segunda-feira, 30 de setembro de 2013
No tempo dos embargos infringentes (Luiz Werneck Vianna)
"Era no tempo do rei" - com essa frase mágica Manuel Antônio de Almeida inicia seu romance Memórias de um Sargento de Milícias, cativando prontamente o leitor para conhecer as desventuras do seu herói, Leonardo Pataca, e outros personagens típicos da vida popular das primeiras décadas do século 19, como milicianos, meirinhos, barbeiros, ciganos, mulheres de má vida. Toda uma galeria de homens comuns treinados nas artes de uma difícil sobrevivência sem perder o gosto pelas festas e pela convivência bem-humorada entre eles.
O motivo dessa alusão à obra tão celebrada não se prende, contudo, ao protagonista da narrativa, mas a uma simples coadjuvante, dona Maria, mulher de meia-idade, gorda, mas bem afeiçoada, compadecida dos pobres, a quem atendia com os recursos que lhe sobravam naquele meio de escassez, e que nutria uma paixão sem remédio pelas demandas judiciais. Movida por esse sentimento que dominava a sua vida, saía de uma demanda para entrar em outra, conhecedora de leis e de regulamentos, provavelmente dominando a dialética incerta dos esotéricos embargos infringentes, embora fosse certo ser versada nas Ordenações Manuelinas. Os processos e as demandas judiciais intermináveis animavam a sua vida, como hoje parecem dominar a nossa.
Com efeito, somente por peripécias do nosso código genético cultural pode ter aflorado, assim, de repente, a informação desse gosto pelas manhas e pelos jargões dos leguleios, típicos do decadentismo ibérico, que nos manteve, numa tarde de quarta-feira, aferrados à TV durante duas horas e meia - tempo bem mais longo que o de uma partida de futebol, com o qual folgamos - para ouvirmos as razões do decano do Supremo Tribunal Federal (STF) a fim de admitir os embargos infringentes reclamados pelos réus (da Ação Penal 470, conhecida como mensalão). A hermenêutica do decano cobriu leis atuais e de antanho, jurisprudências, regimentos, não lhe faltando revelar as motivações implícitas do que jazia oculto nas lacunas da manifestação da vontade do legislador, vazios desejados por ele ou meramente fortuitos - quem há de saber?
Dona Maria perdeu essa sessão do Desembargo do Paço, que lhe faria delícia, pois ali se reverenciava o objeto do seu culto, um processo interminável com vãos e desvãos, hirto em sua integridade de coisa em si, apartado do mundo, cerrado na sua lógica interna alheia aos profanos e manipulado por sacerdotes convictos dos seus atos litúrgicos. Deveras, dignos de admiração nossos vínculos com a Ibéria profunda, ainda presente nas nossas instituições e nas narrativas que nos chegam delas, tais como os que foram expostos pela TV diante de grande audiência, que não arredou pé e a tudo assistiu bestificada, no julgamento da admissibilidade dos embargos infringentes.
O público era o mesmo que há poucos meses, nas jornadas de junho, aderiu com entusiasmo, nas ruas, aos protestos da juventude em favor de direitos, de maior participação na vida pública e por transparência nas ações do Estado. Mas entre os dois episódios há um mundo a separá-los, quando de um dos lados das margens até se ouvem declarações, com dicção forte, de que não se devem considerar as vozes que ecoam do outro.
De fato, em matéria penal, o garantismo nos procedimentos judiciais, como se diz em jargão, protege a todos e se constitui num valor a ser defendido, com a óbvia ressalva de que ele não se pode prestar a formalismos e a chinesices que desservem à justiça e penalizam a sociedade. Sem ponderação razoável, esse meritório princípio pode tornar-se uma política de alto risco na administração da justiça.
Por outro lado, tenha-se presente que a Constituição que aí está, prestes a comemorar 25 anos de bons serviços ao País, foi concebida para ter uma natureza de obra aberta, admitindo sua filiação à corrente doutrinária do constitucionalismo democrático. Sob essa inspiração, recriou o nosso Direito e suas instituições no sentido de que fossem capazes de acolher a voz das ruas, quer no exercício do controle de constitucionalidade das leis, nas ações civis públicas, quer nos inúmeros conselhos que criou com o intuito de incorporar os cidadãos na gestão de matérias afetas ao interesse público.
Ao longo desse período de implementação, pela ação da jurisprudência e de doutrinadores, fomos deixando de lado práticas que nos vinham do cediço iberismo que forjou nosso Estado, em particular no Direito Administrativo, no qual dominava inconteste o princípio da discricionariedade do Poder Executivo. Sobretudo, afirmou-se nesses anos a primazia do paradigma do direito público, destronando antiga hegemonia do Código Civil. Na esteira desses novos processos, passamos a conhecer uma nítida convergência do nosso sistema de civil law com o de common law, que, aliás, transcorre em escala universal.
Doutrinadores influentes, como Luís Roberto Barroso, dedicam páginas simpáticas a políticas judiciais consequencialistas e à obra do notável filósofo do Direito Ronald Dworkin, que nos deixou recentemente e concebeu o Direito sob o modelo de integridade. Muito além de ouvir as ruas, às quais o hoje ministro Barroso é refratário, Dworkin recomendava, a fim de assegurar uma narrativa coerente e progressiva do Direito, que se ouvissem as vozes da história da sua comunidade, às quais o ministro também foi surdo, para que elas se fizessem presentes nas decisões judiciais, em particular nos casos difíceis - a Ação Penal 470 é um caso difícil.
O pleno do STF em sua composição original, ao julgar a Ação Penal 470, abriu com coragem o baú dos ossos da nossa História, remota e presente; a dos embargos infringentes nos devolve aos alfarrábios da dona Maria das páginas de Manuel Antônio de Almeida. Resta ver os próximos capítulos e como se comportam as ruas buliçosas do Leonardo Pataca.
Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador da PUC-Rio.
Fonte: O Estado de S. Paulo (29/09/13)
domingo, 29 de setembro de 2013
"Em média, vamos nos tornando mais ricos e mais ignorantes, decaindo na escala da civilidade" (José de Souza Martins)
Não se pode deixar de ver com horror a tentativa de três jovens, entre 18 e 15 anos de idade, numa madrugada da semana passada, de enterrar vivo, nas areias da praia de Ipanema, no Rio, um morador de rua, depois de espancá-lo com uma pá e tentar sufocá-lo com um saco plástico.
José De Souza Martins
José De Souza Martins
Surpreendidos pela polícia, foi o homem resgatado e levado para um hospital. O maior de idade foi autuado por tentativa de homicídio e corrupção de menores e os menores foram encaminhados para a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente. Os criminosos alegaram que a vítima era um estuprador.
Poderia ser apenas mais uma aberração no rol de maldades que, vez ou outra, são noticiadas e espantam os que se preocupam com a condição humana. Exceções a contrariar a consciência social.
Não se trata de caso excepcional, porém. Excepcional e inovador apenas na técnica de violência criminosa: enterrar viva a vítima. De julho para cá, foi registrada ao menos meia dúzia de ocorrências de pessoas queimadas vivas em diferentes lugares do Brasil, na maior parte dos casos por jovens, algumas vezes menores, quase sempre do sexo masculino. Com exceção de um caso em Guamá, Brasília, em que do trio criminoso fazia parte uma menor, filha de policial. Em Barretos, São Paulo, foi gravemente queimado quando chegava em casa um jovem carteiro, pai de família, porque tinha pouco dinheiro no bolso. Tivemos recentemente o caso da dentista queimada viva no subúrbio de São Paulo e do dentista também queimado vivo no interior.
Nem sempre se trata de casos em que a violência cruel é complemento de uma ação criminosa, como o roubo. Um número grande de casos envolve pessoas que agridem e até matam cruelmente por pura diversão. Quase sempre se trata de vítima indefesa ou desvalida. Não é raro que a vítima seja negra. Com grande frequência os criminosos são de classe média, cenário que se alarga se nele incluirmos os casos de atropelamento e morte ou mutilação de pedestres por motoristas socialmente bem situados, que fogem e no ato e na fuga dão explícitas demonstrações de menosprezo pela vida alheia.
Nossa sociedade, nesses já frequentes casos, vem botando a cara pra fora, como se costuma dizer. Essas ocorrências são indícios de que a sociedade brasileira está doente. A certeza de que esses crimes são lícitos e impunes está presente em quase todos os casos. Quando, em 1997, foi queimado vivo o índio pataxó hã-hã-hãe Galdino Jesus dos Santos num ponto de ônibus de Brasília, os assassinos, de famílias de alta classe média, alegaram que pensaram ser ele um mendigo.
Isto é, em seu entender, se fosse mendigo, podia.
Em vários desses casos são fortes as indicações de que o pressuposto da violência é o mesmo: o de que há pessoas que não têm direito ao tratamento de sujeitos de direito, porque menos humanas que as demais.
