Um dos nossos pensadores disse em algum lugar que Brecht era um legítimo homem de esquerda porque estava sempre disposto a recomeçar do zero. Essa a nossa credencial, embora alguns não arredem pé de ideias e crenças liquidadas pela realidade. Os que recomeçamos do zero, a cada derrota, podemos, por isso, no momento em que reaparece o fantasma do anticomunismo — mais velho, aliás, que o próprio comunismo —, abrir um diálogo com a direita.
De fato, nada garante que ela está sempre errada e a esquerda sempre certa. A única caução de uma ou de outra é a ética, um imperativo categórico anterior às ideologias, às escolhas políticas e aos dispositivos que lhes deram corpo histórico — às vezes tenebroso como o stalinismo. Bobbio quis demonstrar que de direita é quem prioriza a liberdade, de esquerda quem prioriza a igualdade.
É outra forma de dizer ética. Desde que a mais-valia se tornou a forma dominante (há outras) de apropriação do fruto do trabalho, podemos escolher o lado do capital ou do trabalho. Não é simples assim. Saramago se dizia um comunista hormonal, circunstância biológica, nata, que também pode ser reivindicada pelo anticomunista.
A direita contemporânea nos abriu os olhos para o fracasso das revoluções de esquerda. Não passamos no teste da realidade, todas resultaram em regimes de partido único ou tiranias. O marxismo, cuja prova de verdade é a prática, não foi aprovado pelo próprio critério. Sobrevive na “teoria da práxis” — o homem faz o mundo fazendo-se a si mesmo — e como método de análise historiográfica.
Muitos da direita acreditam que os governos Lula e Dilma são de esquerda. Tomam a nuvem por Juno. Nenhum desses governos fez qualquer reforma social (e teve tempo e base parlamentar para isso) — nem a agrária, nem a urbana, nem a tributária, nem a política... Nunca passou do assistencialismo. Está muito atrás do governo Goulart, derrubado porque as iniciou. Em compensação, o PT praticou a corrupção, desmoralizando a esquerda sem ser de esquerda, e oferecendo munição à direita — ela lhe fica devendo esse favor. É o que tem levado manifestantes de direita à rua, acordando os piores demônios — a ditadura, o golpe, a tortura, a cassação, o expurgo etc.
Os tempos são outros. O golpe civil-militar de 64 teve clima favorável: intervenção americana (que não envergonhou os “patriotas”), inflação galopante, medo patológico da revolução cubana (1959-61), antitrabalhismo do grande capital, unanimidade da mídia contra Goulart etc. O golpe de 64 foi uma contrarrevolução, embora ao se autobatizar Revolução Redentora dissesse uma coisa para falar outra.
A derrubada de Goulart, eleito e forte entre os trabalhadores, foi saudada por muitos democratas de direita. Caíram em si aos poucos. E tiveram de aguentar a carinhosa marchinha de Zé Kéti:
“Marchou com Deus pela democracia, agora chia, agora chia... Você perdeu a personalidade, agora fala em liberdade.”
Com todo o respeito.
Joel Rufino dos Santos é historiador
Fonte: O Globo (19/04/14)
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