela expansão do crédito e do consumo. A reversão do ciclo colhe o Brasil despreparado para enfrentar os desafios da conjuntura mundial. Num hipotético segundo mandato, Dilma seria obrigada a velejar contra o vento sem conhecer os segredos da triangulação.

Confrontado com a reversão do ciclo, o chavismo engajou-se na aventura de desafiar os manuais da economia de mercado, conduzindo a Venezuela aos abismos da inflação, do desabastecimento e de uma severa recessão. O lulopetismo, porém, não é uma variedade amenizada de chavismo. Ignorando o clamor dos chamados "desenvolvimentistas" do PT, Lula rejeita os desvios aventureiros extremos, preferindo oscilar em torno do eixo da ortodoxia. Os rumores sobre um possível retorno de Antonio Palocci ao leme da economia podem até se revelar falsos, mas indicam que Dilma 2 não nos atiraria no redemoinho da "venezuelanização". Entretanto, também não avançaria na rota das reformas indispensáveis para inaugurar um novo ciclo de crescimento, que foram demonizadas impiedosamente durante a campanha eleitoral.

O vetor resultante é um governo de crise crônica. Num cenário de estagnação da economia e perda do dinamismo do mercado de trabalho, combatendo surtos inflacionários, ameaçado por desequilíbrios nas contas públicas e externas, o segundo mandato seria assombrado pelos amplos desdobramentos políticos do escândalo de corrupção na Petrobras. Então, uma presidente que perdeu o respeito da opinião pública se converteria em refém das múltiplas, contraditórias exigências de uma coalizão de poder cada vez mais esgarçada.

Dilma nunca teve peso específico no PT. Se reeleita, não terá nem mesmo a perspectiva de um novo mandato, que funciona como reserva estratégica de poder. A presidente fraca teria que se inclinar às correntes do lulopetismo descontentes com o jogo de contrapesos típico das democracias. O Congresso indócil, pronto a exercitar a arte da chantagem, o STF fortalecido pelo desenlace do julgamento do "mensalão" e a imprensa independente, que insiste em divulgar notícias desagradáveis, se converteriam em alvos do fogo do Executivo. Se chegar a existir, Dilma 2 será o governo dos "conselhos participativos" constituídos por movimentos sociais palacianos, de seletivas escolhas de juízes destinadas a desfigurar a corte suprema, da mobilização de ferramentas financeiras e políticas de atemorização da imprensa. No compasso da crise, conheceremos de fato a alma autoritária do PT.

A linguagem de uma disputa eleitoral não é mero fogo fátuo, que se dissipa na hora da proclamação do vencedor, mas um poderoso indicador do estado do sistema político. A campanha de Dilma pintou seus adversários como "inimigos do povo", não como lideranças oposicionistas legítimas, e empregou largamente os recursos da difamação e da injúria pessoais. Num hipotético segundo mandato, seu governo não promoverá a ruptura econômica sonhada pelos insensatos, mas operará na esfera política segundo os critérios definidos nesses três meses de fúria. É só isso que, 12 anos depois, tem a oferecer o lulopetismo.

Fonte: O Globo (23/10/14)

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O Brasil é grande (Luiz Carlos Azedo)




Uma das maiores falácias dessa campanha eleitoral é a suposta polarização entre trabalhadores e patrões, pobres e ricos, esquerda e direita, a partir de uma perspectiva ideológica com que se procura caracterizar a disputa entre a presidente Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB). Na verdade, trata-se de uma velha estratégia do PT para mobilizar a militância, que estava desmotivada por causa das denúncias de corrupção envolvendo o partido, principalmente depois da Operação Lava-Jato.

Sun Tzu, o famoso general chinês da Arte da guerra, já dizia que um exército encurralado, sem uma rota de fuga, se torna muito mais perigoso — porque lutará até a morte. É mais ou menos o que está acontecendo com a militância petista encastelada nos órgãos federais, empresas estatais e fundos de pensão. Até o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva faz a campanha do PT nos estados com uma virulência que não condiz com um ex-ocupante da Presidência. Teme ter a imagem “desconstruída”, da mesma forma como o seu antecessor.

Quem acompanha os militantes petistas nas redes sociais tem a sensação de que o Brasil vive um processo revolucionário e que haveria uma contra-revolução em marcha. O que se passa não tem nada a ver com isso, muito pelo contrário. Não há ameaça de retrocesso; há uma estagnação. O ímpeto transformador das políticas de transferência de renda do governo Lula, com o Bolsa Família, nunca teve nada de revolucionário, nem reformista. Trata-se tão somente de uma política social-liberal de focalização dos gastos sociais nas parcelas mais pobres da população, em detrimento das políticas de bem-estar social na Previdência, na saúde, na educação, nos transportes públicos etc. — essas, sim, de caráter social-democrata.

Não há demérito nisso, pelo contrário: a escala de benefícios concedidos às populações mais pobres — em torno de 13,5 milhões de famílias — contribuiu não só para melhorar a vida dessas pessoas, como também para ampliar o mercado interno. Mais importantes para isso, porém, foram a recuperação do salário mínimo e as aposentadorias rurais, que representaram uma formidável injeção de recursos nas regiões mais pobres do país, principalmente no Norte e no Nordeste. Além disso, o chamado bônus demográfico — a redução de número de dependentes (crianças e idosos sem renda) em relação à população economicamente ativa — ajudou a elevar a renda familiar.

Avanço ou estagnação
Nada disso seria possível sem o Plano Real, lançado ainda durante o governo de Itamar Franco, e a estabilização da economia, na gestão Fernando Henrique Cardoso, que também enfrentou com coragem a crise fiscal do Estado brasileiro. Esse problema demandou, além das privatizações, uma mudança de mentalidade dos gestores públicos em relação às contas de estados e municípios. A aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal foi a contrapartida dos políticos brasileiros à “securitização” pela União das dividas dos demais entes federados. Isso explica por que a dívida pública federal aumentou exponencialmente no período.