Menos humanas porque negras, mestiças, indígenas, mulheres, pobres. Polícia e Justiça não raro agem segundo esse mesmo entendimento, o de que uma parcela da população brasileira é menos humana e menos gente que outra. No caso de Galdino, os assassinos em pouco tempo estavam em liberdade. Se vasculharmos mais fundo, vamos encontrar um padrão recorrente de comportamento de classe média, que vem de nossas heranças históricas de desigualdade social e mando. O que antes era atributo da minoria senhoril, agora se difunde com a ascensão social de gente que chega economicamente às camadas superiores da sociedade sem ter chegado às camadas superiores da cultura e da civilização. Em média, vamos nos tornando mais ricos e mais ignorantes, decaindo na escala da civilidade.
Essas coisas costumam acontecer altas horas da noite, como no caso ocorrido na praia de Ipanema e nos outros mencionados. Nos numerosos casos de linchamento no Brasil, um crime do mesmo gênero dos aqui mencionados, em longa série histórica, há notória diferença entre linchamentos praticados à noite e os praticados de dia. Os linchamentos noturnos são mais violentos e neles são maiores os indicadores de crueldade, como a de mutilar a vítima ou a de queimá-la ainda viva.
Tanto o justiçamento popular quanto a diversão juvenil de queimar vivas pessoas sozinhas e desamparadas são manifestações de uma covardia estrutural: os violentos são corajosos quando ninguém está vendo, quando não há testemunhas, quando há apenas cúmplices. Quando, nos casos de linchamento, se leva em conta que as multidões espontâneas que deles participam são extrações ao acaso do conjunto da sociedade, temos uma significativa indicação de uma disposição que vem das nossas estruturas sociais profundas, aquelas sem visibilidade imediata na maquiagem social do cotidiano, dos fingimentos que asseguram uma sociabilidade de superfície, aparentemente conforme as normas da civilidade. Uma disposição, também, que se aproveita do amortecimento da consciência social numa sociedade em que os direitos da pessoa não têm raízes fundas nem são cuidados com amor de jardineiro.
sexta-feira, 27 de setembro de 2013
Marina e as regras do jogo (Demétrio Magnoli)
"Coloque o dedo na ferida: sem as assinaturas é uma esperança vã, impossível de frutificar." A frase, do ministro Marco Aurélio Mello, do Tribunal Superior Eleitoral, equivale a uma potencial sentença de morte para a Rede, a "vã" esperança partidária de Marina Silva. Marco Aurélio tem razão quando põe o dedo na "ferida" jurídico-administrativa, mas a "ferida" política está em outro lugar: na democracia brasileira não existe liberdade partidária. Por que eu, meu vizinho e um grupo de amigos não podemos decidir, hoje, fundar um partido e vê-lo, amanhã, reconhecido mediante a simples apresentação de um estatuto? Isso é liberdade partidária - algo que não temos, pois a elite política decidiu, em seu proveito, estatizar os partidos políticos.
A Constituição de 1988 consagrou a estatização dos partidos, refletindo um consenso de nossa elite política. Os partidos oficiais adquiriram o curioso direito de avançar sobre o bolso de todos os cidadãos, extraindo-lhes compulsoriamente os recursos que financiam o Fundo Partidário e as propagandas partidária e eleitoral nos meios eletrônicos de comunicação. Em 2012, as dotações do orçamento federal para o Fundo Partidário somaram R$ 286,2 milhões. Nós todos pagamos R$ 850 milhões em 2010, sob a forma de compensações fiscais às emissoras de TV e rádio, pela transmissão dos horários cinicamente rotulados como "gratuitos" e utilizados pelos partidos. O projeto do PT de reforma política, que almeja introduzir o financiamento público de campanha, tem a finalidade de expandir ainda mais a transferência de recursos da sociedade para os políticos profissionais.
A Justiça Eleitoral é, ao lado da Justiça do Trabalho, uma das desastrosas invenções do varguismo. Nenhuma democracia precisa de tribunais para organizar eleições, missão que pode ser cumprida por meros órgãos administrativos. A razão de ser de nossos tribunais eleitorais se encontra no princípio antidemocrático da subordinação dos partidos ao Estado. O aparato judicial especializado desempenha a função de identificar os partidos que cumpriram os requisitos legais para tomar dinheiro dos cidadãos - e, eventualmente, disputar eleições. "Não cabe estabelecer critério, de plantão para esse ou aquele partido", explicou Marco Aurélio referindo-se à Rede, antes de concluir com a inflexão típica do juiz que zela pela igualdade de direitos: "Abre-se um precedente muito perigoso". De fato: os princípios da liberdade partidária e da estatização dos partidos são inconciliáveis - e para preservar o segundo o nosso ordenamento político sacrifica o primeiro, sem jamais abrir perigosos precedentes.
Os partidos estatais formam um dos pés do tripé que sustenta um sistema político avesso ao interesse público e orientado para a corrupção sistemática. O segundo pé são as coalizões em eleições proporcionais, um expediente de falsificação da vontade do eleitor destinado a conferir viabilidade a partidos que não representam ninguém, mas acomodam frações periféricas da elite política. O terceiro pé é a prática de loteamento político da máquina estatal, propiciada pela escandalosa existência, apenas na esfera federal, de quase 50 mil cargos de livre nomeação.
A privatização do Estado é outro lado da moeda da estatização dos partidos políticos. "Não tem conversa, a lei é peremptória", enfatizou Eugênio Aragão, vice-procurador-geral Eleitoral, alertando para os limites legais ao direito de candidatura. Hoje, diante do pedido de registro da Rede de Marina, a Justiça Eleitoral emerge como fiadora burocrática dos interesses gerais da elite política, que não pode abrir mão da coerência do conjunto do sistema.
No balcão cartorial do Estado brasileiro, registrar partidos é um negócio tão lucrativo quanto fundar sindicatos ou igrejas. PTC, PSG, PMN, PT-doB, PRTB, PHS, PSDC, PTN, PSL, PRB, PPL, PEN - a sopa de letrinhas das legendas oficiais vazias produz a falsa impressão da vigência de ampla liberdade partidária. Aplicando sua inteligência à produção de sofismas, Marco Aurélio argumentou que a ausência da Rede não prejudicaria as eleições de 2014, pois, afinal, o País não carece de partidos. Na esfera exclusiva da lógica burocrática, o ministro tem razão: todos poderão votar em partidos que não representam ninguém, mas cerca de um quarto do eleitorado experimentará a impossibilidade de sufragar a candidata de sua preferência. De certo modo, o Irã é aqui.
Marina e os seus não aprenderam direito as regras do jogo, explicam nos jornais os ínclitos políticos fundadores de legendas de aluguel e seus advogados especializados nos "negócios do Brasil". Mas, como atestado de uma devastadora crise política e moral, ninguém pergunta aos representantes de nossa elite política sobre a natureza das regras desse jogo. Três meses atrás, centenas de milhares de manifestantes tomaram as ruas para expressar sua frustração e sua ira com um Estado hostil à sociedade. Depois disso, o Supremo Tribunal Federal decretou que os políticos de sangue azul se distinguem dos cidadãos comuns pelo privilégio da impunibilidade. Agora, o Tribunal Superior Eleitoral prepara-se para, aplicando as leis vigentes, cassar o direito de voto de um quarto dos brasileiros. Entre o Brasil oficial e o Brasil real, abre-se um fosso ameaçador, quase intransponível.
Nos círculos próximos a Marina, comenta-se que ela não aceitará a alternativa de concorrer às eleições por uma legenda de negócios. Numa hipótese viciosa,, o gesto de desistência configuraria uma rendição disfarçada por discursos de indignação - e Marina contrataria um despachante astuto para tomar viável a Rede no horizonte de 2018. Por outro lado, na hipótese virtuosa, seria um ato de bravura e resistência: o ponto de partida para uma "anti-candidatura" de mobilização da sociedade contra a estatização dos partidos e a privatização do Estado.
Estou sonhando?
Sociólogo e doutor em geografia humana pela USP
Fonte: O Estado de S. Paulo
sábado, 21 de setembro de 2013
Levantes aqui, ali e em toda parte (Immanuel Wallerstein)
Immanuel Wallerstein descreve cinco traços comuns aos movimentos
políticos que tomam as ruas do mundo. Segundo ele, estamos no meio de
uma transição estrutural: de uma economia mundial capitalista que está
se esgotando para um novo tipo de sistema. Mas ele pode ser melhor ou
pior. Essa seria a batalha real.
Immanuel Wallerstein
Immanuel Wallerstein
O levante, agora persistente, na Turquia foi
seguido por uma revolta ainda maior no Brasil, que por sua vez foi
acompanhada por manifestações menos noticiadas, mas não menos reais,
na Bulgária. Obviamente, esses protestos não foram os primeiros, e
muito menos os últimos de uma série realmente mundial de revoltas nos
últimos anos. Há muitas maneiras de analisar este fenômeno. Eu o vejo
como um processo contínuo de algo que começou com a revolução mundial de
1968.
