sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A encruzilhada brasileira (Fernando Gabeira)




"Hey! Matilda, Matil-da, she take me money and run Venezuela." Se invertemos as frases desse calipso celebrizado por Harry Belafonte nos anos 1950, talvez tenhamos uma boa visão das relações do Brasil com a Venezuela.

As relações comerciais quadruplicaram com a ascensão do chavismo, com saldo brasileiro. O País tornou-se o terceiro parceiro comercial da Venezuela, perdendo apenas para os EUA e a China. Não só os alimentos da chamada cadeia proteica, principalmente carne bovina, são vendidos por lá, também a água mineral nos restaurantes de Caracas costuma ser brasileira. A Embraer vende aviões, a Odebrecht e a Camargo Corrêa buscam se consolidar associando-se ao setor petroleiro. Enfim, tudo parece correr bem para os nossos negócios.

Até na fronteira, em Santa Helena do Uairen, fiquei sabendo que as compras foram recordes nos grandes feriados. O real valia 2,8 bolívares e nossos turistas levavam tudo o que podiam nos seus carros abastecidos com gasolina subsidiada pelo governo de lá. Na estrada entre Boa Vista e Santa Helena podem ser vistos os traços de um grande comércio formiguinha, o do contrabando de gasolina. Várias carcaças de carros marcam o curso da estrada, de modo geral queimadas e abandonadas por contrabandistas fugindo da polícia.

Neste momento pós-Chávez, em que a Venezuela entra numa crise, o governo endurece a repressão aos opositores, compactua com grupos armados que atiram na multidão, prende e tortura manifestantes, o que o Brasil pode dizer? Laços comerciais não impediram que o maior parceiro da Venezuela condenasse a política de Nicolás Maduro e o aconselhasse a considerar o que pedem os seus opositores. Mas os americanos são los americanos. O nó que nos ata à Venezuela não é apenas comercial, mas ideológico.

Existe um medo de condenar os erros da política de Maduro porque, desde os primórdios do tempo, um princípio aterrador domina a esquerda: não mencionar os fatos que possam fortalecer o campo adversário. Nesse processo, a omissão ou mesmo a distorção dos fatos passam a ser vividas como um mais alto dever, o de preservar a experiência revolucionária. Isso vale para Cuba e para a Venezuela, uma vez estão entrelaçados e o próprio know-how repressivo cubano foi transplantado para o chamado socialismo do século 21.

O general Angel Vivas, entrincheirado com um fuzil na sua casa em Prado del Este, afirmou no Twitter que estava para ser presos por cubanos e gente da Guarda Nacional Bolivariana. Vestindo camisa vermelha, motociclistas armados atiraram na multidão. Atingiram a cabeça da Miss Turismo de Carabobo. Que perigo Génesis Carmona, de 22 anos, representava para o tal socialismo do século 21? Que perigo representam todos os estudantes que estavam com ela protestando contra o governo?

São golpistas, diz Maduro. Mas Nicolás Maduro é uma rara espécie de visionário. Ele vê Hugo Chávez transfigurado num passarinho, vê o rosto de Chávez numa escavação de metrô e sua visão mais cômica se deu na cela onde está preso Leopoldo López. Maduro afirma que um desconhecido foi preso tentando entrar na cela de López com inúmeros mapas das instalações petrolíferas do país. Mesmo um roteirista de cinema teria dificuldades de dar um toque de realidade a essa versão. Como ter acesso à cela de López? De que adiantariam para ele os mapas na prisão? Por que não estudaram esses mapas nos longos anos de liberdade?

Maduro é condutor de um processo que arrebata ainda a simpatia de alguns europeus e de uma faixa da juventude de esquerda. O único fator a que se apegam seus defensores é o apoio popular. Mas mesmo esse apoio começa a ser corroído. Ao ler mais atentamente os textos do Tal Cual, percebi que ao mencionar a oposição o jornal diz também que alguns chavistas discordam da repressão de Maduro. Horas depois constatei que falava de algo real: o governador de Táchira, José Vielma Mora, criticou a prisão de López e condenou os métodos do governo. Vielma Mora é chavista.

Num momento tão dramático para o continente, estamos atados a dois nós. Para desatar o primeiro, o econômico, é preciso introduzir um visão de médio prazo. A economia venezuelana está em decadência e muito provavelmente os negócios não serão tão sedutores nem os pagamentos, pontuais. Sempre teremos relações com a Venezuela: é preciso pensar nisso, antes de embarcar na canoa de Maduro.

Para desatar o segundo nó, o ideológico, é preciso levar o governo ao debate, saber o que está vendo na crise venezuelana. Se confiar só em Maduro, verá passarinhos durante o dia e carneirinhos antes de dormir. Como é possível identificar-se com um projeto que melhorou as condições imediatas dos pobres, mas está se mostrando insustentável em termos econômicos, mata misses, sufoca a imprensa, prende estudantes, aterroriza a oposição?

Não tenho esperança de convencê-los, como não tinha de convencer as pessoas de que o mundo não acabaria em 2012. Mas quando se trata de uma questão política que envolve a imagem internacional do Brasil é preciso buscar um mínimo de convergência. É preciso que o governo compreenda que criticar a violação dos direitos humanos na Venezuela não é dar munição aos adversários de Nicolás Maduro. Ela foi dada pelo próprio Maduro quando viu uma tentativa de golpe num movimento de protesto. A munição nasce dos fatos e quando começamos a negá-los por um dever de consciência alguma coisa está errada com o próprio sentido da palavra.

Compreendo que o governo tem ganho as eleições e, no momento, desfruta o apoio da maioria. Mas isso o autoriza a vestir uma camisa partidária em nosso peito juvenil e outros peitos de idade mais avançada?

Traçamos uma linha imaginária no século passado e continuamos a nos orientar por ela. Esquerda ou direita? E estamos levando o nosso rigor geométrico para os cemitérios: mortos de esquerda ou de direita?

Diante de nós, a Venezuela em transe.

*Fernando Gabeira é jornalista.

Fonte: O Estado de S. Paulo

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A confusão sob os céus (Luiz Sérgio Henriques)




Houve um tempo, há uma geração ou mais, em que vertentes radicais do comunismo conseguiam adeptos mesmo entre intelectuais respeitados do Ocidente, ainda que promovessem, aquelas vertentes, experimentos sociais particularmente controvertidos. Foi o caso do Grande Timoneiro, Mao Tsé-tung, e sua Revolução Cultural, que se colocavam como "faróis" para franjas do que se chamava de movimento comunista mundial, franjas que tiveram um papel até na guerrilha rural brasileira dos tempos do regime militar.

O quadro, hoje, é notavelmente diverso, tanto no Brasil redemocratizado como no mundo abalado por grandes transformações, entre as quais a emergência do gigante chinês em chave antimaoista, misturando, como se sabe, autocracia política e mercado capitalista a pleno vapor, saída autoritária imaginada por um líder em desgraça nos tempos da Revolução Cultural, Deng Xiao Ping.

Ao considerar nosso momento político, em ano eleitoral e num mundo às voltas com o que talvez possa ser caracterizado como "estagnação secular", nenhuma daquelas espetaculares transformações impede que se relembre uma das últimas consignas do hoje esquecido Timoneiro, segundo a qual a situação será sempre excelente exatamente quando for muito grande a confusão reinante sob os céus. Versão oriental, com breves tons de lirismo, para o que nos acostumamos a chamar, mais prosaicamente, de "quanto pior, melhor".

O principal ator político da cena brasileira, um partido fundado há apenas 34 anos, quase 12 dos quais à frente do poder central, para não mencionar a condição de favorito em outubro próximo, não é propriamente fator alheio à confusão nacional. De vocação fortemente hegemônica - no que esta palavra tem de pendor excludente, no sentido de subordinar fortemente os aliados, domando-os pelos mecanismos tradicionalíssimos do presidencialismo de cooptação -, opera a "luta política" com desenvoltura e contundência: deixada a si mesma, sua cultura pareceria destinada a deslegitimar o adversário (qualquer adversário) e a própria ideia de alternância.