A lógica que opõe de forma atemporal o governo de Fernando Henrique ao de Lula, para além do que realmente separa uma gestão de outra, é sectária e agride o bom senso, uma vez que enfrentaram conjunturas mundiais diferentes e cumpriram tarefas da agenda nacional também diversas. O mesmo já não se pode dizer do governo de Dilma Rousseff, que recebeu o Palácio do Planalto com o país crescendo 7,5% ao ano, com a maior base de sustentação no Congresso de que se tem notícia e apoio empresarial sem precedentes. Entre amigos, o ex-presidente Lula cansou de se queixar da petista, que, em três anos e meio de mandato, jogou tudo isso pela janela. Não é à toa que, agora, enfrenta tantas dificuldades para se reeleger, o que seria mais natural.

Na verdade, o experimentalismo econômico e o excesso de intervenção estatal nas relações de mercado durante o governo Dilma Rousseff, além de sua notória inabilidade para contornar os obstáculos políticos , fizeram o país desandar. Estamos com a inflação raspando o teto da meta, taxa de crescimento quase zero e uma crise de confiança dos investidores privados no governo. Tivesse Dilma Rousseff mantido os fundamentos da economia e negociado com a oposição no Congresso, teria feito um governo mais bem-sucedido.

O xis da questão nesta eleição é que as políticas de mobilidade social implementadas pelo governo Lula, com o abandono dos fundamentos econômicos do governo Fernando Henrique Cardoso, perderam sustentabilidade por causa do baixo crescimento. Além disso, a agenda do governo Dilma no primeiro mandato permanece inconclusa: os problemas de infraestrutura demandam investimentos privados e a saúde, a educação, os transportes, a segurança e a Previdência dos trabalhadores do setor privado exigem um salto de qualidade.
Fonte: Correio Braziliense

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Marco Aurélio Nogueira (entrevista)





O cientista político Marco Aurélio Nogueira sentiu na pele a radicalização política destas eleições quando anunciou a seus 751 seguidores no Facebook o voto em Marina Silva (PSB) no primeiro turno. Ainda não fez as contas de quantos amigos perdeu ao tomar partido. "Ouvi mais elogios, mas muitos falaram: "Que decepção!"", diz. Professor de teoria política da Universidade Estadual Paulista (Unesp), ele se prepara agora para perder mais amigos depois de ter assinado um manifesto de intelectuais que se identificam com o rótulo de "esquerda democrática", em apoio à candidatura de Aécio Neves (PSDB). Nogueira já militou no antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e ainda se identifica como "eurocomunista".

ÉPOCA - Por que a polarização política chegou a nível de radicalização destas eleições?
Marco Aurélio Nogueira - É um fato inédito. Depois da ditadura para cá, a que se aproxima mais desta eleição foi a disputa entre Fernando Collor e Lula, em 1989, quando houve muita apelação. Agora, há uma diferença importante: a reverberação. As redes sociais são câmaras de eco que incrementam tudo o que se fala. O barulho de um alfinete se compara a um trovão. O baixo nível do debate também reflete a desquali-ficação dos partidos. Os partidos perderam a capacidade de orientar seus militantes. Não há orientação clara a respeito do que deve ser feito, especialmente quando se tenta pensar a política como um exercício que não é dedicado a destruir o adversário. A política tem uma face nobre. Quem tem condições de impulsionar a face nobre da política são os que estão bem colocados no jogo político: as grandes lideranças, os intelectuais, os partidos. Os partidos deveriam ser canais de agregação de lideranças e intelectuais que pudessem funcionar como educadores cívicos. Mas não atuam assim.

ÉPOCA - É pela falta de qualidade dos quadros políticos?
Nogueira - É devido mais à perda da capacidade de agregação dos quadros que aos quadros individualmente considerados. O ponto nevrálgico dessa discussão são os partidos
políticos, que podem fazer a mediação institucional e associativa. Quem pode organizar a qualidade da política não são os indivíduos. Os partidos precisam ser recriados. Os partidos continuam a ser símbolos que orientam as pessoas. Mas não conseguem mais funcionar como modeladores e organizadores da sociedade - como os partidos comunistas já foram no passado -, porque as pessoas não querem mais ser comandadas. Como eles se recriarão? Não sei. Mas não conseguirão dar esse salto para a frente na base da recuperação de qualquer mentalidade burocrática ou autoritária. Não basta uma direção de fibra de aço.

ÉPOCA - A crise dos partidos não é mundial?
Nogueira - Não é um problema exclusivamente brasileiro. Parte do problema tem a ver com nossa época, em que o eixo passou a ser a individualização, não a associação. Vemos isso naquela propaganda que diz: "O importante é ser você mesmo". Ou seja: vire-se. Faça o melhor da sua parte, que o resto acontecerá por extensão. Isso não é verdade. São necessárias mediações para produzir uma espécie de força coletiva que venha das diferentes individualidades. Ainda não conseguimos resolver bem isso no Brasil. Onde há grandes tradições associativas e maior vida comunitária, como nos Estados Unidos e na Europa, o problema é menor.

ÉPOCA - Após as jornadas de junho, o senhor disse que "nas redes sociais, não há debate democrático" e que, no Brasil, "o debate é movido pelo ódio, mais que pelo bom-senso e pela paixão cívica". Qual é a explicação para isso?
Nogueira - Quando você se comunica com alguém pelas redes, é movido pela explosão, não pela reflexão. Você escreve uma frase de 140 caracteres e aperta uma tecla. O debate político, vivido dessa maneira, fica irremediavelmente empobrecido. Pode-se dizer que isso representa o início de uma nova forma de fazê-lo. Reconheço que há grandes vantagens de rapidez, interação e troca de opiniões. É algo que ainda precisa ser assimilado. Talvez, fora de uma disputa eleitoral, isso ocorra com mais facilidade. Sou freqüentador das redes sociais e já tive boas discussões. Fora da eleição. Na eleição, é quase impossível. Nestas eleições, sob estas circunstâncias, é mais impossível ainda.