É claro que todas as revoltas são particulares em seus detalhes e na correlação de forças interna em cada país. Mas existem certas similaridades que devem ser notadas, se quisermos dar sentido ao que está acontecendo e decidir o que todos nós, como indivíduos e como grupos, deveríamos fazer.
A primeira característica em comum é que todas as revoltas tendem a começar muito pequenas — um punhado de pessoas corajosas manifestando-se sobre algo. E então, se elas “pegam”, coisa que é muito imprevisível, tornam-se maciças. De repente, não apenas o governo está sob ataque, mas, em alguma extensão, o Estado enquanto tal. Esses levantes reúnem tanto aqueles que querem a substituição do governo por outro melhor quanto os que questionam a própria legitimidade do Estado. Ambos grupos invocam o tema da democracia e dos direitos humanos, embora sejam variadas as definições que dão a esses dois termos. No conjunto, o tom dessas manifestações começa do lado esquerdo do espectro político.
O governo no poder reage, obviamente. Ou ele tenta reprimir as revoltas; ou tenta abrandá-las com algumas concessões; ou faz ambas as coisas. A repressão normalmente funciona, mas algumas vezes é contraproducente para o governo no poder, trazendo ainda mais pessoas às ruas. Concessões geralmente funcionam, mas algumas vezes podem ser ruins para o governo, levando as pessoas a ampliar suas demandas. De modo geral, os governos recorrem à repressão com mais frequência que às concessões. E, também grosso modo, a repressão tende a funcionar em um relativo curto prazo.
A segunda característica comum dessas revoltas é que nenhuma delas continua na velocidade máxima por muito tempo. Muitos manifestantes dão-se por vencidos após medidas repressivas. Ou são de alguma maneira cooptados pelo governo. Ou ficam cansados por causa do enorme esforço que as manifestações frequentes requerem. Essa diminuição da intensidade dos protestos é absolutamente normal. Ela não indica uma derrota.
Esse é o terceiro fator em comum, nos levantes. Embora terminem, deixam um legado. Mudam algo na política de seus países, e quase sempre para melhor. Forçam a entrada de alguma questão principal — por exemplo, as desigualdades — na agenda pública. Ou fazem crescer o senso de dignidade entre os extratos inferiores da população. Ou ampliam o ceticismo diante da retórica com a qual os governos tendem a encobrir suas políticas.
A quarta característica em comum é que, em cada onda de protestos, muitos que se unem ao movimento (especialmente os mais tardios) não chegam para reforçar os objetivos iniciais, mas para pervertê-los — ou para tentar conduzir ao poder político grupos de direita que são distintos daqueles que estão atualmente no poder, mas de maneira alguma mais democráticos ou preocupados com os direitos humanos.
O quinto traço em comum é que todos eles acabam envolvidos no jogo geopolítico. Governos poderosos, de fora do país nos quais os tumultos estão ocorrendo, trabalham intensamente (embora nem sempre com sucesso), para ajudar grupos aliados a seus interesses a alcançar o poder. Isso acontece tão frequentemente que uma das questões imediatas sobre cada movimento específico é sempre — ou deveria ser — saber quais suas consequências, em termos do sistema mundial como um todo. Isso é muito difícil, já que os desdobramentos geopolíticos potenciais podem levar alguns a desejar rumos opostos às intenções antiautoritárias originais do movimento.
Finalmente, devemos lembrar a respeito deste tema, e de tudo que está acontecendo agora, que estamos no meio de uma transição estrutural: de uma economia mundial capitalista que está se esgotando para um novo tipo de sistema. Mas ele pode ser melhor ou pior. Essa é a batalha real dos próximos vinte a quarenta anos. E a posição a assumir aqui, ali e em qualquer lugar deve ser decidida em função desta grande batalha política mundial.
É claro que todas as revoltas são particulares em seus detalhes e na correlação de forças interna em cada país. Mas existem certas similaridades que devem ser notadas, se quisermos dar sentido ao que está acontecendo e decidir o que todos nós, como indivíduos e como grupos, deveríamos fazer.
A primeira característica em comum é que todas as revoltas tendem a começar muito pequenas — um punhado de pessoas corajosas manifestando-se sobre algo. E então, se elas “pegam”, coisa que é muito imprevisível, tornam-se maciças. De repente, não apenas o governo está sob ataque, mas, em alguma extensão, o Estado enquanto tal. Esses levantes reúnem tanto aqueles que querem a substituição do governo por outro melhor quanto os que questionam a própria legitimidade do Estado. Ambos grupos invocam o tema da democracia e dos direitos humanos, embora sejam variadas as definições que dão a esses dois termos. No conjunto, o tom dessas manifestações começa do lado esquerdo do espectro político.
O governo no poder reage, obviamente. Ou ele tenta reprimir as revoltas; ou tenta abrandá-las com algumas concessões; ou faz ambas as coisas. A repressão normalmente funciona, mas algumas vezes é contraproducente para o governo no poder, trazendo ainda mais pessoas às ruas. Concessões geralmente funcionam, mas algumas vezes podem ser ruins para o governo, levando as pessoas a ampliar suas demandas. De modo geral, os governos recorrem à repressão com mais frequência que às concessões. E, também grosso modo, a repressão tende a funcionar em um relativo curto prazo.
A segunda característica comum dessas revoltas é que nenhuma delas continua na velocidade máxima por muito tempo. Muitos manifestantes dão-se por vencidos após medidas repressivas. Ou são de alguma maneira cooptados pelo governo. Ou ficam cansados por causa do enorme esforço que as manifestações frequentes requerem. Essa diminuição da intensidade dos protestos é absolutamente normal. Ela não indica uma derrota.
Esse é o terceiro fator em comum, nos levantes. Embora terminem, deixam um legado. Mudam algo na política de seus países, e quase sempre para melhor. Forçam a entrada de alguma questão principal — por exemplo, as desigualdades — na agenda pública. Ou fazem crescer o senso de dignidade entre os extratos inferiores da população. Ou ampliam o ceticismo diante da retórica com a qual os governos tendem a encobrir suas políticas.
A quarta característica em comum é que, em cada onda de protestos, muitos que se unem ao movimento (especialmente os mais tardios) não chegam para reforçar os objetivos iniciais, mas para pervertê-los — ou para tentar conduzir ao poder político grupos de direita que são distintos daqueles que estão atualmente no poder, mas de maneira alguma mais democráticos ou preocupados com os direitos humanos.
O quinto traço em comum é que todos eles acabam envolvidos no jogo geopolítico. Governos poderosos, de fora do país nos quais os tumultos estão ocorrendo, trabalham intensamente (embora nem sempre com sucesso), para ajudar grupos aliados a seus interesses a alcançar o poder. Isso acontece tão frequentemente que uma das questões imediatas sobre cada movimento específico é sempre — ou deveria ser — saber quais suas consequências, em termos do sistema mundial como um todo. Isso é muito difícil, já que os desdobramentos geopolíticos potenciais podem levar alguns a desejar rumos opostos às intenções antiautoritárias originais do movimento.
Finalmente, devemos lembrar a respeito deste tema, e de tudo que está acontecendo agora, que estamos no meio de uma transição estrutural: de uma economia mundial capitalista que está se esgotando para um novo tipo de sistema. Mas ele pode ser melhor ou pior. Essa é a batalha real dos próximos vinte a quarenta anos. E a posição a assumir aqui, ali e em qualquer lugar deve ser decidida em função desta grande batalha política mundial.
sexta-feira, 20 de setembro de 2013
Mimetismos (Marina Silva)
Os ruralistas, que representam um setor atrasado do agronegócio, tomam o controle de mais um espaço legislativo: a Comissão Especial da PEC 215, que transfere ao Congresso a demarcação de terras indígenas. Mais poder para quem já dirige as comissões de Agricultura, Desenvolvimento Urbano, Fiscalização Financeira, Integração Regional e Amazônia, além de ter presença e força nas outras. Vai, assim, o grupo mais ativo do Congresso fincando estacas em cada espaço e moldando a legislação aos seus interesses.
Na luta contra a ditadura, o Brasil projetou um futuro com justiça social que superasse a era Casa-Grande e Senzala. A Constituição de 1988 firmou princípios avançados: direito ao ambiente saudável, função social da propriedade, diversidade étnica e cultural. Estas seriam bases de novas políticas públicas numa nova relação entre povo e Estado.
Acuadas com a democracia nascente e a mudança da sociedade, as oligarquias encastelaram-se na política num movimento de obstrução: impediam ou atrasavam a regulamentação que levaria à legislação infraconstitucional as conquistas da lei maior.