Partido de massas, com senso agudo de controle das alavancas do poder e submetido a liderança carismática inconteste, é dono, além de tudo, de influente narrativa sobre a sociedade brasileira: uma sequência de equívocos protagonizada pelas "elites" durante cinco séculos, só interrompida pelas eleições de 2002. A partir daí, segundo retórica triunfalista de infausta memória na esquerda, ter-se-ia inclusão social sem paralelo possível com nenhum período anterior, especialmente com os governos da social-democracia "neoliberal". Comportamentos duvidosos, como os que levaram à Ação Penal 470, nem sequer são reconhecidos autocriticamente, quando não "absolvidos" pela revolução social que estaria em curso.

A confusão aumenta sensivelmente quando se observam os resultados práticos, na sociedade, de uma ação de governo hegemonizada por linguagem de esquerda (e até de extrema esquerda), mas paradoxalmente identificada com a generalização de valores mercantis - resultado objetivo de serviços públicos de qualidade sofrível, que fortalecem o consumo privado em áreas que qualquer Estado de bem-estar retiraria do arbítrio do mercado e garantiria como direitos da cidadania.

A degradação das metrópoles (o automóvel!), mas não só delas, fornece o caldo de cultura em que viceja o lado pior dos "novíssimos movimentos sociais": o lado avesso à mediação e às formas da democracia, tidas como falidas, com a consequente irrupção do protesto violento dirigido, abstratamente, contra símbolos imediatos da "opressão", aí incluídos bens de utilidade pública, o comércio, a banca de jornal, o jornalista a serviço da "mídia burguesa" ou o policial individualmente considerado - este mesmo que um dia, em outro contexto de intenso conflito, alguém como Pasolini dizia, em texto complexo, ser "filho de pobres, vindo das periferias, camponesas ou urbanas que sejam". (Para eliminar explorações equívocas, a violência da instituição policial brasileira, uma das campeãs mundiais de letalidade, e o despreparo de muitos de seus integrantes fazem parte dos serviços de má qualidade ofertados à sociedade, ela mesma às voltas com a crueldade de justiceiros e linchamentos, os quais por vezes apoia e sobre os quais se divide pavorosamente.)

Existe assim, de modo patente ou apenas intuído, um continuum entre uma política levada adiante com poucos escrúpulos institucionais, para a qual se pode fazer o diabo e só não vale perder eleição, e uma sociedade que se torna progressivamente "incivil", obviamente não à beira da revolução preconizada pelo Timoneiro, mas em meio à barbárie de seus 50 mil homicídios anuais.

O cenário da grande confusão sob os céus pode estar em preparação: ruas sequestradas por pequenos grupos, perplexidade das oposições, reações governamentais desajuizadas, como quando, no rastro dos eventos de junho, a presidente da República propôs "Constituinte exclusiva" para a reforma política, ao arrepio da legalidade vigente. A bem da verdade, proposta logo abandonada, mas que volta e meia reaparece como fator de desordem institucional, defendida por admiradores, na elite petista, do modelo chinês de partido-Estado e da relação que teria instaurado com o mercado, supostamente garantindo, como cláusula pétrea, um igualitarismo que só existe nas imagens mais edulcoradas. Modos chineses numa hora dessas?

Não se pode dizer que sejamos uma democracia sem democratas ou uma sociedade sem anticorpos para tentações autoritárias. Será mais certo dizer que (ainda) não temos, à esquerda, um partido que faça da Constituição o seu programa. A mera existência de tal partido permitiria superar com serenidade as tensões que vivemos e as que certamente nos aguardam.

*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta e um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil.

Fonte: O Estado de S. Paulo

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

PLANO REAL: O VINTÊNIO DE UM “FLA x FLU” DA ECONOMIA POLÍTICA BRASILEIRA (José Roberto Bonifácio)

A presente semana iniciou-se com as comemorações em torno do lançamento do Plano de Estabilização Macroeconômica (Plano Real). E, as usual, nos permitiu vislumbrar os contornos e a dinâmica do campo em que se movem os principais atores que atuaram suja como protagonista e antagonista daquele jogo político.

O que a capitulo de história institucional brasileira delimitado pela implantação e materialização do Plano Real nos ensina? Que características dos agentes políticos (partidos, representantes e lideranças) nos permite iluminar? O quê os dois times tem em comum entre si? Como eles formam, sustentam e subvertem (no mais das vezes) as suas crenças e expectativas fundamentais no desenrolar das circunstancias e situações com que se defrontam?

Seria praticamente ocioso afirmar que o sentimento generalizado entre os que protagonizaram aquele momento político é o de que o povo esqueceu os benefícios da estabilização macroeconômica. E ao mesmo tempo premiou aqueles que, quando na oposição, votaram de forma sistemática “contra os interesses do Brasil e dos brasileiros”.

No dizer do ex-presidente e ex-ministro da Fazenda à época do lançamento das medidas de ajustamento econômico, Fernando Henrique Cardoso:

“O plano Real não foi mágica feita de uma hora para outra. Foi um trabalho duro, de reconstrução da credibilidade nacional. O Plano Real é o único plano econômico que não sofreu restrição judicial, porque respeitou o ordenamento jurídico.”¹

A despeito do brilhantismo e do glamour de que habitualmente são revestidos os seus discursos, não foi muito bem exata a assertiva do tucano de que inexistiram contestações judiciais às medidas de estabilização como veremos a seguir.

Que o diga a Revista Veja, sempre fiel a seu papel de “partido” oposicionista autoconferido (na visão da imprensa alternativa hoje entrincheirada em blogs e redes sociais), que efetuou um interessante levantamento dos pontos de vista de representantes e intelectuais do PT naquela ocasião2.

A mesma recorda que em 29 de junho de 1995, no Congresso Nacional o então oposicionista PT votou contra Medida Provisória nº 542, convertida na Lei Federal nº 9.069, de 29 de junho de 19953, a qual introduziu o Real como nova moeda brasileira.

E, para justificar as assertivas que o acusam de incoerência na passagem do campo da oposição para o da situação, o Petismo foi muito além em sua sinalização eleitoral.

Dentre outras medidas, seus representantes impetraram no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADIN) contra o plano.

E cinco anos depois, após manifestarem-se similarmente contra uma série de medidas legiferrantes institucionalizadas sobretudo via Medidas Provisórias, o então mais agressivo dos partidos de oposição voltou à alta Corte para tentar fazer cessar os efeitos da Lei Complementar nº 101/2000 (mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal) que limitou o crescimento das despesas dos estados e municípios, assim coroando o esforço de contenção fiscal da União.

Tendo em vista o diagnostico de incoerência (compartilhado tanto pela oposição quanto por ex-situacionistas e por muito da esquerda moderada), vejamos então um breve apanhado acerca de quais eram (segundo a Veja) os pontos de vistas dos atuais situacionistas no momento em que se achavam nas oposições ao governo que intentava a reforma monetária do Brasil:

“Esse plano de estabilização não tem nenhuma novidade em relação aos anteriores. Suas medidas refletem as orientações do FMI (…) O fato é que os trabalhadores terão perdas salariais de no mínimo 30%. Ainda não há clima, hoje, para uma greve geral, mas, quando os trabalhadores perceberem que estão perdendo com o plano, aí sim haverá condições”. (Lula, Estado de S. Paulo 15.01.94)

“O Plano Real tem cheiro de estelionato eleitoral” (Lula, O Estado de S. Paulo, 6.7.94) 5.