ÉPOCA - Quais serão os desdobramentos dessa polarização?
Nogueira - Não acho que o mundo acabará, mas também não vejo nenhuma conseqüência positiva. Um dos piores efeitos da polarização PT-PSDB foi forçar a sociedade a um tensionamento de A contra B, que não produz vida coletiva muito positiva. Além da polarização PT-PSDB, temos a polarização Nordeste-Sudeste, ricos contra pobres. Os partidos contribuíram para isso. Especialmente o PT, porque foi assim que ele se constituiu. Se apresentou sempre como o polo que regeneraria a sociedade pela ascensão dos explorados. O PT amadureceu sem completar o movimento, que seria propor-se a ser partido de toda a sociedade. O PT continua a se apresentar como o partido dos pobres. Inevitavelmente, isso transporta uma polarização social para a política.

ÉPOCA - Uma corrente de cientistas políticos vê a polarização PT-PSDB como positiva, porque organiza o sistema partidário, muito fragmentado. Qual sua opinião?
Nogueira - Se for para corrigir os excessos da fragmentação partidária, é bom que tenhamos uma confluência do sistema para dois polos. Mas isso não resolve o problema da qualidade da polarização. Se cada um dos polos não consegue apresentar aos espectadores o que os diferencia, não sei o que ganhamos com isso. A polarização PT-PSDB não deixou claro o que os diferencia, a não ser na base de uma certa apelação: "Nós somos os pobres, vocês são os ricos", "Nós somos keynesianos, vocês são neoliberais". Para mim, as visões entre PT e PSDB não são tão distintas assim, mas são apresentadas como se fossem completamente divergentes, numa simplificação da discussão substantiva. Onde está o busílis da questão econômica entre PT e PSDB? Na maior ou menor atribuição de peso à regulação estatal. Ao que me consta, o PSDB nunca foi inimigo visceral da regulação estatal. O PT acredita mais na regulação estatal, mas não impediu que o governo Lula continuasse e corrigisse a política econômica do PSDB. No passado, houve a expectativa de uma composição PT-PSDB. Como inimigos mortais puderam cogitar trabalhar juntos? Talvez porque a diferença entre eles não seja tão grande. Talvez porque ela tenha sido artificialmente amplificada.

ÉPOCA - Por que Marina não conseguiu quebrar a polarização?
Nogueira - Ela apanhou demais e não teve condições de fixar sua voz no cenário. Marina caiu do céu como candidata num dia de agosto e não teve tempo de se preparar. Quem tinha o discurso afinado era Eduardo Campos. Ele colocaria na mesa o debate sobre a nova política. E o faria do jeito Eduardo Campos. O jeito Marina é diferente: mais à esquerda, ambientalista, temperamental, com uma linguagem empolada, oscilante, fala uma coisa, depois corrige. Ela é parte integrante de um movimento - a Rede, os verdes, os ecologistas -, de um pessoal que não se cansa de discutir. As conferências de uma hora duram quatro! Eles não param! É um negócio perturbador! Eles procedem pelo consenso, mas um candidato tem de dar respostas num curtíssimo prazo. Marina lançou o programa num dia e, no dia seguinte, já tinha de corrigir. Se eu tentasse extrair da Marina a visão de nova política, perceberia também várias falhas, devido a uma visão um pouco romântica da política e a dificuldades de formulação. Não é verdade que a nova política seja feita pelos melhores. Isso é um papo bobo.

ÉPOCA - Dá para haver terceira via no Brasil?
Nogueira - Vale a pena perguntar se "terceira via" é o modo correto de pensar essa questão. A terceira via, como conceito, é o caminho entre o socialismo e o capitalismo. Podemos traduzir isso como um expediente para quebrar polarizações - uma terceira opção com o que há de melhor no polo A e no polo B. Isso é possível no Brasil. Poderia criar uma dinâmica política e social mais interessante. Mas não vejo a possibilidade desse terceiro polo mediante o surgimento de uma força que não está no cenário e caia do céu. Marina foi uma tentativa disso e mostrou que não tem viabilidade.

ÉPOCA - No primeiro turno, o senhor declarou voto em Marina pelo Facebook. Quantos amigos perdeu por isso?
Nogueira - Ainda não fiz essa conta. Quando você publica uma coisa assim, há dois tipos de manifestação. A grande maioria concorda com você. Faz isso porque é mais fácil, não quer atrito, gosta de você ou não tem tempo para desenvolver uma contestação. Ouvi muito mais elogios. Mas muitos falaram: "Que decepção!". Assinei um manifesto em favor de Aécio - e continuo de esquerda. O manifesto é de pessoas de esquerda que não são revolucionárias ou adeptas da luta de classes, mas formam uma esquerda democrática. Quantos amigos perderei? Se pegar o povo da universidade, a maioria é petista. Perderei muitos amigos, mas não tenho objeção a isso. A vida tem de ser calculada levando em conta as perdas e os ganhos (risos).
Fonte: Revista Época

"Desconstrução pode ser remédio ou veneno" (Fernando Abrucio/entrevista)





Diante das pesquisas que apontam empate técnico entre Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB) a seis dias da eleição, o cientista político Fernando Abrucio afirma que a decisão virá "na última curva", em alusão à ultrapassagem que deu o título mundial de Fórmula 1, em 2008, ao inglês Lewis Hamilton, quando Felipe Massa já havia cruzado a linha de chegada. "Os candidatos terão que dirigir com as pontas dos dedos, como se diz nas pistas". Ele adverte que a estratégia de desconstrução depende da dose certa. "Pode ser um remédio, mas pode-se tornar um veneno". Na opinião de Abrucio, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP), o desafio de Dilma é desconstruir a candidatura do Aécio, enquanto o tucano tem de confirmar a imagem que ele construiu ao fim do primeiro turno. Abrucio assegura que o resultado do pleito terá uma diferença mínima de votos. "Se houver equilíbrio entre os dois nos debates de TV, o vencedor ganhará com um nariz de distância sobre o outro", aposta.

