O que a capitulo de história institucional brasileira delimitado pela implantação e materialização do Plano Real nos ensina? Que características dos agentes políticos (partidos, representantes e lideranças) nos permite iluminar? O quê os dois times tem em comum entre si? Como eles formam, sustentam e subvertem (no mais das vezes) as suas crenças e expectativas fundamentais no desenrolar das circunstancias e situações com que se defrontam?
Seria praticamente ocioso afirmar que o sentimento generalizado entre os que protagonizaram aquele momento político é o de que o povo esqueceu os benefícios da estabilização macroeconômica. E ao mesmo tempo premiou aqueles que, quando na oposição, votaram de forma sistemática “contra os interesses do Brasil e dos brasileiros”.
No dizer do ex-presidente e ex-ministro da Fazenda à época do lançamento das medidas de ajustamento econômico, Fernando Henrique Cardoso:
“O plano Real não foi mágica feita de uma hora para outra. Foi um trabalho duro, de reconstrução da credibilidade nacional. O Plano Real é o único plano econômico que não sofreu restrição judicial, porque respeitou o ordenamento jurídico.”¹
A despeito do brilhantismo e do glamour de que habitualmente são revestidos os seus discursos, não foi muito bem exata a assertiva do tucano de que inexistiram contestações judiciais às medidas de estabilização como veremos a seguir.
Que o diga a Revista Veja, sempre fiel a seu papel de “partido” oposicionista autoconferido (na visão da imprensa alternativa hoje entrincheirada em blogs e redes sociais), que efetuou um interessante levantamento dos pontos de vista de representantes e intelectuais do PT naquela ocasião2.
A mesma recorda que em 29 de junho de 1995, no Congresso Nacional o então oposicionista PT votou contra Medida Provisória nº 542, convertida na Lei Federal nº 9.069, de 29 de junho de 19953, a qual introduziu o Real como nova moeda brasileira.
E, para justificar as assertivas que o acusam de incoerência na passagem do campo da oposição para o da situação, o Petismo foi muito além em sua sinalização eleitoral.
Dentre outras medidas, seus representantes impetraram no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADIN) contra o plano.
E cinco anos depois, após manifestarem-se similarmente contra uma série de medidas legiferrantes institucionalizadas sobretudo via Medidas Provisórias, o então mais agressivo dos partidos de oposição voltou à alta Corte para tentar fazer cessar os efeitos da Lei Complementar nº 101/2000 (mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal) que limitou o crescimento das despesas dos estados e municípios, assim coroando o esforço de contenção fiscal da União.
Tendo em vista o diagnostico de incoerência (compartilhado tanto pela oposição quanto por ex-situacionistas e por muito da esquerda moderada), vejamos então um breve apanhado acerca de quais eram (segundo a Veja) os pontos de vistas dos atuais situacionistas no momento em que se achavam nas oposições ao governo que intentava a reforma monetária do Brasil:
“Esse plano de estabilização não tem nenhuma novidade em relação aos anteriores. Suas medidas refletem as orientações do FMI (…) O fato é que os trabalhadores terão perdas salariais de no mínimo 30%. Ainda não há clima, hoje, para uma greve geral, mas, quando os trabalhadores perceberem que estão perdendo com o plano, aí sim haverá condições”. (Lula, Estado de S. Paulo 15.01.94)
“O Plano Real tem cheiro de estelionato eleitoral” (Lula, O Estado de S. Paulo, 6.7.94) 5.