Superando essa resistência, nasceram novas leis ambientais, unidades de conservação, quilombos, terras indígenas, assentamentos agrícolas e diversos modos de reforma agrária. Esse avanço lento, porém contínuo, foi possível pela mobilização popular e a contribuição de um partido político moldado na luta social, o PT.
Um velho ditado manda unir-se ao inimigo que não se pode vencer. A estratégia das oligarquias mudou, para eleger uma bancada cada vez maior e assumir o controle das comissões de temas sensíveis aos seus negócios, planejando não só deter o avanço socioambiental em novas leis, mas um retrocesso no que havia sido criado. Cresceram sem evoluir: combatem direitos que também os protegem. Sem biodiversidade não há produtividade, sem paz no campo e na floresta não há segurança para os investimentos.
Esse é um desejo de regressão de quem não aceita limites, num mundo em crise que requer formas sustentáveis de desenvolvimento. Seria derrotado, mesmo com sua força econômica, mas achou apoio na fraqueza política que nasceu onde menos se esperava.
Sim, o PT mudou. Antes reivindicava poder para o povo e suas causas, agora vê nelas obstáculo para seu próprio poder. Dependente do combustível do poder, adaptou-se ao que antes combatia. Nesse obscuro tempo de pragmatismo, a Constituição é derrubada com uma "forcinha" de alguns dos que ajudaram a edificá-la.
O camaleão mimetiza-se no ambiente, para sobreviver. Acordos furta-cores também dão sobrevida a incertas pretensões políticas. Mas, com o uso, o disfarce vira pele, e é visto por 400 milhões de olhos.
Marina Silva, ex-senadora, foi ministra do Meio Ambiente
Fonte: Folha de S. Paulo
terça-feira, 17 de setembro de 2013
Bloqueio à Rede ameaça democracia (Sérgio Abranches)
A Rede no momento é mais que o partido: é um teste ácido para a democracia e a Justiça Eleitoral. Só será partido e, portanto, sujeito à contestação ou beneficiário do apoio popular, nas linhas das divisões que o eleitorado vier a assumir, após o seu registro. Seu desempenho partidário será, então, um desafio para suas lideranças, filiados e eleitores. Hoje, seu registro é um problema de todos que querem uma democracia com igualdade de condições e oportunidades e plenamente competitiva.
Não é preciso militar no campo ambiental, nem ser ambientalista para saber que Marina Silva está sofrendo um claro assédio coronelista. Há cartórios da Justiça Eleitoral usando práticas de currais eleitorais, sob controle de diferentes partidos dominantes, para barrar o registro da Rede, seu partido. Enquanto isso, partidos sem identidade ou história e apoio social conhecido, são registrados em silêncio. O Solidariedade, cuja formação, com muito menos capacidade de mobilização, embora contando com base sindical e a liderança de Paulinho da Força, que tenta impossível anonimato, tem transitado sem dificuldades similares pelo processo de registro na Justiça Eleitoral. Tudo indica que conseguirá o registro em tempo. O PEN (Partido Ecológico Nacional), já obteve o seu. O Solidariedade, mesmo antes do registro, já entrou no mercado de trocas partidárias, mostrando que em nada inovará e nada acrescentará ao sistema partidário brasileiro. O PEN é uma sigla vazia. Seu conteúdo político será definido pelas lideranças que o assumirem de fato. A Rede representa um movimento, tem uma liderança clara e transparente, que não nega, nem tenta disfarçar sua atuação na construção partidária, com base social e ampla popularidade. Todavia é a sigla com mais dificuldades de avançar na obtenção do registrado. Será por isso que enfrenta obstáculos?
Todo o procedimento autocrático de cartórios notoriamente sob a influência política de chefetes ou chefões locais, sem qualquer transparência, conta com certa distância complacente do Tribunal Superior Eleitoral. O TSE deveria resguardar a lisura, a isonomia de tratamento e a transparência do procedimento de registro, que é uma fase crítica do processo democrático pré-eleitoral. Ao examinar o recurso da Rede, deveria se indagar porque a maioria das assinaturas em apoio à formação do partido glosadas pelos cartórios é de pessoas que não votaram nas últimas eleições, seja porque não estavam obrigadas, por estarem acima da idade do voto compulsório, seja porque não puderam, por estarem abaixo da idade de votar naquela data. Foi assim também com os outros? Quantas assinaturas foram rejeitadas sem qualquer justificativa no processo de registro do PEN ou do Solidariedade? No caso da Rede foram em torno de 100 mil. Não seria o caso de rejeições sem justificativa aceitável, juridicamente fundamentada, serem revertidas liminarmente pelo TSE em assinaturas válidas?
Encontrei-me com Marina Silva recentemente em um evento público. Enquanto conversávamos, foi abordada para fotos, uma palavra, uma história, como é natural, por grande número de pessoas. A maioria acima da idade para o voto compulsório ou muito jovem para ter podido votar nas últimas eleições. Os cartórios miraram nesses setores numerosos de sua base eleitoral, para rejeitar apoiamentos. É no mínimo esquisito.
Marina Silva está confiante, mas preocupada. Tem mesmo que estar preocupada. Os anais recentes da política brasileira registram enorme retrocesso oligárquico e coronelista, sobre o qual já escrevi aqui. Só os tribunais superiores, mais comprometidos com a legalidade, a isenção e a racionalidade dos atos da Justiça podem controlar e coibir o desmando cartorial nos currais eleitorais de numerosos estados da federação. E ela deve estar confiante também, a mobilização de suas bases é visível e inegável. O sucesso na criação de diretórios estaduais e regionais supera o de muitos outros partidos, cujo processo de registro não teve a mesma transparência, nem enfrentou as mesmas dificuldades. A Rede opera à luz do dia e torna públicas as dificuldades que vem enfrentando, muitas, se não inéditas, no mínimo pouco usuais.
A maior desvantagem de Marina Silva é sua postura. Não quer usar as mesmas armas dos que conspiram contra a democracia eleitoral. “Não queremos ficar como eles, queremos manter a diferença”, ela me disse. E deve. Mas precisará usar recursos significativos de mobilização e pressão para contrapor alguma força à truculência coronelista que retornou à prática política brasileira nos últimos anos. Quem quiser saber mais sobre essas práticas, recomendo ler o clássico de Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto. Com as necessárias atualizações de contexto e tecnologia, continua um retrato fiel dessas práticas contumazes de anulação das regras eleitorais pela discricionariedade, acobertada pela falta de transparência.
Não sei se a Rede tem ou não o número de assinaturas requeridas pela lei. Suspeito que tenha e que parte das rejeições seja espúria. Determinar isso com precisão e presteza seria função prioritária do TSE. E por quê? Porque é obrigação precípua do TSE garantir a eleição mais livre, legítima, representativa e democrática possível. Uma eleição é tão mais livre, legítima, democrática e representativa, quanto maiores forem a incerteza e a competição. Eliminar uma força que já se provou relevante, ter ampla base social, lideranças com alto grau de legitimidade e popularidade e elevada participação de pessoas que exercem o voto voluntário, portanto, que tendem inercialmente para a alienação eleitoral, reduzindo o universo de votantes, significa reduzir a competição e a representatividade da eleição.
É claro que o fator Marina Silva introduz incerteza no resultado do pleito, que até a queda recente da popularidade da presidente Dilma Rousseff (que permanece abaixo dos 50%, que são o limite da zona de conforto), era dado como apontando para relativamente tranquila reeleição da presidente. Também interfere na rivalidade obsoleta entre PSDB – hoje um partido sem liderança clara e sem identidade – e PT, um partido outrora de bases sindicalistas e populares, que se peemedebizou. Tornou-se um partido com espinha dorsal gelatinosa e moldável.
Essa desarrumação do tabuleiro eleitoral promovida pela candidatura de Marina Silva, com um índice de popularidade superior ao dos candidatos com mandato, como Aécio Neves e Eduardo Campos, incomoda. Elimina certezas, desfaz arranjos predeterminados, ameaça de cancelamento contratos oportunistas mais açodados. E é isso que alimenta o cambalacho, a rejeição de assinaturas sem justificativa, de modo discricionário e autocrático. No mundo cartorial, tudo pode ser justificado: há leis, regras e procedimentos rotinizados, burocratizados. Se não há justificativa, não há base em nenhuma lei, regulamento ou rotina, logo, o TSE deveria decidir liminarmente que, dada a ausência de base, vale a decisão pró-demandante, ou seja a aceitação das assinaturas. É o princípio, por analogia, do notório in dubio pro reo.
A prevalecer o tratamento desigual para desiguais nos tribunais superiores do Brasil, a democracia brasileira sofrerá um duro golpe judiciário. Ela já está em crise. É evidente a falta de representatividade dos partidos existentes. É nítida a disfuncionalidade de muitos procedimentos legislativos. É patente a arbitrariedade de decisões ao arrepio da vontade popular, do bom senso e da justiça. São todos componentes da democracia, além da transparência e do tratamento igual para todos perante a lei. Democracia demanda uma grande dose de bom senso dos Três Poderes. Exige que a Justiça se faça com um olho na Constituição e na lei e outro no povo de quem deve emanar o poder em primeira instância, e seja cega às pressões dos poderosos.