Eduardo Miranda, Octávio Costa – Brasil Econômico

O sr. consegue fazer um prognóstico para esta eleição?
Será a eleição mais disputada desde 1989. Isso vai se expressar, provavelmente, na diferença entre os dois candidatos em termos de votos válidos, que deve ficar entre 2 e 6 pontos percentuais. Significa que estamos nos diferenciando das últimas cinco eleições, nas quais duas foram vencidas no primeiro turno, e outras três no segundo, com mais de 10 pontos de diferença entre os dois candidatos. Hoje, o prognóstico é muito difícil. Eu diria que Aécio teria 51% de probabilidade de vencer a eleição, e Dilma, 49%.

Essas pesquisas, então, seriam confiáveis?
Acho que sim. Agora, tem que dizer que isso é hoje. Temos que lembrar que de 15% a 20% dos eleitores totais podem mudar de voto, sejam aqueles que estão se colocando como indecisos, com votos brancos e nulos, ou aqueles que, por enquanto, estão optando por Dilma ou Aécio. Ou seja, um quinto dos eleitores pode se mexer, e isso nos dois últimos dias da eleição.

Que fatores poderiam influenciar a decisão dos eleitores na última semana?
O sentimento do eleitor é um desejo de mudança com estabilidade. Quando a gente olha as qualitativas e quantitativas e faz uma síntese delas, vê que os eleitores querem mudança, mas temem perder as conquistas. É um eleitor difícil de avaliar. Quando o eleitor é de continuidade — como foi em 1994, 2006 e 2010 —sabe-se mais claramente para onde ele vai. Quando é de completa mudança, como foi em 2002, você também sabe. O grande problema, hoje, de entender qual será o resultado final, não se restringe às pesquisas de opinião, é o sentimento geral do eleitorado, que é uma busca por mudanças com estabilidade. Esse sentimento é difícil de traduzir e é mais claro não nos extremos do eleitorado, mas nesses 20% que estão entre brancos, nulos e indecisos.

Não por acaso, Aécio tem dito que é o candidato da mudança, mas que continuará fazendo as políticas públicas que dão certo. Qual é o limite da mudança que ele propõe, então?
Se Aécio chegar e falar que vai mudar tudo que tem aí, porque o governo é, simplesmente, um fracasso, ele perde a eleição. Do mesmo modo, Dilma, que é a continuidade, tem, também, que falar da mudança. É uma eleição de difícil interpretação, sobretudo para esses 20% do eleitorado, que são mais voláteis do que os outros 80%, e que decidirão a eleição. Geralmente, é um eleitorado feminino, de dois a cinco salários mínimos, de média escolaridade — ou seja, não tem tão pouca escolaridade, mas não tem nem ensino superior nem ensino médio completos. Por isso, os candidatos têm que dirigir com as pontas dos dedos, como se diz na Fórmula 1.

E torcer como se estivesse na última curva.
Só que a última curva é diferente para os dois. Para Dilma, nesse momento, a última curva é, no fundo, desconstruir a candidatura do Aécio. E a do Aécio é confirmar a imagem com que ele chegou no fim do primeiro turno. É uma última curva diferente, na qual ambos têm que dirigir no limite. Não por acaso, ambos não aceitaram ser entrevistados pelo "Jornal Nacional", temendo que, na última curva, algum assunto menos importante aparecesse, e eles não soubessem lidar com isso.

Os debates que serão realizados nos próximos dias terão muito peso? Fala-se muito que o da TV Globo será crucial.
O debate da Globo é o que tem mais peso, por duas razões. Uma é pela audiência; outra, pela proximidade da eleição. O Datafolha mostrou que, no primeiro turno, uma quantidade enorme de eleitores, cerca de 15%, mudou seu voto nos dois últimos dias. Quando a gente olha para os 6% de indecisos, eles respondem que vão decidir na última hora. Eles estão dizendo, em sua maioria, que vão continuar indecisos até a última hora, o que é um avanço democrático. No debate, mais importante do que ter um bom desempenho é não ter um mal desempenho. O que aconteceu no final do primeiro turno não foi só Aécio ter ido bem no debate, mas, principalmente, Marina ter ido muito mal. Na quinta-feira, se houver equilíbrio entre os dois, o vencedor ganhará com um nariz de distância sobre o outro.

Diante dessa análise, a visão deque é uma eleição plebiscitária, em que há uma decisão entre PT ou não-PT, não se aplicaria aos indecisos?
Não. Existe uma parte grande do eleitorado que é dividida. Uma parte mais voltada ao lulismo, ao petismo, e uma parte muito grande antipetista. Só que quem vai decidir a eleição são os que não estão nesses dois blocos. Esses dois blocos se consolidaram, na verdade. São eles que fazem com que PT e PSDB cheguem ao segundo turno. Eles dão vantagem a esses partidos. Se a gente olhar os dados do Ibope do primeiro turno, há algo em torno de 37% de eleitores lulistas de carteirinha e 33% de eleitores antipetistas de carteirinha. Somando esses dois números, dá 70%. Um terço fica flutuando. Nessa eleição, talvez seja um pouco menos que um terço, talvez um quinto. Os outros 10% já foram conquistados ou por Aécio ou por Dilma. Esses 20% não querem, necessariamente, a polarização. Eles querem, na verdade, mudança com estabilidade. No fundo, o trabalho de Dilma em tentar desconstruir Aécio não se dá da mesma forma que a desconstrução de Marina. Desta vez, é desconstruir Aécio para conseguir mostrar, de algum modo, que ele é o retrocesso. Do lado de Aécio, é tentar mostrar que isso não é verdadeiro.

