sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Sobre condomínios de poder e a unanimidade (Roberto Beling)


O artigo “O condomínio governista e as eleições no Estado” (A Gazeta, 20/02/14), de Adauto Emmerich e Luiz Cláudio Ribeiro, traz uma boa contribuição ao debate sobre a atual conjuntura do Espírito Santo, com especial ênfase no processo eleitoral que se aproxima. Antes de deixar anotados alguns comentários,  quero registrar algumas observações sobre a utilização da noção de “condomínio governista” para pensar o arranjo de poder construído ao longo dos últimos anos e o processo político capixaba.
A noção de “condomínio” de poder (ou governista) pode ser útil do ponto de vista do discurso do marketing político, mas não dá conta das realidades mais profundas e essenciais do sistema de poder em curso no Espírito Santo. Na prática, o “condomínio governista” ou de poder é uma distorção fisiológica do arranjo político caracterizado como “coalizão de governo”, condição necessária a governabilidade, em sistemas políticos como o brasileiro, estruturados na combinação de Presidencialismo e sistema multipartidário proporcional. Nessa forma de sistema político e eleitoral (Lijphart), coalizões eleitorais e governamentais são instrumentos através dos quais se constrói o processo majoritário de produção de decisões e governabilidade.
Mas, no caso brasileiro, resultado das estratégias políticas de aquisição e preservação do poder, e exacerbadas no modo de governar implantado nos últimos dez anos, coalizões que deveriam estar organizadas em função de eixos minimamente programáticos, foram sacrificadas aos imperativos e a pura lógica da busca de reprodução do poder, dando lugar a subordinação dos arranjos políticos a mera articulação e organização dos interesses clientelistas e fisiológicos.
Como disse, a noção de “condomínio” não dá conta da realidade mais profunda do sistema de arranjo do poder implantado no Espírito Santo. Condomínio governista poderia traduzir o que? A idéia, por exemplo, de um arranjo de domínio oligárquico? Um padrão oligárquico não elimina, necessariamente, a competição e disputa pelo poder. Limita os atores, restringe os participantes do jogo, mas não elimina os riscos da competição. Sistema de participação limitada, mas grupos disputando e se alternando no poder. Esse, por exemplo, foi o padrão dominante da política catarinense dos anos 30 aos 60. Sistema semi competitivo em que duas famílias, os Ramos e os Konder-Bornhausen, competiam e se alternavam no poder (creio que Wanderley Guilherme tratou desse conceito em algum momento).
No Espírito Santo, a coisa está “muito além do jardim”. Acredito que o conceito de “unanimidade”, ou mesmo da “unanimidade bonapartista” (como cunhou Luiz Paulo V. Lucas) dá conta melhor da lógica de poder que domina o processo político a partir da era Hartung. O “unanimismo” se organiza, para lembrar recente artigo do professor Roberto Garcia Simões, em torno da lógica dos “cinco Us”. Sintetizando (e correndo o risco de simplificar) o pensamento do autor citado, a unanimidade exige a prévia Unidade face a uma ameaça (real ou estrategicamente criada, acrescento, eu); a figura do Único líder (talvez na encarnação do “o Estado sou eu”, também acrescento); no quadro do pensamento Único; a Uniformidade do processo; eliminando a competição política, e, por conseqüência, a possibilidade da alternância de poder (dois procedimentos básicos da Democracia, cfme Bobbio). Um sistema que em essência para sua afirmação e legitimação exige a criminalização da crítica e da oposição e a submissão dos entes estatais a figura do poder dominante.
Sonho de todo autocrata ou candidato a “Déspota” (“Esclarecido” ou não): um só Líder, um só Pensamento, uma só Vontade. Fenômeno sui generis que foi a marca do Espírito Santo na última década: um Executivo de poder incontrastável, um Judiciário controlado e uma Assembléia, essa sim hors concours,  em que não havia líder da oposição, porque oposição não havia; 30 deputados, trinta votos da Situação. Não foi gratuito que a sabedoria popular agraciou com o título de “Imperador”, o formulador e gestor dessa política que enobreceu e colocou nos píncaros da modernidade política,  a primeira década do século XXI vivida pelo Espírito Santo.
“E pur si muove”! Projetos autoritários a parte, sonhos de transformar o processo eleitoral em mero processo de homologação do nome do “destampado”, coloca-se como nunca a possibilidade de ruptura do ciclo da “Unanimidade”. Não por vontade dos seus beneficiários, os de ontem e os de hoje, mas por força, em primeiro lugar,  de variáveis  externas ao processo político local. Nunca é demais lembrar que a ruptura dos quadros de acomodação e subserviência da política capixaba, foram produzidos por “determinantes” externos ao jogo político interno. Ficar em um exemplo? O “Abril sangrento” não foi fruto de uma decisão de partidos ou elites locais, mas resultado e subordinação aos imperativos da política nacional.
A depender  dos novos gestores e beneficiários da Unanimidade, os arranjos estariam preservados e o processo de escolha dos novos dirigentes estaria limitado a definição prévia nos escaninhos dos gabinetes, do lugar de cada peça no tabuleiro de xadrez. Mas, os imperativos da política e dos arranjos nacionais não levariam a um novo enquadramento e entubamento dos mentores políticos locais? Resistiria o discurso da neutralidade a vontade de um  Lula a construção de um palanque próprio, sem cinqüenta tons de dubiedade, para a Presidente Dilma?  
As coalizões são necessárias, e fazem parte do processo político, mas talvez venham a exigir um novo patamar de construção, além das costuras pelo alto. A metodologia do que foi chamado pela Midia de Geopolítica talvez não dê mais conta do processo de articulação e agregação de interesses, finalidade da Política, como ensinava a velha Sociologia americana.
E a sociedade assiste, mas passiva não estará. As ruas  falaram em junho de 2013. Voltarão a falar em 2014. Estarão impactando os processos nacionais e, por desdobramento, impactarão os processos locais. Não vai passar batido, o sacrifício dos princípios básicos da boa governança em função da lógica fisiológica de administrar; e, como observam Emmerich e Ribeiro: o  “agravamento da insegurança, do atendimento à saúde e a precarização dos transportes e do meio ambiente...” . E as pesquisas estão aí: má avaliação em questões  como segurança, saúde, educação  e  mobilidade urbana podem representar uma saia justa em uma corrida de 100 metros, que será a corrida eleitoral desse ano.
As cartas estão com Casagrande, e seu jogo está cantado: preservação da Unanimidade, palanque da Neutralidade e preferencial aliança com o PT. Tem a vantagem da máquina e do poder da caneta. Tem pela frente um ex-governador que viu desidratar o seu capital político, mas insiste em parecer (aos menos nas notas plantadas nas colunas políticas da imprensa nacional) como protagonista maior do processo político, e que procrastina, como forma de produzir decisões a partir da não-decisão do outro.  E de soslaio, um Senador tenta confundir o meio de campo com uma pretensa candidatura a presidência da República, mas esperando o cavalo passar encilhado.

Em suma, fale-se em condomínio ou unanimidade, a verdade é que poderemos ter uma eleição que poderá ser “a vera” e o eleitor recuperar o seu papel protagonista do processo, de fato e de direito.  




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