A democracia está em cheque em todo o mundo. A política não se atualizou. A representação se estiolou. As sociedades avançaram. Temos uma ágora social, articulada pelas redes sociais, que debate, inquieta, mobiliza, mostra indignação, protesta e constrói caminhos de esperança. Mas não temos ainda a ágora política, que dê voz efetiva aos cidadãos, que reflita as demandas da ágora social. Teremos que caminhar para ela.
Essa marcha para o aprofundamento da democracia não invalida, nem preclui, os princípios elementares da democracia representativa, como os direitos individuais; a liberdade de expressão, reunião, organização e voto; a liberdade de imprensa; a competição com isonomia (igualdade de oportunidade e condições) na busca da poliarquia, em contraposição à oligarquia vigente e como antídoto máximo à autocracia.
O destino da Rede não será um evento trivial. Será um divisor de águas e um teste fundamental, ácido mesmo, para a Justiça Eleitoral. Por ele saberemos se ela está cumprindo a função de proteger a democracia e fazer valer a vontade popular ou se, por complacência ou anuência, está dando cobertura às manobras oligárquicas.
Uma vez registrada a Rede, cada um votará como quiser, em quem quiser. Mas até lá, todos que são pela democracia, são pela Rede.
Fonte:
http://www.ecopolitica.com.br (2013/09/17)
Não é preciso militar no campo ambiental, nem ser ambientalista para saber que Marina Silva está sofrendo um claro assédio coronelista. Há cartórios da Justiça Eleitoral usando práticas de currais eleitorais, sob controle de diferentes partidos dominantes, para barrar o registro da Rede, seu partido. Enquanto isso, partidos sem identidade ou história e apoio social conhecido, são registrados em silêncio. O Solidariedade, cuja formação, com muito menos capacidade de mobilização, embora contando com base sindical e a liderança de Paulinho da Força, que tenta impossível anonimato, tem transitado sem dificuldades similares pelo processo de registro na Justiça Eleitoral. Tudo indica que conseguirá o registro em tempo. O PEN (Partido Ecológico Nacional), já obteve o seu. O Solidariedade, mesmo antes do registro, já entrou no mercado de trocas partidárias, mostrando que em nada inovará e nada acrescentará ao sistema partidário brasileiro. O PEN é uma sigla vazia. Seu conteúdo político será definido pelas lideranças que o assumirem de fato. A Rede representa um movimento, tem uma liderança clara e transparente, que não nega, nem tenta disfarçar sua atuação na construção partidária, com base social e ampla popularidade. Todavia é a sigla com mais dificuldades de avançar na obtenção do registrado. Será por isso que enfrenta obstáculos?
Todo o procedimento autocrático de cartórios notoriamente sob a influência política de chefetes ou chefões locais, sem qualquer transparência, conta com certa distância complacente do Tribunal Superior Eleitoral. O TSE deveria resguardar a lisura, a isonomia de tratamento e a transparência do procedimento de registro, que é uma fase crítica do processo democrático pré-eleitoral. Ao examinar o recurso da Rede, deveria se indagar porque a maioria das assinaturas em apoio à formação do partido glosadas pelos cartórios é de pessoas que não votaram nas últimas eleições, seja porque não estavam obrigadas, por estarem acima da idade do voto compulsório, seja porque não puderam, por estarem abaixo da idade de votar naquela data. Foi assim também com os outros? Quantas assinaturas foram rejeitadas sem qualquer justificativa no processo de registro do PEN ou do Solidariedade? No caso da Rede foram em torno de 100 mil. Não seria o caso de rejeições sem justificativa aceitável, juridicamente fundamentada, serem revertidas liminarmente pelo TSE em assinaturas válidas?
Encontrei-me com Marina Silva recentemente em um evento público. Enquanto conversávamos, foi abordada para fotos, uma palavra, uma história, como é natural, por grande número de pessoas. A maioria acima da idade para o voto compulsório ou muito jovem para ter podido votar nas últimas eleições. Os cartórios miraram nesses setores numerosos de sua base eleitoral, para rejeitar apoiamentos. É no mínimo esquisito.
Marina Silva está confiante, mas preocupada. Tem mesmo que estar preocupada. Os anais recentes da política brasileira registram enorme retrocesso oligárquico e coronelista, sobre o qual já escrevi aqui. Só os tribunais superiores, mais comprometidos com a legalidade, a isenção e a racionalidade dos atos da Justiça podem controlar e coibir o desmando cartorial nos currais eleitorais de numerosos estados da federação. E ela deve estar confiante também, a mobilização de suas bases é visível e inegável. O sucesso na criação de diretórios estaduais e regionais supera o de muitos outros partidos, cujo processo de registro não teve a mesma transparência, nem enfrentou as mesmas dificuldades. A Rede opera à luz do dia e torna públicas as dificuldades que vem enfrentando, muitas, se não inéditas, no mínimo pouco usuais.
A maior desvantagem de Marina Silva é sua postura. Não quer usar as mesmas armas dos que conspiram contra a democracia eleitoral. “Não queremos ficar como eles, queremos manter a diferença”, ela me disse. E deve. Mas precisará usar recursos significativos de mobilização e pressão para contrapor alguma força à truculência coronelista que retornou à prática política brasileira nos últimos anos. Quem quiser saber mais sobre essas práticas, recomendo ler o clássico de Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto. Com as necessárias atualizações de contexto e tecnologia, continua um retrato fiel dessas práticas contumazes de anulação das regras eleitorais pela discricionariedade, acobertada pela falta de transparência.
Não sei se a Rede tem ou não o número de assinaturas requeridas pela lei. Suspeito que tenha e que parte das rejeições seja espúria. Determinar isso com precisão e presteza seria função prioritária do TSE. E por quê? Porque é obrigação precípua do TSE garantir a eleição mais livre, legítima, representativa e democrática possível. Uma eleição é tão mais livre, legítima, democrática e representativa, quanto maiores forem a incerteza e a competição. Eliminar uma força que já se provou relevante, ter ampla base social, lideranças com alto grau de legitimidade e popularidade e elevada participação de pessoas que exercem o voto voluntário, portanto, que tendem inercialmente para a alienação eleitoral, reduzindo o universo de votantes, significa reduzir a competição e a representatividade da eleição.
É claro que o fator Marina Silva introduz incerteza no resultado do pleito, que até a queda recente da popularidade da presidente Dilma Rousseff (que permanece abaixo dos 50%, que são o limite da zona de conforto), era dado como apontando para relativamente tranquila reeleição da presidente. Também interfere na rivalidade obsoleta entre PSDB – hoje um partido sem liderança clara e sem identidade – e PT, um partido outrora de bases sindicalistas e populares, que se peemedebizou. Tornou-se um partido com espinha dorsal gelatinosa e moldável.
Essa desarrumação do tabuleiro eleitoral promovida pela candidatura de Marina Silva, com um índice de popularidade superior ao dos candidatos com mandato, como Aécio Neves e Eduardo Campos, incomoda. Elimina certezas, desfaz arranjos predeterminados, ameaça de cancelamento contratos oportunistas mais açodados. E é isso que alimenta o cambalacho, a rejeição de assinaturas sem justificativa, de modo discricionário e autocrático. No mundo cartorial, tudo pode ser justificado: há leis, regras e procedimentos rotinizados, burocratizados. Se não há justificativa, não há base em nenhuma lei, regulamento ou rotina, logo, o TSE deveria decidir liminarmente que, dada a ausência de base, vale a decisão pró-demandante, ou seja a aceitação das assinaturas. É o princípio, por analogia, do notório in dubio pro reo.
A prevalecer o tratamento desigual para desiguais nos tribunais superiores do Brasil, a democracia brasileira sofrerá um duro golpe judiciário. Ela já está em crise. É evidente a falta de representatividade dos partidos existentes. É nítida a disfuncionalidade de muitos procedimentos legislativos. É patente a arbitrariedade de decisões ao arrepio da vontade popular, do bom senso e da justiça. São todos componentes da democracia, além da transparência e do tratamento igual para todos perante a lei. Democracia demanda uma grande dose de bom senso dos Três Poderes. Exige que a Justiça se faça com um olho na Constituição e na lei e outro no povo de quem deve emanar o poder em primeira instância, e seja cega às pressões dos poderosos.
A democracia está em cheque em todo o mundo. A política não se atualizou. A representação se estiolou. As sociedades avançaram. Temos uma ágora social, articulada pelas redes sociais, que debate, inquieta, mobiliza, mostra indignação, protesta e constrói caminhos de esperança. Mas não temos ainda a ágora política, que dê voz efetiva aos cidadãos, que reflita as demandas da ágora social. Teremos que caminhar para ela.