A estratégia de desconstrução aplicada nessa eleição pelos marqueteiros é algo novo?
Não, ela já existiu em outras eleições. No segundo turno de 1998 em São Paulo, Mário Covas fez a campanha inteira dizendo que Paulo Maluf era ladrão e corrupto. A questão é que algumas eleições dependem mais desse tipo de arma eleitoral. Em outras, não tem tanto efeito. Além disso, o mecanismo de desconstrução depende da medida. Na medida certa, é remédio; na medida errada, é veneno. Acho, até, que o PT abusou da medida no primeiro turno, e uma parte virou veneno. No fundo, para o PT, teria sido muito mais inteligente usar pouco esse elemento contra Marina, e deixar que Aécio usasse mais, porque ele precisava ultrapassá-la. Se isso tivesse acontecido, hoje, Dilma seria a favorita para o segundo turno. O dado mais importante do Datafolha não é a manutenção da pontuação de ambos, mas o aumento do índice de rejeição de Aécio, que está se aproximando de Dilma, o que mostra que a desconstrução, por enquanto, não perdeu a medida.

Não havia a expectativa na campanha de Aécio de que ele fizesse mais uso dessa desconstrução?
No fundo, Aécio está acreditando que o cenário atual é o mesmo do fim do primeiro turno. Ele acredita que Dilma já perdeu a medida na desconstrução. Mas, neste momento, não dá para dizer que Dilma perdeu a mão na desconstrução. Pelo contrário, a rejeição de Aécio está aumentando. Se isso aparecer na próxima pesquisa eleitoral, eu, se fosse ele, tentaria desconstruir mais fortemente Dilma no próximo debate.

O que explica a dificuldade da presidenta Dilma nesta eleição?
É preciso olhar a taxa de aprovação do seu governo. A taxa de aprovação da Dilma, que aumentou ao longo da campanha — por isso que ela conseguiu chegar ao segundo turno e respirar—hoje é de 40%. A taxa de aprovação do governo Lula próximo a esse período era de 83%. A taxa de aprovação é o que melhor explica. No atual momento, Dilma está no limite da possibilidade de ganhar a eleição. Se ela ganhar, vai ser por um triz, nesse limite. Se, até o dia da eleição, a taxa de aprovação dela baixar, ela perde. Se ela crescer um pouco mais, 4, 5 pontos, crescem muito as chances de ela ganhara eleição, embora eu ache que isso seja difícil de acontecer.

Fala-se da divisão regional entre Norte/Nordeste e Sul/Sudeste e de uma divisão social e de renda, em que a maioria dos mais pobres votaria em Dilma e os ricos e a classe média mais alta, no Aécio. O sr. concorda?
Em parte. Sem dúvida alguma, o Nordeste é fortemente lulista. E o Centro-Sul é mais tucano. Mas não é só isso que explica. Se fosse só isso, Dilma estaria bem mais atrás. É que ela tem no Sudeste, sobretudo no Rio, em São Paulo e em Minas, a votação daqueles que tem até dois salários mínimos. Nesta eleição, entre aqueles que têm entre dois e cinco salários mínimos, Aécio lidera. Mas ele lidera onde? Fundamentalmente, em São Paulo, que é o estado maior e onde ele conseguiu chegar aos mais pobres nesse segundo turno. Isso garante a maior possibilidade de Aécio ganhar a eleição. É um paradoxo lógico. Os mais pobres vão votar na Dilma, mas uma parcela dos mais pobres,em particular, em São Paulo, pode garantir a eleição do Aécio.Portanto, existe uma certa polarização, mas que não é verdadeira por completo, nem do ponto de vista regional, nem da renda. No entanto, se o Aécio perder a liderança nesse eleitorado entre dois e cinco salários mínimos — o que pode acontecer, uma vez que é um eleitorado volátil, com grande participação feminina e menor escolaridade, que tem um número grande de pessoas indecisas, não só de brancos e nulos, mas daqueles que são mais voláteis no momento —, Dilma ganha a eleição. É esse eleitorado que vai decidir a eleição.

Qual é o impacto do apoio de Marina para Aécio?
O impacto não veio como se esperava, porque o eleitor fez suas escolhas antes da Marina. Ela só tinha duas opções: apoiar Aécio no dia seguinte à eleição, ou fazer uma lista enorme de temas vinculados à sua história, que se Aécio não aceitasse, ela diria "olha, não estou ficando neutra, é o Aécio que não segue uma linha mais progressista". Ao não fazer nenhuma dessas duas coisas, ela perdeu eleitores. De um lado, aqueles que queriam uma decisão mais rápida, pularam para Aécio antes de Marina e não precisam mais dela. De outro, aqueles que queriam um compromisso maior de Aécio com o programa da Rede (que Marina simboliza) ou estão indecisos, ou vão votar branco/nulo, ou já optaram pela Dilma. Creio que ela saiu menor da campanha do que quando entrou. Em certo momento, Marina era favorita para ganhar no segundo turno. Hoje, ela tem menos capacidade de influenciar o voto do que há15 dias. Houve uma redução do poder de Marina. Isso quer dizer que ela acabou politicamente? Claro que não. Mas ela terá que reconstruir sua carreira política, sua inserção na vida política brasileira. E os caminhos ficaram mais difíceis para ela.

Há uma tendência dos indecisos pró-Dilma?
Eu diria que sim. Mas não é que os indecisos todos vão para Dilma, porque indeciso ainda é indeciso. Eles não têm um voto ainda. Se fosse hoje, Aécio ainda ganharia, porque eles ainda estão indecisos. Mas, se, na próxima semana, Aécio perder votos nessa faixa de dois a cinco salários mínimos, em particular no Sudeste, e aumentar sua rejeição, a gente inverte: Dilma vira favorita.