“Existem alternativas mais eficientes de combate à inflação (…) É fácil perceber porque essa estratégia neoliberal de controle da inflação, além de ser burra e ineficiente, é socialmente perversa.” (Guido Mantega, Folha de S. Paulo – 16 de agosto de 1994)
“O Plano Real é como um “relógio Rolex, destes que se compra no Paraguai e têm corda para um dia só (…) a corda poderá durar até o dia 3 de outubro, data do primeiro turno das eleições, ou talvez, se houver segundo turno, até novembro”. ( Marco Aurélio Garcia, O Estado de S. Paulo, 7.7.94)
“Não é possível que os brasileiros se deixem enganar por esse golpe viciado que as elites aplicam, na forma de um novo plano econômico”( Gilberto Carvalho, O Milagre do Real/ Neuto Fausto De Conto)
“O Plano Real não vai superar a crise do país (…) O PT não aderiu ao plano por profundas discordâncias com a concepção neoliberal que o inspira” (Aloizio Mercadante, do livro “O Milagre do Real”, de Neuto Fausto de Conto)
“O Plano Real só traz mais arrocho salarial e desemprego” ( Vicentinho, então sindicalista e atual líder do PT na Câmara dos deputados, no livro O Milagre do Real)
“O plano real foi feito para os que têm a riqueza do País, especialmente o sistema financeiro” ( Maria da Conceição Tavares, Jornal da Tarde, 2.3.94)
“Haverá inflação em reais, mesmo que o equilíbrio fiscal esteja assegurado, simplesmente porque as disputas distributivas entre setores empresariais, basicamente sobre juros embutidos em preços pagos a prazo, transmitirão pressões inflacionárias da moeda velha à nova.” (Paul Singer, Jornal do Brasil – 11.3.94)
“O Plano Real é um arrocho salarial imenso, uma perda sensível do poder aquisitivo de quem vive do próprio trabalho”. (Paul Singer, Folha de S. Paulo, 24.7.94)
“O Plano Real não passa de um remendo” (Gilberto Dimenstein, Folha de São Paulo, 31 de julho de 1994).
Já se sabe há tempos como o PT conseguiu persuadir o eleitor mediano a respeito de suas credenciais para gerir a macroeconomia sem sujeitar o país a um turbilhão coletivista e socializando à moda soviética. E ainda que os liberais mais empedernidos (austrian scollars à frente) protestem veementemente contra políticas intervencionistas (as quais rotulam indistintamente como “socialismo” e “estatismo’) em termos de, entre outras medidas, contenção das elevações de preços de energia e cesta básica, do fomento e proteção a cadeias produtivas industriais e da elevação da taxa de investimento na economia, esta confiança majoritária persiste no eleitorado. Que o digam as pesquisas de opinião com resultados que reiteradamente acentuam a vantagem eleitoral da presidente Dilma Roussef para a reeleição este ano.
Com respeito ao PSDB e a dificuldade de comunicar-se com as maiorias o problema que se coloca, como já escrevemos outrora, não é tanto uma questão de competência dos agentes políticos.
Pelos dois lados, o problema é mais profundo e psicosssociológico. Como os psicólogos comportamentais e neurocientistas já demonstraram, os indivíduos guardam com maior clareza as memorias de dor e perda do que aquelas de vitorias e ganhos. Infelizmente em decorrência da abertura comercial e financeira, dos juros altos e do cambio subvalorizado, metas de superávit primário, das reformas institucionais, e das privatizações muita gente foi para o olho da rua ou trilhou as ruas da amargura ao ver suas firmas quebrarem. Uma série de políticas que, por seu turno, são rotuladas como “neoliberais” ou originárias do assim chamado “Consenso de Washington”. Não citaremos números acerca das repercussões sociais de tais medidas de “ajustamento estrutural”, porém os mesmos existem e não são exatamente inspiradores.
E estes agentes são muito organizados e falantes. Sobretudo em blogs e redes sociais, como também em sindicatos e federações patronais. Estes e estas, afeitas ao habitus corporativista, por sinal muito vinculadas a benefícios concentrados que somente as políticas públicas de um partido como o PT poderia (neste momento) propiciar. Os mesmos que vez por outra olvidam-se intencional e sistematicamente – salvo raras, honrosas e pouco ouvidas exceções – que os quase idênticos fundamentos da macroeconomia que trouxeram seu infortúnio passado ainda se acham em vigência no governo do PT, agora retraduzidos e reinterpretados como “ciclo de crescimento econômico sustentado”.