Essa marcha para o aprofundamento da democracia não invalida, nem preclui, os princípios elementares da democracia representativa, como os direitos individuais; a liberdade de expressão, reunião, organização e voto; a liberdade de imprensa; a competição com isonomia (igualdade de oportunidade e condições) na busca da poliarquia, em contraposição à oligarquia vigente e como antídoto máximo à autocracia.
O destino da Rede não será um evento trivial. Será um divisor de águas e um teste fundamental, ácido mesmo, para a Justiça Eleitoral. Por ele saberemos se ela está cumprindo a função de proteger a democracia e fazer valer a vontade popular ou se, por complacência ou anuência, está dando cobertura às manobras oligárquicas.
Uma vez registrada a Rede, cada um votará como quiser, em quem quiser. Mas até lá, todos que são pela democracia, são pela Rede.
Fonte:
http://www.ecopolitica.com.br (2013/09/17)
segunda-feira, 16 de setembro de 2013
Os três cintos do governo Dilma (Gaudêncio Torquato)
No sistema presidencialista, a avaliação de um governo tende a se confundir com a análise do governante, principalmente em países de forte concentração de poder nas mãos do mandatário. E o caso do nosso modelo, que se, impregna de acentuado traço imperial, a realçar força extraordinária nas mãos do detentor da caneta mais poderosa do País.
Não por acaso, o chefe do Executivo reveste-se da aura de infalibilidade dos papas. O próprio marqueteiro João Santana chegou a dizer que o povo enxerga na presidente Dilma Rousseff uma rainha. Centro das atenções, acaba ofuscando a imagem de seu batalhão de 39 ministros e outros tantos dirigentes de órgãos governamentais. (Quem consegue recitar o nome de metade dos ministros?) Por isso, qualquer apreciação que se faça sobre a administração federal, faltando pouco mais de um ano para as eleições presidenciais, embute o viés gerado pelo perfil presidencial, traduzido na observação de que o governo Dilma se caracteriza pôr uma visão técnico-gerencial, diferente da era Lula, com sua feição populista.
A índole técnica da presidente carimba, portanto, o modus operandi da administração, a confirmar o axioma de George Buffon, ao ser admitido na Academia de Ciências da França, de que o estilo é o próprio homem. A inapetência da presidente para lidar com políticos é consensual, condição justificada por um perfil afinado com a gestão e ds princípios dela decorrentes, como planejamento, cronogramas, fluxogramas, eficiência, eficácia, racionalidade, custo/benefício, produtividade, economicidade, etc. A dificuldade de administrar a frente política é maior quando se sabe que as práticas dos representantes se inspiram no festejado axioma franciscano "é dando que se recebe". Seria esse, então, o ponto de estrangulamento do governo Dilma.
Para uma reflexão mais precisa apliquemos o modelo que Carlos Matus chama de Planejamento Estratégico Situacional. O cientista chileno faz o balanço dos governos sob o manejo de três cinturões: o político, o econômico e o dos problemas rotineiros. Os impactos positivos e negativos de cada um se cruzam, atribuindo, ao final, a nota dos ciclos governativos. Tais cinturões estão frouxos, ajustados ou apertados no corpo da atual administração? Vejamos.
A gestão política, lembra Matus, não diz respeito apenas às formas de articulação com os políticos. Abrange fatores referentes à qualidade da democracia, aspectos como respeito aos direitos humanos, descentralização do poder, apego à ética, transparência, distribuição de renda, etc. Na banda negativa : do balanço político contabilizam-se situações como estilo autoritário, "democratismo" populista, permissividade para a corrupção, incúria administrativa, etc. Sob a ressalva de que não se usam aqui critérios rigorosos para analisar cada variável do cinturão político, é possível indicar algumas ênfases nestes 988 dias do governo Dilma.
Ei-las: o resgate da memória das vítimas da ditadura, tarefa hoje a cargo das Comissões da Verdade; a defesa do ideário da liberdade de expressão, bandeira que emerge diante da postura do governo de não ceder às pressões de parcelas do PT para patrocinar projeto de controle dos meios de comunicação; abrangente programa de distribuição de renda, responsável pelo alargamento do meio da pirâmide social; incentivo aos movimentos populares, que merece aplausos por alargar os caminhos da cidadania e promover a participação social no processo político, e também apupos, por servir de carona ao utilitarismo ideológico; fortes traços neopeleguistas presentes nos dutos que ligam centrais sindicais aos cofres do Estado. Ressalta-se, também, a faxina promovida no início do governo, que depois veio a mostrar-se capenga, haja vista a caudalosa corrente de recursos públicos que inundou os pântanos de ONGs, desvios que culminaram, nos últimos dias, com o esquema de fraudes no Ministério do Trabalho.
Ainda na configuração política, registra-se a continuidade do pendor legiferante do Executivo, caracterizado pela multiplicação de medidas provisórias, ao lado da precária articulação com a esfera política, fator constante de atritos com o Poder Legislativo.
No cordão econômico, as estratégias orientam-se para a preservação dos índices de emprego e da inflação, bem como para o equilíbrio da balança do comércio exterior, sofregamente assegurado pela frente do agronegócio. No centro do debate, o foco aponta para o pífio resultado na planilha do crescimento econômico, eixo nevrálgico do ciclo dilmista, a par de uma carga tributária que beira os 37% do produto interno bmto (PIB).
O terceiro cinturão, no qual se localizam os buracos dos problemas cotidianos - particularmente nos setores de saúde, educação, mobilidade urbana, segurança, moradia, saneamento básico -, é o responsável pela satisfação e/ou indignação das pessoas. Os serviços públicos funcionam como um termômetro a medir a temperatura social, como se pode aduzir dos movimentos que enchem as ruas do País desde junho passado. Não por acaso o governo se esforça para arrumar um símbolo, um fator de diferenciação, um projeto que venha somar-se à força do Bolsa Família. O programa Mais Médicos, por exemplo, entraria nessa formatação e seus resultados começariam a jorrar nas margens eleitorais de 2014. Positivo, ajudaria a consolidar a posição da candidata à reeleição; negativo, teria efeito catastrófico sobre sua imagem.
A agenda cotidiana continuará plena de cronogramas e contratempos. À promessa de que obras em curso serão entregues se contrapõe a desconfiança de que os eventos da Copa Mundial enfrentarão estrangulamentos na frente da logística.
Em suma, juntando os fatores alto emprego e baixa inflação (cinto econômico) com uma dor de cabeça apenas suave (cinto da agenda cotidiana), o governo ganharia fôlego para fazer a travessia. E a presidente evitaria a borrasca. A recíproca é verdadeira.
*Jornalista, professor titular da USP
Fonte: O Estado de S. Paulo (15/09/13)
quarta-feira, 11 de setembro de 2013
Os Silva e a presidente (Rosângela Bittar)
A um ano da eleição presidencial, a pesquisa da MDA, divulgada ontem pela Confederação Nacional dos Transportes, revela concretamente o seguinte: os índices da presidente Dilma melhoraram muito, mas ainda estão muito longe de sua posição antes das manifestações de junho, que foram tomadas pelo eleitorado como um ato contra ela. Dois candidatos menos conhecidos, Aécio Neves e Eduardo Campos, estão com índices considerados provisórios exatamente por isso, sendo que o desconhecimento de um deles, Campos, é superlativo, tem espaço para crescer muito. E o mais consistente avanço sobre o quadro eleitoral, que deve preocupar a candidata à reeleição, que está no cargo e pode fazer campanha todo o tempo, foi o de Marina Silva. Uma última síntese dessa leitura é que a pesquisa de ontem ainda aponta para a disputa final em segundo turno, pois Dilma não se recuperou o suficiente para voltar a vencer no primeiro.
Em índices arredondados, Dilma ficou com 36%, Marina em segundo lugar com 22%, Aécio com 15% e Eduardo Campos com 5%, sendo que a cada um desses números seguem-se alguns quebradinhos. Dilma já teve 56%, está portanto muito distante do seu eleitorado, deve correr para trás, ao encontro do seu desempenho de maio. Marina recebeu 19% dos votos em 2010, o que significa que os 22% de agora, se consideradas as intenções de voto nulos e em branco, chegariam a 27% dos votos válidos, um crescimento absurdo com relação à sua votação na eleição presidencial de que participou. Aécio e Eduardo se expuseram pouco, têm por onde circular à procura do cenário definitivo.
Segundo o cientista político e sociólogo Antonio Lavareda, no momento Dilma deve temer Marina Silva, só. Ele concorda que a meta da candidata à reeleição deve ser buscar, gradualmente, encontrar-se com seus os índices de maio passado. Lavareda não concorda, porém, como destacou a CNT, em atribuir o crescimento da presidente, no cargo e em campanha, ao programa Mais Médicos. O programa facilitou a exposição da presidente, mas seu impacto na votação favorável só pode ser medido quando for avaliada a questão da saúde, problema que figura sempre entre os piores identificados nas sondagens pela população. Quando o eleitorado manifestar opinião de que houve melhoria significativa da saúde, unindo sua percepção ao programa Mais Médicos, será possível associar uma coisa à outra.