 “Existem alternativas mais eficientes de combate à inflação (…) É fácil perceber porque essa estratégia neoliberal de controle da inflação, além de ser burra e ineficiente, é socialmente perversa.” (Guido Mantega, Folha de S. Paulo – 16 de agosto de 1994)

 “O Plano Real é como um “relógio Rolex, destes que se compra no Paraguai e têm corda para um dia só (…) a corda poderá durar até o dia 3 de outubro, data do primeiro turno das eleições, ou talvez, se houver segundo turno, até novembro”. ( Marco Aurélio Garcia, O Estado de S. Paulo, 7.7.94)

 “Não é possível que os brasileiros se deixem enganar por esse golpe viciado que as elites aplicam, na forma de um novo plano econômico”( Gilberto Carvalho, O Milagre do Real/ Neuto Fausto De Conto)

“O Plano Real não vai superar a crise do país (…) O PT não aderiu ao plano por profundas discordâncias com a concepção neoliberal que o inspira” (Aloizio Mercadante, do livro “O Milagre do Real”, de Neuto Fausto de Conto)

 “O Plano Real só traz mais arrocho salarial e desemprego” ( Vicentinho, então sindicalista e atual líder do PT na Câmara dos deputados, no livro O Milagre do Real)

 “O plano real foi feito para os que têm a riqueza do País, especialmente o sistema financeiro” ( Maria da Conceição Tavares, Jornal da Tarde, 2.3.94)

 “Haverá inflação em reais, mesmo que o equilíbrio fiscal esteja assegurado, simplesmente porque as disputas distributivas entre setores empresariais, basicamente sobre juros embutidos em preços pagos a prazo, transmitirão pressões inflacionárias da moeda velha à nova.” (Paul Singer, Jornal do Brasil – 11.3.94)

 “O Plano Real é um arrocho salarial imenso, uma perda sensível do poder aquisitivo de quem vive do próprio trabalho”. (Paul Singer, Folha de S. Paulo, 24.7.94)

 “O Plano Real não passa de um remendo” (Gilberto Dimenstein, Folha de São Paulo, 31 de julho de 1994).

 Já se sabe há tempos como o PT conseguiu persuadir o eleitor mediano a respeito de suas credenciais para gerir a macroeconomia sem sujeitar o país a um turbilhão coletivista e socializando à moda soviética. E ainda que os liberais mais empedernidos (austrian scollars à frente) protestem veementemente contra políticas intervencionistas (as quais rotulam indistintamente como “socialismo” e “estatismo’) em termos de, entre outras medidas, contenção das elevações de preços de energia e cesta básica, do fomento e proteção a cadeias produtivas industriais e da elevação da taxa de investimento na economia, esta confiança majoritária persiste no eleitorado. Que o digam as pesquisas de opinião com resultados que reiteradamente acentuam a vantagem eleitoral da presidente Dilma Roussef para a reeleição este ano.

Com respeito ao PSDB e a dificuldade de comunicar-se com as maiorias o problema que se coloca, como já escrevemos outrora, não é tanto uma questão de competência dos agentes políticos.

Pelos dois lados, o problema é mais profundo e psicosssociológico. Como os psicólogos comportamentais e neurocientistas já demonstraram, os indivíduos guardam com maior clareza as memorias de dor e perda do que aquelas de vitorias e ganhos. Infelizmente em decorrência da abertura comercial e financeira, dos juros altos e do cambio subvalorizado, metas de superávit primário, das reformas institucionais, e das privatizações muita gente foi para o olho da rua ou trilhou as ruas da amargura ao ver suas firmas quebrarem. Uma série de políticas que, por seu turno, são rotuladas como “neoliberais” ou originárias do assim chamado “Consenso de Washington”. Não citaremos números acerca das repercussões sociais de tais medidas de “ajustamento estrutural”, porém os mesmos existem e não são exatamente inspiradores.

E estes agentes são muito organizados e falantes. Sobretudo em blogs e redes sociais, como também em sindicatos e federações patronais. Estes e estas, afeitas ao habitus corporativista, por sinal muito vinculadas a benefícios concentrados que somente as políticas públicas de um partido como o PT poderia (neste momento) propiciar. Os mesmos que vez por outra olvidam-se intencional e sistematicamente – salvo raras, honrosas e pouco ouvidas exceções – que os quase idênticos fundamentos da macroeconomia que trouxeram seu infortúnio passado ainda se acham em vigência no governo do PT, agora retraduzidos e reinterpretados como “ciclo de crescimento econômico sustentado”.

Por isto que a estabilização monetária e a associação dela a FHC e ao PSDB acabaram eclipsados historicamente. Por certo, isto pode também responder em larga medida pelas dificuldades e pelos complicadores que os tucanos enfrentam para comportarem-se enquanto partido de oposição, que muitos julgam não existir na atualidade.

Por outro lado não é válido o argumento da “incoêrencia” dos atores políticos quanto a temas econômicos e morais presentes na agenda pública. Este chavão do senso comum se converteu em verdadeiro mantra e, mais que isto, em palavra de ordem aos inconformados dos dois campos ideológicos hoje polarizados no Brasil.

Ainda que pareça justificado pelo prisma duma analise da ação política calcada na continuidade e na persistência de visões de mundo e comportamentos, como se as circunstancias e situações da realidade política fossem paradoxalmente anódinas e destituídas de desafios e contradições. Se assim o fossem qual seria o sentido de jogo que o campo político onde se colocam os partidos os encorajaria a internalizar? Como desenvolveriam ou cultivariam suas vocações e seus instintos políticos? Como domesticariam suas paixões ideológicas em prol dos interesses de longo prazo no mercado político?

Enquanto ambos os principais partidos políticos se acusam mutuamente de “votar contra os interesses do país” a vida brasileira segue e a sociedade brasileira segue sua evolução dinâmica impulsionada pela cooperação quase sempre espontânea dos indivíduos que a integram. E o fazem de cabeça erguida e alheios ao clima político polarizado, que somente uma metáfora futebolística poderia aludir tão bem.

Por certo outras partidas foram jogadas como a dos programas de transferência de rendas (a querela da “paternidade” do Bolsa Família é das mais nauseantes e infrutíferas que se tem noticia), das políticas de ação afirmativa e mais recentemente do “Mais Médicos” (rotulado como “neoescravagismo” de médicos cubanos, mas que também foi utilizada pelo governo do PSDB em fins dos anos 1990).

Se uma coisa há que esta bipolaridade ou dualismo na política brasileira nos ensinou é algo a que a classe política da Primeira República (1889-1930) já aprendera a respeita de sua predecessora no longevo período imperial (1822-1889).

Se verdade é que, parafraseando os representantes daquele período, “não há nada mais tucano que um petista ao assumir o governo” e vice-versa (ou ainda “não há nada mais petista que um tucano ao ir para a oposição”), então desta asserção deflui que as mudanças demandadas pela sociedade brasileira não ganham ritmo nem alcance a menos que os agentes alternem os campos de atuação política em que se situam, apreendendo adequadamente o sentido do jogo que é disputado e assim redefinindo sua mentalidade em função dos desafios, obstáculos e paradoxos enfrentados.

O embate PT X PSDB, enfim, ilustra a capacidade dos agentes no sistema político brasileiro de se autoiludirem (como facilmente se depreende dos depoimentos dos ex-presidentes Lula e FHC) e de nutrirem expectativas e metas de recompensa que não podem ser satisfeitas sem transgredir ou autosubverter suas mesmas crenças fundamentais. Este é o sentido de jogo que as classes políticas da Nova República apreenderam de sua mesma vivencia e do legado dos posteros e dos quais não conseguem se livrar.
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Notas:

¹Discurso FHC: Plano Real – 20 anos. Disponível em: http://m.youtube.com/watch?v=-J2qmKqABRk

²Ver: . Conferir também a seguinte manifestação no site do PSDB. Há 20 anos o PT votou contra o Plano Real, que o ex-presidente Lula chamou de “estelionato eleitoral”.  Relembre aqui: http://bit.ly/1mGcGdf

³ Lei Federal Nº 9.069, de 29 de junho de 1995. (Conversão da MPv nº 1.027, de 1995. Dispõe sobre o Plano Real, o Sistema Monetário Nacional, estabelece as regras e condições de emissão do Real e os critérios para conversão das obrigações para o REAL, e dá outras providências..