A garantia dele seria o voto desse eleitorado em São Paulo?
Em São Paulo, Minas e Rio.

Por que essa faixa de renda pendeu para o PSDB?
Há uma situação que gera um certo paradoxo. Essas pessoas melhoraram de vida ao longo dos últimos 12 anos, principalmente durante os oito anos em que Lula foi presidente. Nos últimos quatro anos, a vida delas não melhorou tanto. Quando elas melhoraram, começaram a se tornar mais demandantes de coisas que antes não tinham, como a qualidade dos serviços públicos. Essas pessoas estão com uma enorme estabilidade no emprego. Portanto, não tem mais aquela situação de insegurança no emprego, que era muito forte no segundo governo FHC e destruiu o seu governo. Mas elas querem mais serviços públicos. Muitos vão dizer que elas se tornaram mais conservadoras, mas não são conservadoras no sentido ideológico. Elas começam a temer que possam perder posição. Essas pessoas eram mais favoráveis ao Bolsa Família há dois, três anos, do que hoje.

Há a perspectiva de uma presença maior de Lula nesse final de campanha. O sr. acha que isso influencia?
Ainda não está claro qual vai ser o envolvimento do Lula na campanha. Por enquanto, tem sido muito menor do que vem sendo alardeado pelos petistas. A primeira tarefa da campanha da Dilma é conseguir, efetivamente, envolver o presidente Lula. Se eles conseguirem isso, Lula tem um possível impacto, sobretudo no eleitorado do Nordeste, mas também no Sudeste, como no Rio, entre o eleitorado mais pobre. No Nordeste, ele pode aumentar a diferença da Dilma para o Aécio, o que já seria algo importante, embora não completamente decisivo do ponto de vista do resultado eleitoral. Mas não está claro para mim qual vai ser o envolvimento dele. Afinal, o que ele tem dito é que vai fazer campanha nos lugares em que o PT ou algum aliado está concorrendo ao segundo turno. É verdade que uma parte deles está no Nordeste, como no Ceará ou na Paraíba, o que vai favorecer, por tabela, a presidente Dilma. Mas ele pode fazer algo mais forte ainda indo para Ceará, Paraíba, Bahia, Pernambuco, pode ir a alguns lugares da região Norte e tentar fazer uma campanha mais forte em São Paulo e Rio. Por enquanto, isso não aconteceu. Tem ali um jogo mais oculto, por enquanto, de qual vai ser o grau de envolvimento do Lula nesse final de campanha da Dilma no segundo turno. Se ela conseguir envolvê-lo, ganha uma arma importante.

Como o sr. vê a questão do mercado financeiro contra Dilma?
Acho que tem a ver com uma sensação de que a política está errada, ao menos para aquilo que o mercado financeiro acredita ser a política econômica certa. Eles apontam a queda do superávit primário, o aumento da taxa de inflação, a redução do crescimento econômico. Em segundo lugar, o mercado financeiro tinha um maior entrosamento com o governo Lula e como governo Fernando Henrique. O corte não é o governo Lula, é o governo Dilma. Quando o governo Lula adotou políticas anticíclicas, o mercado financeiro não ficou bravo com isso. A grande maioria queria a manutenção do lulismo, até porque viu no Serra algo diferente do que viram no Fernando Henrique. No governo Dilma, há um corte, em parte por erro da avaliação das políticas econômicas, mas também por essa falta de entrosamento. Bateram de frente várias vezes, há a história de como houve a redução da taxa de juros. Nesse processo, houve o predomínio de um cabo de guerra entre o governo e o mercado financeiro. A presidente não foi capaz de reconstruir as pontes com o mercado financeiro.

Ela devia já anunciar a nova equipe econômica?
Ela devia ter anunciado a equipe econômica, se fosse o caso de querer mudar, há seis meses. Não o fez, embora já tenha demitido e mantido em atividade o ministro. Agora, no meio da campanha do segundo turno, creio que criaria mais ruídos do que pontos a favor. Acho que Dilma perdeu o timing disso.

O sr. acha que se o presidente Lula tivesse sido candidato,a situação seria diferente?
Para Lula ser candidato, Dilma teria que, de alguma forma, obedecer a ele. Lula pediu no final do ano passado a mudança do ministro da Fazenda. Se ele tivesse sido candidato, ele poderia dizer que a presidente Dilma governa, mas ele está ajudando a consertar algumas coisas, porque ele é o candidato. Se isso ocorresse, acho que ele teria sido o franco favorito para essa eleição. Mas não ocorreu. Dilma acreditou até o final que ela teria chances, embora tenha chances muito apertadas. E, por outro, Lula não quis comprar essa briga, já que ele não tinha a convicção de Dilma de que ele deveria ser o candidato. Seria um desgaste muito grande e que poderia gerar mais problemas do que soluções ao próprio PT.

Parece que ele está se preservando para 2018.
Em parte, sim. Ele não brigou para ser o candidato, e não ajudou tanto ao longo da campanha de Dilma até agora porque não foi chamado para tal. Alguém só vai participar de uma campanha mais fortemente se você coloca o cara no pedestal. Aécio fez isso com Fernando Henrique. Ele fala mais do Fernando Henrique nos debates do que Dilma fala do Lula. Obviamente, Lula está apoiando Dilma, mas com menor intensidade. Creio que, se ele fosse chamado, colocaria alguns poréns, e ela teria que aceitar pelo menos uma parte desses poréns, e ele estaria hoje com maior participação. Mas os petistas não podem exigir maior participação do Lula sem dar o papel central que ele quer ter. Por isso, ele prefere ter uma participação mais low profile ao longo da campanha. A opção dele não é apenas um cálculo em relação a 2018, é resultado da forma com que a campanha da Dilma o tratou — num certo momento, em agosto, se aproximou do Lula, e, no momento em que a Marina começou a cair, se afastou dele. É uma situação de incerteza também para ele.