O grande problema de Dilma ainda se chama Marina
Dilma melhorou mesmo, na opinião do analista, porque arrefeceu o noticiário negativo sobre ela na televisão, no rádio, na internet, nas ruas. No auge das manifestações de junho, o noticiário negativo chegou a 55%, um recorde, o positivo foi medido em 19%, ficando o restante como noticiário neutro. A população percebeu as manifestações como um ato contra o governo federal e a presidente. Quando as pesquisas pediam à população para citar a notícia mais lembrada, 62% falavam das manifestações.
Com a mudança do caráter das manifestações entre junho para setembro, agora rechaçadas como quebra-quebra de baderneiros que depredam o patrimônio público e privado, e a redução do noticiário sobre elas, que perderam o apoio do governo, da sociedade, e portanto da mídia, reduziu-se a percepção do noticiário negativo.
Isso levou ao resgate mais acentuado de parte da avaliação positiva. A presidente está longe dos seus confortáveis índices de maio e da última disputa de que participou, em 2010, e longe também da vitória folgada no primeiro turno, mas está caminhando em direção a isso com a mudança de sinal das manifestações.
Quem ultrapassou o seu desempenho eleitoral anterior e até os índices que obteve nas pesquisas deste ano e se superou foi Marina Silva.
Aécio mostra que tem potencial de crescimento porque ainda está abaixo do que o seu partido conquistou em 2010, quando teve mais do que 30% do eleitorado com a candidatura de José Serra. Eduardo Campos é pouco conhecido e seus índices são os mais provisórios entre todos, tem por onde se expandir.
O resultado da pesquisa CNT/MDA divulgado ontem continua a ser preocupante para Dilma, enquanto representa boa notícia para Marina, que pontua praticamente 50% acima da eleição de 2010, se considerarmos os votos válidos.
Lavareda sintetiza: "Dilma tem dois Silva determinando seu destino, um soprando a favor (Lula) e outra contra (Marina).
O PT arde em chamas. As relações internas nunca estiveram tão esgarçadas. O presidente do partido, Rui Falcão, ainda é o favorito para vencer a disputa interna pela reeleição contra os candidatos das outras correntes, e a avaliação generalizada é que vai vencer. Mas sua votação reduziu-se bastante e cresceu o fosso entre as facções a partir das denúncias de compra de votos pela corrente majoritária do partido.
Passado o processo eleitoral para indicação da nova Executiva, a luta interna vai continuar, é outro consenso. Desta vez, tudo foi longe demais. Havia uma espécie de pacto pelo qual os debates da campanha eleitoral para escolha do presidente do PT seriam civilizados. Sem proibição de temas, mas com observância de um limite para golpes baixos. A denúncia de que houve compra de votos representada pelo acerto de contas que permitiu o aumento do colégio eleitoral de menos de cem mil para mais de setecentos mil votantes foi considerada uma ultrapassagem do limite pelo grupo do Construindo um Novo Brasil. Há um fenda no campo majoritário (compra de voto é uma expressão que incendeia o PT pós-mensalão) e entre esse e os demais grupos. A irritação é generalizada, os concorrentes aproveitam como podem o barulho para amplificar a campanha e a principal denúncia foi feita por um líder respeitado de corrente adversária, o deputado Henrique Fontana. Que já se pintou para a guerra muito antes, quando preterido, em benefício do grupo do ex-presidente Lula no partido, para a comissão da reforma política. O descompromisso é generalizado.
Fonte: Valor Econômico
Segurança nacional, espionagem e ética (Roberto Romano)
Várias análises sobre vigilâncias norte-americanas no Brasil eludem o núcleo da moderna ordem estatal. Todo poder público usa o segredo e a espionagem, práticas hoje garantidas pelas "máquinas de guerra" que operam nas fímbrias das políticas oficiais. O jornal O Estado de São Paulo mostrou que entre ditaduras irmãs, como a chilena e a brasileira, existiu desconfiança ardilosa e quebra do sigilo alheio.
Não é preciso muito saber para captar o problema. Basta frequentar A Guerra do Peloponeso j e Hobbes: "Em todos os tempos os reis e pessoas de soberana autoridade, por sua independência, vivem suspeições contínuas em posturas de gladiadores, de armas apontadas e olhos fixos uns nos outros; as fortalezas, as guarnições, os canhões postos nas fronteiras de seus reinos espiam continuamente os vizinhos, o que é postura da guerra" (Leviatã). Para a defesa da República, diz ainda Hobbes, são necessárias pessoas "que procuram descobrir todos os pensamentos e atos que podem prejudicar o Estado; os espiões são tão importantes para os soberanos quanto os raios solares para a alma humana, para discernir objetos visíveis (...) eles são necessários ao bem público como os raios de luz para manter as pessoas, comparáveis às teias de aranha cujos fios separados, postos lá e cá, advertem o pequeno animal sobre os movimentos externos..." (De Cive).
Quem se iludiu com o fim da ; guerra fria hoje constata poderes mundiais em plena atividade bélica, aberta ou dissimulada. A Síria é o caso agudo e o Brasil, um ensaio que pode rumar para situações indesejadas. Cabe aos brasileiros seguir uma linha de fortalecimento, deixando de lado lamúrias e invectivas vazias. Na cena internacional, quem não cresce diminui na medida em que os adversários aumentam sua força.
O país que não aplica recursos na defesa (incluindo as informações) fica à mercê de poderes hegemônicos. Existem técnicas seculares para captar intentos agressivos alheios - econômicos, bélicos, políticos - e proteger as próprias forças. Já Mazarino, artífice do Estado moderno, usa o livro de Tritêmio Polygraphia (1518). Nele se desenvolve a escrita secreta para uso governamental. A informática do século 21 acolhe os herdeiros de Tritêmio com sofisticados programas para redigir e ocultar mensagens. Mas para aquela arte é preciso investimento em ciência, tecnologia, gente treinada a serviço do País. Sem mecanismos apropriados, nossos profissionais não recebem incentivo ou seguem para o exterior. Atitude pré-maquiavélica é culpar os outros porque cresceram, sem aumentar nossos recursos.
O poder "público" esconde suas iniciativas e espiona as dos estrangeiros. Ele também conquista a opinião, nacional ou planetária, com a propaganda que pulveriza oposições internas, persuade ou intimida outras soberanias (Étienne Thuau, Raison d"État et Pensée Politique à Êpoque de Richelieu). A razão de Estado permite interpretações das leis favoráveis às potências dominantes. Segundo Christian Lazzeri, "o Estado é jogador que não aceita perder e modifica as regras do jogo". Se uma soberania é incapaz de prever e antecipar ataques, ela é inepta e inapta para o jogo internacional. Prever significa antecipar o não rotineiro, é matéria de prudência. Além da burocracia, os Estados relevantes usam velozes meios de guerra que vão dos espiões aos militares "terceirizados", com relativa autonomia em face dos poderes oficiais.
Comentário de Eva Horn: "Guerra é rapidez, segredo, violência, astúcia, mas o Estado é fixidez e enraizamento num lugar (...). A máquina de guerra é externa ao Estado, mesmo quando seus elementos integram o aparelho estatal (exército, polícia, serviços de inteligência). Segredo e traição de segredos, desinformação e violação de tratados, propaganda e conspiração integram a máquina de guerra que não pode ser inserida nos princípios da soberania nacional. O moderno "partisan", o clandestino e lutador"irregular" pode corporíficar, como paradigma, a máquina de guerra" (Knowing the Enemy: The Epistemology of Secret Intelligence).
A última frase de Eva Horn retoma, do autoritário Carl Schmitt, a Teoria do Partisan (cf. Diálogo sobre 0 Partisan, em Guerre Civile Mondiale). O Estado corroído pelos mecanismos bélicos semiclandestinos tende a atenuar a diplomacia e a política externa convencional. É a figura do anti-Estado, para falar como Norberto Bobbio.
As guerrilhas e as formas rápidas de luta libertaram a Espanha em 1808 e foram decisivas no Vietnã. Mas as "máquinas de guerra" que enfrentaram os guerrilheiros aprenderam bastante com eles. Elas agem de modo flexível na fimbria cinzenta da ordem pública e, sigilosas, remodelam a razão de Estado, usando licença maior do que as imaginadas por Maquiavel. Guerrilhas desestabilizaram o direito e rumaram para a truculência ditatorial, como no Camboja. As máquinas de guerra somadas aos terroristas que usam técnicas de guerrilha entorpecem as prerrogativas legítimas do poder. As máquinas de guerra, não raro, decidem ações dos Estados. A dureza burocrática e legal é vencida por elas, criando situações incontornáveis.