4 Lei Complementar Nº 101, de 4 de maio de 2000.Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. .

5 Lula não acreditava na Plano Real. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=ujG23RIEHJM

O reino dos interesses e a política (Luiz Werneck Vianna)




É preciso ser um incréu empedernido para não reconhecer a presença do fato político nas manifestações das jornadas de junho, tomando-as como um mero episódio da vida juvenil e de suas vicissitudes nas grandes metrópoles brasileiras. Sob esse viés, aqueles massivos acontecimentos, que suspenderam a marcha conhecida do nosso cotidiano com o registro da surpresa e do espanto, pertenceriam ao reino da Sociologia e da Antropologia Social. Decerto que os recursos dessas disciplinas para a observação de eventos desse tipo são, além de próprios, absolutamente necessários. Mas a eles não pode faltar, para que a narrativa seja compreensiva, uma abordagem política da cena especificamente brasileira. Sobretudo pela recusa manifesta dos personagens envolvidos em admitir a presença de partidos e personalidades políticas em seus atos de protesto. Admissão tácita de que se queria outra política.

Com as jornadas de junho, sob um governo há mais de uma década sob a hegemonia de um partido saído das fileiras da esquerda, constatou-se, à vista de todos, sua falta de vínculos com a juventude e a vida popular. E isso malgrado seus êxitos em sua política de inclusão social e de relativo sucesso, especialmente no mundo agrário, de modernização da economia. Estava ali, nas ruas, no clamor pela democratização das políticas públicas e por maior participação na definição dos seus rumos, o sintoma evidente de que nos encontramos no fim de um longo ciclo da política brasileira, qual seja, o da modernização.

Com efeito, tudo traduzido, o que a sociedade expressava era seu desconforto contra tudo isso que está aí. Desconforto provocado pela profunda dissidência entre as palavras e as coisas, assim enquanto as leis vêm assegurando inéditas garantias em termos de liberdades civis e públicas, enquanto as manifestações dos três Poderes republicanos reverenciam ideais de igualdade social, uma sociedade transfigurada por alterações de largo alcance em sua composição demográfica e estrutura de classes e ocupacionais não encontra na esfera pública, que se apresenta como uma reserva de poucos, canais a fim de que possa exigir a satisfação dessas promessas igualitárias.

A intensa energia da vida associativa, inclusive dos seus setores subalternos, e de sua rica e poliforme vida mercantil não se faz presente no sistema dos partidos, a não ser fragmentariamente. Quem vocaliza o empresariado paulista, o mais robusto do País, é a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), um órgão corporativo, assim como é a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) que exerce esse papel em nome dos interesses do agronegócio, uma das locomotivas atuais do capitalismo brasileiro. Quanto aos setores subalternos do campo, é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), apartidário por opção, que se arvora em assumir essa representação. Os casos desse tipo se multiplicam e dispensam, porque notórios, ser listados. No caso, ainda chama a atenção a prática de boa parte dessas entidades ou de seus membros de favorecerem com doações partidos rivais nas disputas eleitorais.

Esse não é um registro trivial, uma vez que o usual em sociedades democráticas, em particular nas que vivem sob organização capitalista, é que o reino dos interesses não seja refratário - na escala em que é aqui - ao sistema de partidos. Sem eles os partidos perdem identidade e vínculos com a sociedade, tendendo a se comportar como máquinas orientadas para a sua própria reprodução. Essa patologia brasileira não é recente e, paradoxalmente, encontrou no PT antes de se tornar governo um dos principais arautos desse mal, como em suas críticas tanto ao sindicalismo nascido da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que abafaria a livre expressão dos conflitos entre o capital e o trabalho, quanto ao nacional-desenvolvimentismo, que ataria politicamente a sociedade aos desígnios do Estado.

Fora de controvérsia que os governos do PT deram nova vida a essas duas políticas, reforçando a primeira com a legislação sobre as centrais sindicais e fazendo da segunda o Leitmotiv da sua linha de ação governamental. O presidencialismo de coalizão - prática que herdou de governos anteriores, simulacro de um parlamentarismo de fantasia a camuflar a soberania do Poder Executivo sobre o Legislativo - consistiu na modelagem política que lhe permitiu o movimento de camaleão de se apresentar como novo condutor do processo de modernização brasileira. Um longo fio vermelho comunicaria a era Vargas ao PT, em comum, nesses dois tempos, o retraimento da dimensão dos interesses diante dos partidos e a sua gravitação em torno do Estado.

A diferença, é claro, estaria no cenário institucional. O ciclo de modernização desencadeado pelo PT, com o estilo decisionista intrínseco a ele, estaria obrigado à difícil convivência com a Carta Magna de 1988, expressão de uma filosofia política centrada nos ideais de autonomia do indivíduo e da sociedade diante do Estado. Como amplamente verificado, eventuais obstáculos têm sido contornados e o processo de modernização segue o seu curso. Os interesses deslocados ou mal postos diante das políticas de Estado teriam de se conformar com a alternativa de recorrer ao Judiciário - uma das raízes fundas do processo de judicialização da política deve ser procurada aí - ou, em casos extremos, às ruas, como se testemunha desde os idos de junho.

O assim chamado poder incumbente, para que esse eufemismo à moda ganhe sentido, supõe uma prévia manifestação de vontade com origem numa esfera pública democrática. Se a manifestação dessa vontade estiver viciada por um presidencialismo de coalizão que a degrade como a vontade de um só Poder, não há incumbência, mas usurpação praticada em nome de um suposto interesse geral que um governante encarnaria. Se assim, para que partidos?

*Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da PUC-RIO.

Fonte: O Estado de S. Paulo (24/02/14)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

As manifestações renovarão os mecanismos existentes ou criarão novos? (Rodrigo Nunes/entrevista)

No Brasil, o maior movimento de massa desde as "Diretas Já" aconteceu sem que as grandes organizações de massa tivessem um papel central”.
As manifestações que se iniciaram no país desde junho do ano passaso relacionadas à “convergência de três tendências históricas”, das quais duas são “irreversíveis”: o uso das redes digitais, que gerou uma “autocomunicação de massa”, e a “queda vertiginosa dos custos de organização”, pontua Rodrigo Nunes, autor do livro The Organisation of the Organisationless: Organisation After Networks (A Organização dos Sem Organização: Organização Depois das Redes), que será publicado nos próximos meses. Por outro lado, assinala, a terceira “tendência histórica”, compreendida como a crise dos mecanismos de representação, não será solucionada rapidamente.
Para compreender o fenômeno que está ocorrendo, Nunes utiliza o conceito “sistema-rede”, a partir do qual se pode compreender como as manifestações nas ruas e nas redes estão conectadas. “Os sistemas-rede não são um mero agregado de indivíduos; são internamente diferenciados, com zonas mais esparsas e núcleos mais densos, mais orgânicos, mais organizados. Normalmente, são estes núcleos que têm o papel de convocar, definir protocolos, garantir um mínimo de estrutura, inclusive física, às ações”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Nunes também avalia as divergências e aproximações entre as novas manifestações e os movimentos sociais tradicionalmente organizados, surgidos durante a redemocratização do país. “Perguntar se um tipo de organização vai substituir o outro é como perguntar se o pires vai substituir o prato de sopa: são objetos semelhantes, mas que servem a fins distintos, e possuem uma forma adequada a sua finalidade. A organização é sempre uma resposta a uma situação específica”, esclarece. E acrescenta: “Não me parece que as organizações de massa tradicionais deixarão de existir, pelo menos no médio prazo. O que certamente muda é a ideia de que elas sejam o único modelo de organização viável, de que quem não se organiza como elas não está organizado. ‘Organizar-se’ deixa de ser sinônimo de ‘organizar-se assim’”.