O sr. disse no ano passado que o PT precisava construir uma relação bem azeitada com o PMDB para ter êxito nas eleições. Isso deu certo?
Não deu muito certo. Em alguns estados, como Minas e Piauí, houve esse acordo, uma articulação capaz de agradar aos dois lados. Mas houve um número enorme de lugares em que a aliança não deu certo. O resultado é duplo: o governo perdeu apoio na própria campanha, vide Rio Grande do Sul, e se, porventura Dilma ganhar a eleição, ela terá um cenário difícil, terá que reconstruir essa relação,que hoje é muito ruim. Metade da Câmara está com Dilma e a outra metade, contra. No Senado, está um pouco melhor, ela tem apoio da maioria.

O deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ) disse que metade do partido está com Aécio. Se Dilma vencer, ela terá um PMDB mais rebelde?
A frase do Eduardo Cunha tem a ver também com o passado, quando eles acreditavam que teriam maior entrosamento com o governo. Além disso, tem a ver com o cheiro da possibilidade deAécio ganhar a eleição. Há ainda outro elemento que está fora dessa discussão: ele está com medo do combate à corrupção, porque existe um número enorme de deputados, senadores e governadores com temor de que toda essa história da Petrobras traga mais histórias. Acho que, de certa maneira, Cunha aposta que um governo de Aécio Neves seria melhor porque, de alguma forma, não precisariam da incômoda aliança com o PT e com Dilma, que maltrataram o PMDB nos últimos anos. E, também, porque eles acham que com Aécio seria mais fácil segurar essa avalanche que pode vir dos escândalos. É uma aposta.

O sr. acha que temas como corrupção, Petrobras e nepotismo vão pesar na reta final?
Pesou até agora. Ajudou a oposição a trazer para um empate técnico. Claro que ajudou muito mais dessa vez do que nas outras porque o cenário econômico não é bom. Nessa reta final, se for encontrado algo novo sobre a Petrobras para a presidente ou contra Aécio, é claro que pode atrapalhar. De resto, o que foi denunciado já teve efeito forte. Temos, no mínimo, um empate técnico e, no máximo, ligeiríssima vitória de Aécio.

A chegada, então, vai ser no photochart, como no turfe?
Vão dirigir como na última voltada Fórmula 1, mas a chegada estará mais próxima do "cruza a reta final" do turfe.

O sr. acha que essa polarização entre PT e PSDB continuará?
Ainda não dá para chegar a essa conclusão, porque vai depender de quem for eleito em 2014 e de seu governo. Em 2018, já começa um cenário na política brasileira no qual quem foi a elite do sistema político nos últimos 20 anos — particularmente os grandes líderes do PT e do PSDB — estará deixando a política. Entre 2018 e 2022, ocorrerá uma transição geracional na elite política brasileira que não é só uma questão de idade, mas de pessoas. Para 2018, não dá para garantir que acaba a polarização. Mas, para 2022, fica cada vez mais difícil manter a polarização, pelo menos nos termos em que ela se colocou nos últimos 20 anos.

Fernando Abrucio - Cientista político da Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP)

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A história da redemocratização e o novo cenário político no crepúsculo do petismo

(…)

Nessas eleições vou de Aécio, depois de ter votado em Marina no
primeiro turno. E vou serenamente, acreditando que ele expressa uma aliança liderada pelo PSDB, porém, mais ampla do que esse partido e do que qualquer arco de partidos. Estou convencido de que não haveria outro quadro no PSDB mais capaz do que Aécio Neves de exprimir essa convergência que pode fazer o Brasil ultrapassar a melancolia atual e ter um tratamento melhor da sua economia, uma pauta renovada de políticas sociais e, mais do que tudo, uma visão mais arejada e pluralista da política, que reconecte, ao nosso novo presente, os elos que perdemos com a trajetória nobre da transição democrática dos anos 80.

Isso poderá vir agora, ou em 2018, mas penso que virá. Sim, porque creio que é uma convergência que veio para ficar, no governo, ou na oposição, até que a maioria do eleitorado brasileiro se convença. Reconheço que o PT tem gorduras para queimar e por isso ainda pode virar o jogo eleitoral. Essas gorduras vêm não só da sua condição de governo - que lhe permite manejar recursos materiais e políticos não desprezíveis – mas também do seu enraizamento na sociedade, que não se deve subestimar e que torna compreensíveis e legítimas (embora a meu ver equivocadas), as justificativas de quem vai votar em Dilma em nome da continuidade e aprofundamento das políticas sociais atuais. Agora,
essa história de risco de que Aécio seja retrocesso, por mais que seja um equívoco de boa fé da parte de muitos, a cada dia mostra mais a sua face mistificadora. Como tal deve ser rejeitada e vencida e, por isso, peço a vocês um pouco mais de paciência para apresentar minha opinião sobre esse tema que o governo, seu partido e sua candidata trouxeram à campanha.

A ideia de que votar em Aécio é optar pelo retrocesso afeta setores da esquerda e parte do eleitorado graças a uma persistente propaganda do PT em seu embate  com o PSDB, ao longo de anos. Mas é uma visão que desconhece que governos não se orientam só pelas estratégias dos partidos ou dos líderes que os conduzem, mas também são afetados pelos contextos em que estão inseridos.

Em que contexto Fernando Henrique e os tucanos governaram o Brasil? Num contexto em que a estabilidade econômica e o controle da inflação eram os principais reclamos de uma sociedade exaurida por prolongada crise econômica e pelos desmandos do governo Collor. E mais: contexto de hegemonia forte, no mundo todo, daquilo que se passou a chamar de "neo liberalismo". Na esteira da queda do muro de Berlim e do desmanche do chamado "socialismo real" (uma onda que atropelou até  Gorbachov, reformador da então União Soviética) firmou-se a ideia de
que o capitalismo era o fim da história, o que deslegitima, de
antemão, qualquer estratégia política que não se fincasse radicalmente em reformas "orientadas ao mercado".