Por isto que a estabilização monetária e a associação dela a FHC e ao PSDB acabaram eclipsados historicamente. Por certo, isto pode também responder em larga medida pelas dificuldades e pelos complicadores que os tucanos enfrentam para comportarem-se enquanto partido de oposição, que muitos julgam não existir na atualidade.
Por outro lado não é válido o argumento da “incoêrencia” dos atores políticos quanto a temas econômicos e morais presentes na agenda pública. Este chavão do senso comum se converteu em verdadeiro mantra e, mais que isto, em palavra de ordem aos inconformados dos dois campos ideológicos hoje polarizados no Brasil.
Ainda que pareça justificado pelo prisma duma analise da ação política calcada na continuidade e na persistência de visões de mundo e comportamentos, como se as circunstancias e situações da realidade política fossem paradoxalmente anódinas e destituídas de desafios e contradições. Se assim o fossem qual seria o sentido de jogo que o campo político onde se colocam os partidos os encorajaria a internalizar? Como desenvolveriam ou cultivariam suas vocações e seus instintos políticos? Como domesticariam suas paixões ideológicas em prol dos interesses de longo prazo no mercado político?
Enquanto ambos os principais partidos políticos se acusam mutuamente de “votar contra os interesses do país” a vida brasileira segue e a sociedade brasileira segue sua evolução dinâmica impulsionada pela cooperação quase sempre espontânea dos indivíduos que a integram. E o fazem de cabeça erguida e alheios ao clima político polarizado, que somente uma metáfora futebolística poderia aludir tão bem.
Por certo outras partidas foram jogadas como a dos programas de transferência de rendas (a querela da “paternidade” do Bolsa Família é das mais nauseantes e infrutíferas que se tem noticia), das políticas de ação afirmativa e mais recentemente do “Mais Médicos” (rotulado como “neoescravagismo” de médicos cubanos, mas que também foi utilizada pelo governo do PSDB em fins dos anos 1990).
Se uma coisa há que esta bipolaridade ou dualismo na política brasileira nos ensinou é algo a que a classe política da Primeira República (1889-1930) já aprendera a respeita de sua predecessora no longevo período imperial (1822-1889).
Se verdade é que, parafraseando os representantes daquele período, “não há nada mais tucano que um petista ao assumir o governo” e vice-versa (ou ainda “não há nada mais petista que um tucano ao ir para a oposição”), então desta asserção deflui que as mudanças demandadas pela sociedade brasileira não ganham ritmo nem alcance a menos que os agentes alternem os campos de atuação política em que se situam, apreendendo adequadamente o sentido do jogo que é disputado e assim redefinindo sua mentalidade em função dos desafios, obstáculos e paradoxos enfrentados.
O embate PT X PSDB, enfim, ilustra a capacidade dos agentes no sistema político brasileiro de se autoiludirem (como facilmente se depreende dos depoimentos dos ex-presidentes Lula e FHC) e de nutrirem expectativas e metas de recompensa que não podem ser satisfeitas sem transgredir ou autosubverter suas mesmas crenças fundamentais. Este é o sentido de jogo que as classes políticas da Nova República apreenderam de sua mesma vivencia e do legado dos posteros e dos quais não conseguem se livrar.
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Notas:
¹Discurso FHC: Plano Real – 20 anos. Disponível em: http://m.youtube.com/watch?v=-J2qmKqABRk
²Ver:
³ Lei Federal Nº 9.069, de 29 de junho de 1995. (Conversão da MPv nº 1.027, de 1995. Dispõe sobre o Plano Real, o Sistema Monetário Nacional, estabelece as regras e condições de emissão do Real e os critérios para conversão das obrigações para o REAL, e dá outras providências.
4 Lei Complementar Nº 101, de 4 de maio de 2000.Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências.
5 Lula não acreditava na Plano Real. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=ujG23RIEHJM
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