Confira a entrevista.
Foto: Conexões Globais
IHU On-Line - O senhor define os fenômenos que têm ocorrido no Brasil desde junho do ano passado, e em vários outros países nos últimos três anos, como “movimento de massa sem organizações de massa”. O que isso significa?
Rodrigo Nunes - Durante muito tempo, se acreditou que um movimento de massa de grande porte, mobilizando um grande número de pessoas em escala nacional, só poderia existir na condição de ser impulsionado por organizações com muitos membros, uma estrutura formal, uma liderança instituída.
Isso foi um motivo de grande crise para a esquerda mundial desde os anos 1980 e no Brasil desde a década de 1990, porque os sindicatos encolheram, os partidos e movimentos perderam capacidade de mobilização. Logo, grandes movimentos pareciam estar se tornando impossíveis. Foi também a crise dos partidos à esquerda do PT desde 2002, que tentaram, justamente, criar novas centrais sindicais, novos organismos de representação estudantil.
Os últimos três anos provaram que é possível que um movimento de massa se constitua na ausência deste tipo de organização. Pode-se discutir em que medida isso é bom ou ruim, mas o fato é inquestionável: no Brasil, o maior movimento de massa desde as Diretas Já aconteceu sem que as grandes organizações de massa tivessem um papel central.
IHU On-Line - O que mudou no modo de as pessoas se organizarem e quais são as razões dessas mudanças?
Rodrigo Nunes - Parece-me claro que estamos vivendo a convergência de três tendências históricas, pelo menos duas das quais são irreversíveis.
Primeiro, a generalização crescente do uso de redes digitais de diversos tipos (e-mail, Twitter, Facebook, Whatsapp, Reddit, etc.), o que cria a possibilidade daquilo que Manuel Castells chamou de “autocomunicação de massa”.
Segundo, como consequência direta, uma queda vertiginosa dos custos de organização: ações coletivas, que no passado seria impossível organizar sem estruturas formais, agora são tarefas relativamente simples. Manifestações sindicais com carros de som, camisetas, jingles, “showmícios”, às vezes até militantes pagos, são hoje menores que protestos convocados no Facebook. Estas duas tendências são, em princípio, irreversíveis.
A terceira é uma crise dos mecanismos de representação que tem caracterizado as sociedades modernas do século XVIII para cá: voto, parlamento, partidos, sindicatos. Fatalmente, ela respinga também nas instituições da esquerda. Mais óbvia e urgente em países como Egito e Tunísia, ela é sentida mesmo nas democracias mais antigas, que foram corroídas por dentro pelo financiamento privado de campanhas, os lobbies corporativos, a concentração da mídia e da riqueza. Não à toa, o “eles não nos representam” espanhol é um dos slogans que mais circulou nos últimos anos.
Note-se que apenas o terceiro ponto tem a ver com uma disposição subjetiva. Várias análises ficam apenas neste nível, frequentemente para lamentar que se tenha perdido a fé em projetos coletivos de grande escala, porque só a renovação das organizações de massa existentes seria capaz de resolver a crise da representação. Mas elas perdem de vista o fato de que a organização em rede não é uma escolha consciente, sem ser, antes, o próprio modo como a vida pessoal e profissional da maioria das pessoas se dá. As pessoas não se organizam politicamente em rede porque elas querem — embora muitas também conscientemente prefiram fazê-lo —, mas porque elas já estão organizadas assim. É de se esperar que, se as pessoas vivem e se percebem vivendo cada vez mais em rede, o modo como elas se expressam politicamente também tenha essa forma.
Uma das questões em aberto hoje é: estes movimentos que estão ocorrendo, para quem a crise da representação é um problema central, renovarão os mecanismos existentes, constituirão novos mecanismos, ou caminharemos para uma crise cada vez mais aguda da democracia?

IHU On-Line - O que diferencia estes movimentos dos movimentos sociais tradicionais?
Rodrigo Nunes - A própria categoria de “movimento” é problemática para falar do que estamos vendo. “Movimento”, mesmo que não necessariamente implique estruturas formais como aquelas dos movimentos sociais “tradicionais”, inevitavelmente sugere uma certa unidade de objetivos, práticas, identidade. Em contraste, alguns pesquisadores têm usado o conceito de “sistema-rede”. Eu tento defini-lo com clareza no livro que será publicado este ano.
O sistema-rede é um sistema com diversas camadas, cada uma das quais é uma rede: a rede de pessoas na rua, de perfis do Facebook, de contas do Twitter, de espaços físicos em que as pessoas se encontram. As camadas não são redutíveis uma a outra. Nem todo mundo está em todas, e a rede no Twitter é diferente daquela do Facebook, que é diferente daquela do mundo físico. Os laços são outros, os nós são outros. Mas elas pertencem todas ao mesmo sistema, ou seja, interagem todo o tempo.
Pensar nestes termos nos permite ver como coisas que não estão direta ou conscientemente ligadas se comunicam. Por exemplo, como os “rolezinhos”, cujos organizadores talvez não estivessem inicialmente pensando em política, foram rapidamente politizados; ou como o Bom Senso FC, cujos membros provavelmente não estiveram nas ruas em junho, foi influenciado pelos protestos. Permite, ainda, entender como diferentes grupos tomam a dianteira em diferentes lugares e momentos, ou como as pautas e reivindicações vão se conectando, se diferenciando, se transformando (das tarifas à Copa, da Aldeia Maracanã ao “Onde Está Amarildo?” e ao “Fora Cabral”, de volta às tarifas).
Ou seja, não estamos falando de um movimento, com base social claramente delimitada, liderança definida, processos claros de tomada de decisão, mas de um sistema complexo de interações contínuas, dentro do qual pode haver de tudo: movimentos tradicionais, partidos, sindicatos, pequenos coletivos, redes informais de amigos, indivíduos “soltos”. E, portanto, diferentes identidades, objetivos, práticas.
É a diferença entre analisar um indivíduo isolado e como ele interage com o ambiente (como um movimento se organiza, que estratégia, que táticas usa), por um lado, e um ecossistema, por outro. Você não consegue explicar o que ocorre num ecossistema apenas pela ação de um agente — digamos, o Movimento Passe Livre (MPL). Você precisa observar como todos agem sobre todos, direta e indiretamente. A segunda perspectiva não invalida a primeira, obviamente, mas a primeira está contida na segunda.