Se a disputa eleitoral de hoje não toldar nossa memória, lembraremos que os tucanos brasileiros não foram os únicos sociais democratas no mundo da época a terem que ceder e adaptar suas políticas à hegemonia desse pensamento. Lembraremos de Tony Blair, Felipe Gonzalez e muitos outros. E ainda poderemos constatar que com tudo isso houve no Brasil, sim, um avanço dessa lógica de onipotência do mercado, mas que mesmo com as privatizações e tudo o mais que compunha essa agenda, o tal
"desmonte" do Estado no Brasil não ocorreu (vide as políticas sociais que ali começaram e os avanços na profissionalização de muitos setores da administração pública), assim como também não se deu o desmonte do nosso parque industrial. Basta comparar com o que ocorreu ao nosso redor, com os vizinhos da AL, para concluir que os tucanos foram moderados na sua adesão à agenda neo liberal.

A primeira pergunta que devemos fazer a nós mesmos para não nos deixar levar só pela propaganda é: se Lula e o PT houvessem governado o Brasil nos anos 90 teriam resistido mais que os tucanos a essa hegemonia e proclamado a "prioridade ao social"? Ou teriam se adaptado a ela, mantendo a agenda social em plano secundário diante da absoluta prioridade que tinham o combate à inflação e a estabilização econômica? Se em 2002, na sua “Carta aos Brasileiros”, Lula reconheceu isso como premissa de sua política macro econômica, imagine se ele iniciasse seu governo em 1994, como FHC!

Lula governou depois dessa onda hegemônica. Por isso pôde dar, como deu, visibilidade tão forte à agenda social, que foi sua promessa mais bem cumprida. Por isso pôde promover (às vezes meio desastradamente, aliás) o fortalecimento do papel do Estado em vários âmbitos da vida social. Por isso Dilma e o PT podem apresentar hoje ao País um cabedal de realizações nesses âmbitos. E por isso ainda têm chances de vencer a eleição, mesmo diante do mar de corrupção que o PT e seus aliados praticaram e estimularam e da incompetente gestão da economia nos últimos quatro ou cinco anos.

Uma segunda pergunta, então, que devemos fazer para não sermos
tragados pelos mantras do marketing é a seguinte: num contexto mundial como o de hoje, em que o "neo liberalismo" está no mínimo sob suspeita, senão sob fogo cruzado, na América Latina e na Europa e que nos EUA o presidente é um Barak Obama; e num contexto brasileiro em que a prioridade ao social ganhou mais consenso junto ao eleitorado até mesmo do que a ideia da estabilidade econômica; é sensato pensar que um governo de Aécio  será um "retrocesso neo liberal” ? Francamente, esse tipo de fantasma é obra criada pela propaganda e não deve assombrar, nem causar hesitações, em quem já tem a consciência política de que é preciso mudar.

Claro que há pessoas que sabem de tudo isso, não estão solidárias com a política do governo, mas se acham cansadas de acreditar em mudanças porque passaram a crer que todos os políticos e todos os partidos farão sempre mais da mesma coisa, em qualquer situação. Reconheço que é mais difícil livrar pessoas desse desalento do que desmistificar a conversa do retrocesso. Mas pensemos :

Valeu a pena, em 1984, depois da não aprovação das Diretas Já, terem feito um acordo para ultrapassar a ditadura com a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral OU seria melhor ter ficado na ditadura até que ela caísse (se caísse) por uma explosão do povo nas ruas?
Valeu a pena, em 1986, ter dado ao Congresso o poder de fazer a
Constituição que hoje temos OU estaríamos vivendo melhor sem ela, como pensavam aqueles para quem uma constituição feita pelo Congresso seria contra os trabalhadores?
Valeu a pena, em 1992, o Congresso ter removido Collor da Presidência OU teríamos nos dado melhor se ele ficasse mais tempo até que um dia, quem sabe, o povo o derrubasse?
Valeu a pena, em 1994, os tucanos terem sido eleitos para tocarem o Plano Real OU estaríamos melhor hoje se houvesse prevalecido a posição contrária, que denunciava aquele plano como um engodo?
Valeu a pena, em 2002, Lula ter assinado a Carta aos Brasileiros, ser eleito Presidente e promovido as políticas sociais que promoveu OU o Brasil estaria melhor hoje se ele tivesse se recusado a “acalmar os mercados” naquela hora?
Por fim, valeu a pena a maioria dos eleitores ter votado na oposição
em 2014 OU teria sido melhor para o Brasil que Dilma tivesse vencido logo no primeiro turno e assegurado a continuidade do que aí está?

Penso que as pessoas que preferirem as primeiras alternativas de
resposta a cada uma dessas perguntas não devem se sentir em desalento para votar, nesse segundo turno, por uma mudança política. Estou convencido de que essa é a atitude coerente, capaz de valorizar e ao mesmo tempo, renovar a trajetória de avanço da democracia no Brasil

(...)

Quem me conhece bem, sabe que nunca tive sintonia política com Marina e que votei nela no primeiro turno, embora cercado de sobressaltos, por entender que aquele era um ato determinado por mais uma fatalidade vinda dos ares, semelhante à que vitimou Ulisses. Mas diante do conteúdo da sua fala de hoje, o eleitor desconfiado cedeu de vez o lugar ao cidadão esperançoso. Por isso quando for à urna no segundo turno não o farei movido por um impulso tucano, nem iludido pela pessoa de Aécio Neves. Ainda assim o farei sem sobressaltos, serenamente, conservando, ao lado das esperanças, incertezas, que naturalmente existem, em momento tão delicado. Mas penso, depois de anos na estrada, assistindo a tanta coisa, que quem quer viver de certezas não viverá nada que, de fato, valha a pena. 
(…)

Paulo Fábio Dantas Neto (cientista político/UFBA)