IHU On-Line - O senhor critica também a oposição que às vezes se faz entre “redes” e “ruas”.
Rodrigo Nunes - É uma dicotomia falsa. A maioria esmagadora dos manifestantes está em ambas, e a ação das duas se complementa, se comunica, se amplifica. São duas camadas distintas, mas pertencem ao mesmo sistema.
Imagine que ninguém daqueles que foram ao primeiro ato de junho de 2013, digamos mil pessoas, tivesse postado imagens e relatos no Facebook, no Youtube, no Twitter; o alcance teria sido bem menor, menos gente teria saído às ruas no ato seguinte. Mas como quem ia num ato usava as redes digitais para discuti-lo e comentá-lo, no próximo ia mais gente, que por sua vez fazia o mesmo e alcançava ainda mais gente, que também ia no próximo – até que as imagens e relatos de repressão fizeram a coisa explodir. Cria-se um efeito de retroalimentação, um feedback positivo. É assim que o meio digital permite ir muito além da capacidade imediata de mobilização de quem está convocando, ao mesmo tempo que expande esta capacidade.
Aliás, não é preciso estar na internet para estar exposto a seus efeitos: o seu amigo se indigna com o que leu no Facebook, a liderança do seu movimento muda de posição depois de um debate no Twitter, a TV muda a notícia por causa do vídeo no Youtube. Como diz um amigo, nem todo mundo está na internet, mas todo mundo que está na internet está no mundo. Não existe “a internet” e “o mundo real”: a internet está dentro do mundo e age dentro dele, respondendo ao que a cerca.
“Não existe ‘a internet’ e ‘o mundo real’: a internet está dentro do mundo e age dentro dele, respondendo ao que a cerca”
Imersos num fluxo contínuo
Nós vivemos em um ambiente cada vez mais mediatizado, tanto pela comunicação de massa como pela autocomunicação de massa. Este é um dos motivos pelos quais os custos de organização caíram. No tempo das Diretas, ainda sob a ditadura e com um bloqueio completo da mídia, você realmente precisava de organizações com estrutura nacional, de lideranças que viajassem pelo país, etc. Mas hoje estamos cada vez mais imersos num fluxo contínuo de informação e afetos que nos chegam por diferentes meios — do qual, ainda por cima, podemos participar, dando nossas opiniões, fazendo propostas, expressando sentimentos.
Isto não se dá “na rede”, nem “na rua”; se dá no movimento entre uma e outra. E quando processos de retroalimentação se estabelecem, determinadas informações, afetos, palavras e imagens passam a dominar as interações nas ruas, nas redes digitais, na mídia tradicional. E aí um ato de mil pessoas vira o assunto de todas as conversas no dia seguinte, uma decisão tomada por 50 pessoas consegue a adesão de milhares no Facebook, uma frase dita no Twitter é reproduzida em centenas de cartazes.

IHU On-Line - Os movimentos sociais tradicionais deixarão de existir, então?
Rodrigo Nunes - Se você observar bem, a organização mais “orgânica” não deixou de existir; mas é como se, assim como tudo mais nas últimas décadas, ela tivesse passado por um downsizing. É preciso uma boa dose de pensamento mágico para achar que o que temos são indivíduos isolados convergindo “do nada”. Os sistemas-rede não são um mero agregado de indivíduos; são internamente diferenciados, com zonas mais esparsas e núcleos mais densos, mais orgânicos, mais organizados. Normalmente, são estes núcleos que têm o papel de convocar, definir protocolos, garantir um mínimo de estrutura, inclusive física, às ações. Isto porque eles têm mais capacidade executiva, já têm um certo reconhecimento entre as pessoas, têm as assembleias mais cheias, administram as páginas mais frequentadas, as contas de Twitter mais seguidas.
Como a mediatização permite, mesmo a quem não tem muitos membros, alcançar e mobilizar um grande número de pessoas, uma organização relativamente pequena pode gerar efeitos antes só possíveis com uma grande estrutura. Com isso, estes grupos podem permanecer relativamente pequenos e, portanto, mais flexíveis, informais, “horizontais”. Mas são eles que tendem a ter maior peso na estruturação da ação coletiva do sistema-rede. É o caso do Movimento Passe Livre (em São Paulo e agora no Rio), do Bloco de Lutas (Porto Alegre), dos Comitês Populares da Copa.

Fins distintos
Agora, perguntar se um tipo de organização vai substituir o outro é como perguntar se o pires vai substituir o prato de sopa: são objetos semelhantes, mas que servem a fins distintos, e possuem uma forma adequada a sua finalidade. A organização é sempre uma resposta a uma situação específica. Trabalhadores rurais, numa grande dispersão geográfica e com pouco acesso à internet, não vão se organizar da mesma maneira que a juventude urbana, embora os dois grupos possam estar conectados de diferentes maneiras, e nenhuma forma de organização seja mais “real” que a outra. Ambas são reais, as realidades é que são diferentes. Os sindicatos, tal como existem hoje, não dão conta de um imenso setor não formal, flexível e precarizado, mas formas de ação coletiva adequadas a esta realidade precisam ser elaboradas.
Não me parece que as organizações de massa tradicionais deixarão de existir, pelo menos no médio prazo. O que certamente muda é a ideia de que elas sejam o único modelo de organização viável, de que quem não se organiza como elas não está organizado. “Organizar-se” deixa de ser sinônimo de “organizar-se assim”.

A esquerda e a visão do átomo isolado
Uma das razões do preconceito que a esquerda “tradicional” nutre contra os “não tradicionais” parece ser a ideia de que, fora das organizações de massa que as agrupariam, as pessoas existem apenas como átomos isolados. As pessoas que estão nas ruas seriam, então, meros indivíduos “expressando sua subjetividade”. Isto é evidentemente falso. Por mais atomizantes que sejam as condições de vida hoje, as pessoas existem sempre dentro de diferentes redes familiares, profissionais, afetivas, políticas. As pessoas estão sempre agindo coletivamente, em graus maiores ou menores de consistência ou formalização; e normalmente é de núcleos mais organizados que partem as principais iniciativas. É um cenário mais fragmentário e complexo, sem dúvida, mas nem por isso caótico.

IHU On-Line - Quais podem ser as desvantagens deste tipo de organização?
Rodrigo Nunes - Desvantagens e vantagens são faces da mesma moeda. Usa-se uma metáfora da informática para distinguir um ativismo de “código fechado” (identidade definida, bandeira, camiseta, lideranças, etc.) de um ativismo de “código aberto”, relativamente aberto a diferentes identidades, práticas, táticas, compreensões. Isto não quer dizer que código fechado e aberto se excluam: dentro de um sistema-rede de código aberto você tem zonas de código fechado, e abertura e fechamento são sempre relativos, existem em graus. É óbvio, porém, que o poder de mobilização do código aberto é muito maior, porque se comunica com muito mais temas, muito mais pessoas. O código fechado exige uma conversão, o código aberto, apenas conexão. Alguém duvida que, se os protestos de junho tivessem sido só dos movimentos tradicionais, teriam sido bem menores? Aliás, também teriam sido menores se tivessem sido “puro sangue”: muita gente que saiu às ruas não necessariamente se identificaria como “de esquerda”, embora possa defender pautas progressistas.
Contudo, abertura implica menor coesão, dificultando a definição de estratégias, diluindo mensagens no meio de muito ruído, expondo o sistema-rede ao risco de tentativas de apropriação, como se viu no Brasil.
A questão é: vale mais um ecossistema pequeno e homogêneo, ou um grande, heterogêneo e difícil de controlar? Não existe resposta certa, mas são escolhas que precisam ser feitas continuamente, e cada uma tem seu preço. Quando aconteceu a tentativa de ressignificar o que estava ocorrendo como um movimento “anticorrupção” e “antigoverno”, houve uma resposta clara no sentido de aumentar o “fechamento”: “coxinhas, fora das ruas, este é um movimento de esquerda”. Barrou-se a tentativa de apropriação, mas mandou-se para casa também muita gente que não era necessariamente “de direita”. Foi uma oportunidade perdida de dialogar com pessoas que estavam participando da política pela primeira vez.

Fluxo contínuo de interações
Há outros limites, também. Como a vontade coletiva vai se formando dentro de um fluxo contínuo de interações, o processo de tomada de decisões é mais dinâmico, não está concentrado em um lugar. Por outro lado, muito do que se faz corre o risco de ser de curto prazo, reativo, uma resposta mais ou menos automática não à conjuntura como um todo, mas àquela coisa que aconteceu ontem.
Mas não é impossível que um pensamento de mais largo prazo se desenvolva a partir das redes. Experiências como o Rolling Jubilee nos Estados Unidos, a Plataforma de los Afectados por la Hipoteca na Espanha e o UK Uncut na Inglaterra, o próprio Movimento Passe Livre (MPL) no Brasil, demonstram isso. E aí voltamos à questão da irreversibilidade: se é fato que a política cada vez mais terá a forma das redes, é preciso pensar a partir delas para desenvolver suas capacidades imanentes de autocompreensão e ação estratégica. Não adianta ficar se lamentando. Para quem acredita que o telos de toda ação coletiva é sempre a constituição de um partido, a resposta a dar é a seguinte: hoje, se for surgir um partido, será de dentro das redes. Como, aliás, é o caso de uma experiência interessantíssima como o Partido X na Espanha, que propõe uma inovação realmente original da forma partidária.

IHU On-Line - Qual o legado dos movimentos sociais tradicionais para as novas manifestações de massa? Em sua intervenção no Conexões Globais, o senhor falou em um “conflito de gerações políticas”.
"Parece-me que desde junho do ano passado se cristalizou uma nova geração política no país, gestada no período em que o projeto da geração anterior tanto se realizou quanto revelou seus limites"
Rodrigo Nunes - Quando falo de geração, não é no sentido de idade. Uma geração se forma em relação a um evento, ou eventos, aos quais ela responde. O PT, a CUT, o MST são projetos da geração do período da redemocratização, que chegou ao poder, produziu mudanças importantes, mas cuja energia de transformação se exauriu. Não sou eu que digo isso, é o Secretário-Geral da Presidência da República!
Parece-me que desde junho do ano passado se cristalizou uma nova geração política no país, gestada no período em que o projeto da geração anterior tanto se realizou quanto revelou seus limites. Ela se organiza de outras formas e é movida não só pelo tema da pobreza, mas também por preocupações que se tornaram secundárias para aquele projeto: meio ambiente, direitos indígenas, diversidade sexual, direito à cidade. Acima de tudo, ela experimenta a crise de representação “do lado de cá”: a geração anterior virou representante, a nova não se sente representada.
Se os “mais velhos” forem sinceros em relação ao slogan “Para o Brasil Continuar Mudando”, terão de reconhecer que, hoje, a energia para a mudança vem da mais nova. Os protagonistas da política das ruas — e um compromisso com a política das ruas era uma das características da geração formada na redemocratização — são essa nova geração.
Essa clivagem geracional, aliás, passa por dentro das ruas também. Há muita gente de partidos ou movimentos mais tradicionais que está nas ruas, vivendo o choque. Por isso, há alguns meses, eu dizia: o antagonismo principal não é entre esquerda institucional e ruas, mas entre quem reconhece que algo de novo se passou de junho para cá e quem não reconhece. A condição para o diálogo é que se reconheça que há algo novo, fora das coordenadas que definiram a política brasileira da redemocratização até aqui. Com quem acha que junho não muda nada, não há conversa possível.
Qual é o legado importante da geração da redemocratização, que se exprime ou exprimiu nas organizações de massa que ela construiu? Além de um conceito específico de organização de massa, ao qual ela atribuía centralidade, aquela geração foi guiada pela ideia de que a população mais pobre deve se tornar protagonista da política. Trata-se de uma certa noção do “popular”, da importância do trabalho de base, da formação de lideranças, que tem sua origem nas Comunidades Eclesiais de Base da Teologia da Libertação.
Isto é, aliás, a origem de uma confusão (ou chantagem) comum, porque as organizações de massa criadas na década de 1980 tinham base popular; faz-se uma oposição entre “quem está nas ruas” (subentenda-se: a classe média) e as “organizações populares”. Em muitos casos, porém, isto é uma miragem. É olhar para as organizações tais como elas são hoje e enxergá-las como elas eram na década de 1980. Vá para um comício sindical, vá para o meio do Black Bloc, aí me diga, sem entrar em nenhum outro mérito: qual é o mais “popular”? Sem falar que, desde junho, temos visto muito mais mobilização nas favelas e nas periferias. Pode-se responder que são fenômenos pontuais que, se não forem organizados, não vão resultar em nada. É verdade. Mas, de novo, a organização pode tomar diferentes formas, e estes processos ainda estão muito no início. As classes populares não são monopólio das “organizações populares” formadas décadas atrás — e estas organizações, aliás, deveriam estar se perguntando por que perderam a penetração que um dia tiveram.
Embora muitos na esquerda tradicional os critiquem como pequeno-burgueses, “coxinhas de esquerda”, etc., grande parte de quem está nas ruas não me parece alheia à questão de como envolver a população mais pobre como agente da política. Podem ainda não ter ideias claras de como resolvê-la, mas o problema está posto, inclusive na prática de vários grupos: o MPL de São Paulo e vários Comitês da Copa têm base popular, há grupos que trabalham com os sem-teto ou moradores de favelas, o Bloco de Lutas dialoga com a base do Sindicato dos Rodoviários de Porto Alegre.

IHU On-Line - Os novos manifestantes recebem críticas por não apresentarem uma liderança ou direção tal qual a dos antigos movimentos. Qual é o significado dessa “horizontalidade” e da ausência de estruturas formais?
Rodrigo Nunes - Em primeiro lugar, é bom notar que você não tem um único movimento marchando sozinho, mas vários grupos de tamanho médio ou pequeno e um grande número de indivíduos soltos. Alguns grupos têm mais autoridade moral, mais experiência, mas nenhum conseguiria se impor sobre os demais. As pessoas não atentam para essa diferença e ficam cobrando uma “direção” que é objetivamente impossível, como se não tê-la fosse apenas uma opção subjetiva.
Em segundo lugar, ao invés de “movimentos horizontais”, prefiro falar em “movimentos distribuídos”. O “horizontalismo” é uma ideologia, segundo a qual seria possível eliminar completamente todos os diferenciais de poder; mas basta estudar as redes um pouco para ver que nunca são totalmente planas ou igualitárias. A horizontalidade tem valor como “ideia regulativa” no sentido kantiano: algo que você sabe que nunca vai conseguir realizar, mas ainda assim serve e orienta suas escolhas práticas. Mas movimentos distribuídos se caracterizam não por serem plenamente horizontais, mas por possuírem liderança distribuída. Como eles são mais informais e flexíveis, as funções de liderança estão distribuídas no tempo e no espaço e podem ser assumidas em diferentes momentos por diferentes grupos, indivíduos, etc. Neste sentido, não seriam movimentos “sem líderes”, mas o contrário: com muitos líderes, atuais e potenciais. A função de liderança está disseminada e circula, podendo ser ocupada, em princípio, por qualquer um.

Ação coletiva
Neste caso, “direção” é quem dirige, no momento em que dirige; quem consegue canalizar e estruturar a atenção e a ação coletiva para uma tarefa determinada num instante determinado. A direção existe em ato, dentro de um processo contínuo de formação de vontade coletiva e tomada de decisão. Pelos motivos práticos que vimos acima, é mais provável que núcleos mais organizados assumam essa função a maior parte do tempo. Mas isto é diferente de você ter uma estrutura formalmente designada como “representante” ou como “direção”, que será reconhecida como tal mesmo quando não estiver dirigindo nada.
O descompasso entre uma concepção e outra ficou patente em junho. Há uma maioria de jovens estudantes nas ruas, logo o governo chama a União Nacional dos Estudantes para conversar; mas eles não têm nenhum papel efetivo nos protestos, portanto não têm nada para negociar com o governo. Eis a crise da representação em um capítulo: o sistema político aloca a determinadas organizações a função de representar determinados segmentos, mas o segmento está se organizando completamente à revelia de seu “representante”. Então, você vai concluir que a culpa é da realidade, que não está conforme o sistema? Não, a culpa é do sistema, que está claramente em defasagem com a realidade. A rua não mente, não porque tenha sempre razão, mas porque é sintoma de alguma coisa real.
Na verdade, muitos ataques à falta de “direção” provêm justamente da recusa de setores da esquerda institucional em aceitar que a crise da representação afeta também as instituições da esquerda. A única direção legítima para um movimento de massa teria de vir das organizações de massa constituídas, dos partidos? Então por que eles não fizeram este movimento antes?

IHU On-Line - Diante deste quadro de “horizontalização” e “liderança distribuída”, como vislumbrar negociações ou mudanças no campo político?
Rodrigo Nunes - Há três questões a distinguir aí: a capacidade de implementar mudanças, os tempos e escalas das mudanças, a elaboração e negociação de programas positivos.
Começo do início. Embora se ouça uma retórica anarquista difusa, é evidente que reivindicações como passe livre e desmilitarização da polícia são dirigidas ao Estado e, portanto, exigem mediações institucionais. Porém, se é verdade que você dependerá do Estado para implementar certas transformações, não é o caso que você precise virar Estado para fazê-lo. Um exemplo? A redução das tarifas foi imposta pelas ruas aos governos. Por enquanto, é uma vitória pontual, impede que se faça algo, mas não cria nada novo. Mas digamos que pelos próximos três anos a pressão popular consiga barrar os aumentos; inevitavelmente, então, será preciso discutir as outras questões levantadas em 2013, que os prefeitos até aqui preferiram ignorar: o lucro das empresas, o financiamento do sistema de transporte, o passe livre universal. Aí se entra numa outra fase, em que será preciso combinar mobilização nas ruas, propostas concretas e agentes capazes de fazer a mediação. Isto é mais complicado, porque é muito mais fácil criar um consenso negativo (“não aos aumentos”) que um consenso positivo (“como financiar o transporte público”).
O que é pouco provável é que os movimentos atuais ponham todas as fichas na institucionalização. Não porque sejam “pós-modernos” ou tenham lido muito John Holloway, mas porque não crêem que o sistema político tal como é possa responder a suas demandas mais radicais. Não é que as pessoas acreditem que é possível mudar o mundo sem tomar o poder; elas duvidam que seja possível mudar o mundo tomando o poder! Se você sai das ruas e vira Estado, perde a alavancagem que permitiria fazer com que o sistema político saia do próprio eixo, pare de girar em falso.

Potenciais
Aí entra a questão dos tempos e escalas. Em virtude da convergência de crises mundiais (capitalista, ecológica, da representação) e do crescimento da mobilização, há um sentimento bastante compartilhado hoje de que é possível e necessário lutar não somente na curta, mas também na longa escala. Não só reduzir as passagens, mas transformar o sistema de transporte público; não só punir abusos, mas transformar a polícia; não só eleger representantes, mas transformar a política. Há tempos não havia um período tão perigoso, mas também tão rico em potenciais.
Inevitavelmente, porém, a longa escala envolve altos e baixos, vitórias e derrotas, avanços e recuos. Ela nem é linear nem se mede pelos tempos curtos dos ciclos eleitorais. Pelo contrário: se você sempre submete o objetivo de longo prazo às circunstâncias da próxima eleição, está apenas se iludindo que ainda o persegue. Há quem diga: “olhem o Egito, eles acabaram com uma ditadura; olhem a Espanha, a direita se elegeu”.
Em primeiro lugar, isso é esquecer que o Egito antes tinha uma ditadura, que a esquerda espanhola há anos fazia governos de direita. As pessoas deveriam ter ficado quietas, então?
Em segundo lugar, lá os movimentos estão falando de algo mais profundo que uma troca de governo; e você não pode julgar um jogo longo na segunda rodada. É como estar na Rússia em julho de 1917 e dizer: “está vendo? Só o que os bolcheviques fizeram foi substituir o Czar por um governo burguês!”. Aliás, era o que o Partidão dizia para os fundadores do PT: “Parem de agitar! Vocês vão fazer com que a ditadura endureça de novo!”.
Fazer política é correr riscos, e os ganhos são proporcionais aos riscos que se corre. Por outro lado, quanto mais ambicioso, mais um movimento deve ter maturidade, estratégia, saber construir apoios, diversificar suas táticas. E isto inclui saber criar suas próprias mediações institucionais.

Organização do sistema-rede
Entramos, então, na questão da elaboração e negociação de programas. Se você tem um ecossistema complexo, parcialmente estruturado, mas não hegemonizado por núcleos mais organizados, como isso ocorre? Neste ponto, os movimentos tradicionais parecem realmente levar vantagem: eles constroem agendas, preparam quadros, fazem formação política, mobilizam as bases, botam as lideranças para negociar.
Mas é impossível que isto ocorra dentro de um sistema-rede? Não creio. Os grupos “especializados” já têm muita apropriação sobre seu tema. O MPL tem um debate sofisticado sobre o transporte público, e a Articulação Nacional dos Comitês da Copa, sobre a questão urbana. Nestas e em outras áreas, é preciso saber criar os fóruns onde propostas e estratégias possam ser discutidas. Não grandes assembleias, que dificilmente funcionam para estes fins, mas diferentes espaços que se comuniquem e se construam um sobre a base do outro: debates com especialistas, entre os movimentos, aulas públicas, audiências públicas. Quem está na academia pode ter um papel importante aí, caso se ponha à disposição. À medida que as ideias vão se formando, é possível testar sua recepção online, em assembleias, ver como as pessoas respondem, ir reformulando-as, conquistando adesão. Lembremos que, aqui no Brasil, a reforma do direito autoral e o Marco Civil da internet foram parcialmente construídos em processos assim. Pode não ser perfeito, mas nenhum processo é.
Mas e quem seriam os mediadores? A liderança distribuída é um cenário propício para o “oportunismo”, mas oportunismo não é necessariamente uma coisa má, significa apenas saber tirar o melhor de oportunidades. Neste sentido, é a essência da ação prática. Se alguém conseguir se posicionar como mediador, e logo ficar claro que está negociando em seu próprio interesse, acabará rapidamente desconstituído. O “oportunista do mal”, que explora as oportunidades para seus próprios fins, também é um “mau oportunista”, não vai durar. Mas não é impossível que quem assuma este papel — uma organização, um grupo, indivíduos — o faça bem. A posição de representante numa situação como a que atravessamos é, na verdade, extremamente ingrata, porque a legitimidade está no fio da navalha todo o tempo. Manter-se legítimo implica entender que os limites da legitimidade são muito estreitos, que é preciso escutar mais que falar, colocar-se na posição de veículo ao invés de protagonista. Como diria Maquiavel, ao “oportunista virtuoso” não basta a Fortuna, é preciso virtù.
João Pedro Stédile declarou recentemente: a mobilização “da juventude” é legítima, porque é sintoma de problemas estruturais latentes, mas quem tem que apresentar um “programa de mudanças” são os “movimentos sociais organizados”. Note-se a equivocidade desta expressão: ela se refere a qualquer tipo de organização, a organizações nos moldes tradicionais, ou especificamente àquelas constituídas nos anos 1980, já reconhecidas como tal? Ainda parece haver aí uma certa resistência ao novo protagonismo, mesmo que misturada com o reconhecimento explícito de que os protestos também abrem oportunidades políticas para o MST. É óbvio que estes novos movimentos terão que desenvolver suas próprias mediações com o tempo; mas digamos que movimentos como o MST queiram também tentar ocupar este espaço e o façam da não poderíamos ter resultados interessantes?

(*) Rodrigo Guimarães Nunes é doutor em Filosofia pelo Goldsmiths College, Universidade de Londres, e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. É colaborador de diversas publicações nacionais e internacionais, como Radical Philosophy, Mute, Le Monde Diplomatique, Serrote, The Guardian e Al Jazeera. Como organizador e educador popular, participou de diferentes iniciativas ativistas, como as primeiras edições do Fórum Social Mundial e a campanha Justice for Cleaners, em Londres. Além disso, foi membro do coletivo editorial de Turbulence, uma revista influente entre os movimentos sociais da Europa e da América do Norte na segunda metade da década passada.