No Brasil, após ditaduras em que as máquinas de guerra abusaram da espionagem e da propaganda, o País descobre que a liberdade democrática de sua gente exige investimentos. Nosso Estado exibe um anacronismo perene. Exigir "explicações" de potências hegemônicas é esquecer o que as levou a semelhante posto: guerra e investimento em ciência e técnica. As máquinas de guerra as conduzem a desastres, como é o caso dos Estados Unidos no Afeganistão, no Iraque e, possivelmente, na Síria. Mas para deter sua força, só um poder equivalente. Quem se candidata de fato e sem bravatas?
Professor de Ética e Filosofia da Unicamp, e autor de "O Caldeirão de Medeia" (Perspectiva)
Fonte: O Estado de S. Paulo
segunda-feira, 9 de setembro de 2013
O que desejam os sustentáveis? (Renato Janine Ribeiro)
Li com atenção o programa do Rede Sustentabilidade. Um partido que nasce com ênfase ética deve ter o manifesto levado a sério. Uma coisa é seguir as ações de Marina Silva e dos líderes do Rede; outra é examinar seu programa. Com toda a simpatia que sinto pelo Rede - só o critiquei por querer mais dele, não menos -, isso me preocupou. Não tenho certeza do que desejam. Provavelmente querem eleger Marina presidente da República. Mas me parece que não priorizam uma bancada parlamentar. Nem estou seguro de que pretendam, tão cedo, governar. Então, o que desejam?
O Rede tem uma linguagem elevada. Diz que quer mudar o mundo. Mas, quando entra no concreto, começa pela economia e segue pela política institucional. É o que ele mais elabora. Mas por que principia pelos meios e não pelos fins? Salvo para alguns economistas e políticos, economia e política são meios. O fim deve ser a mudança do modelo de sociedade, que não é um tema essencialmente econômico. O Rede deveria dar peso concreto, em seus dez pontos, ao que elogia no mundo da vida. Este mundo da vida, hoje, é o de maior liberdade pessoal na história. Podemos mudar de quase tudo, atualmente - de emprego, profissão, cidade ou país, estado civil, religião; alguns, até de sexo. Essa liberdade é preciosa. Cada vez menos gente tem de fazer ou ser o que não quer. Mas ela debilita os laços sociais - o que exige que sejam recriados: um poema de Maiakovski, que Maria Bethânia gravou, falava em reinventar a família. Estes assuntos parecem mais da vida privada do que da política, mas é Marina quem cita, e bem, Freud e Lacan. Só ela, dos candidatos, faz isso.
Primeiro grande ponto: as propostas de reforma política são falhas. Apenas somam boas intenções. Quer candidaturas independentes, mas não diz que para tanto há que extinguir o voto proporcional, que garante a presença de todas as ideias na Câmara. Mas é justamente o proporcional que dá lugar no Congresso aos verdes e o dará ao Rede. Ou será que este gostaria de não ter nenhum deputado? Será que aposta só na Presidência? Além disso, a proposta de abolir a reeleição para o Executivo, que teria mandatos mais longos, faria um presidente eleito num ano conviver com uma Câmara eleita em outro - o que é confusão à vista... A vantagem da reeleição, dizia Thomas Jefferson há dois séculos, é dar um mandato de oito anos com recall no meio. Cinco ou seis anos são demais para um mau presidente, pouco para um bom. E usa-se a máquina com ou sem reeleição.
Programa ignora ciência e cultura feitas no país
Segundo ponto: a falta de menção ao pensamento brasileiro na cultura e na ciência. O substantivo "cultura" só aparece em sentido figurado (cultura da corrupção, cultura da paz). O programa não diz que a cultura enriquece nosso povo. Nem fala na tecnologia aqui criada. Não usa as palavras ciência ou universidade. Embora o Rede tenha membros cientistas, apresenta o Brasil como objeto a ser conhecido, em sua rica diversidade, não como um sujeito que conhece e utiliza esta riqueza. Nosso país aparece só como oportunidade de conhecimento e de ação. O Rede realça nossos biomas mas não valoriza nossas universidades, importante conquista que são. O desenvolvimento científico é referido como consequência futura, não como causa presente.
Como pesquisador, sinto falta. Na divisão internacional do trabalho, voltaríamos a ser natureza sem cultura? Machado de Assis uma vez mostrou o Rio a um estrangeiro. Mas, no fim, o outro olhou para a baía de Guanabara e disse: bonita mesmo é essa natureza! Machado não gostou: comparado com a natureza, tudo o que fizemos de nada vale? É como apagar do mapa o agente humano.
Terceiro: vejo que o programa avançou em relação ao de 2010, que não salientava questões da miséria e pobreza. Agora, já na segunda linha aponta a desigualdade social como um de nossos grandes problemas. Nas dez propostas, fala em "erradicação da pobreza". Isso é bom. Mas seu discurso de economistas liberais prevalece sobre o dos movimentos sociais. Se não se ligar a este último, a causa sustentável carecerá de densidade humana. O programa parece recear dizer o que possa ser interpretado como sendo de esquerda ou mesmo de teor social. Ao se falar em desigualdade, em moradia, em transporte, sempre está presente o conflito social, mas o texto não o enfrenta. Ou, talvez, o Rede tenha mais a dizer à direita esclarecida do que à esquerda esclarecida, duas posições que respeito e que merecem crescer, para melhorar o diálogo e o debate em nossa política.
É claro que há pontos positivos, como a preocupação ecológica e seu interesse pela linguagem dos jovens e a do futuro. A "nova política" e o uso das redes para um relacionamento mais democrático e horizontal têm grande valor. Aliás, segundo me disse um líder do Rede, o manifesto seria um texto ainda em construção. Penso que deveria ser mais debatido, não só pelos sustentáveis, mas pela sociedade.
Até porque, caso em 2014 se embole a disputa pelo papel de antagonista do PT, Marina pode chegar à final - e até vencer. Mas não creio que essa proposta, que é de lenta difusão e absorção, sustente um governo tão logo. Vencendo prematuramente, fracassará no Planalto. Projetos de mudança precisam amadurecer. Não perdem em demorar. A situação é parecida com a do PT nos seus primeiros 20 anos. Assim, se o Rede ganhar em 2014, terá dificuldades. Não terá tido tempo de crescer, de acertar os compassos. Mas o programa precisaria valorizar mais a cultura, a ciência, a pesquisa brasileira e, se quiser, abrir maior espaço para as causas sociais. É o que deveríamos esperar de um partido que pode ter futuro.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo
Fonte: Valor Econômico
O Estado se tornou uma extensão do PT (Fernando Gabeira/entrevista)
Afastado da política, o jornalista e escritor diz que ainda se considera de esquerda, critica os governos petistas e não vê mais o socialismo como alternativa viável
Por José Fucs
Ex-guerrilheiro, ex-deputado federal, jornalista e escritor, Fernando Gabeira já se reinventou várias vezes. Aos 72 anos, decidiu deixar a política - embora continue filiado ao PV e ainda dê palestras ocasionais para militantes do partido - e voltar ao jornalismo. Em seus artigos, publicados quinzenalmente no jornal O Estado de S. Paulo, tem batido no PT, no governo e no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Gabeira lançará um programa de reportagens na GloboNews, com estreia prevista para domingo dia 8. Nesta entrevista a ÉPOCA, ele afirma que o socialismo deixou de ser uma opção viável de poder e critica o aparelhamento do Estado pelo PT.
ÉPOCA - Ao longo de sua trajetória política, o senhor passou pela luta armada, pelo PT e pelo PV. Hoje tem sido um crítico do PT, do governo e da esquerda. O que aconteceu?
Fernando Gabeira - O que mais me incomoda é a sensação de que você é detentor de uma verdade importantíssima e de que todos os seus atos devem ser relevados por isso. O que me distingue dessa esquerda é que, para mim, os fins não justificam os meios. É preciso trabalhar dentro dos critérios democráticos. Também me incomoda que, uma vez no poder, eles se sentem os donos do Estado. O Estado brasileiro passou a ser uma extensão do PT. A política externa brasileira é do partido, e não nacional. Isso também me incomoda muito. O Brasil se apresenta ao mundo com as limitações mentais, ideológicas, do PT. Tenho vergonha de um presidente da República, como o Lula, que diz que a oposição no Irã parece uma torcida de futebol. Tenho vergonha de um presidente que diz que os presos políticos em Cuba são semelhantes aos presos comuns no Brasil. Ao se atrelar a alguns países da América do Sul, abandonando a possibilidade de relações com o resto do mundo, eles prestam um desserviço. Não que a integração regional não seja importante, mas o Brasil precisa se abrir também para outros centros, com uma capacidade tecnológica maior. Você não pode associar seu destino a esse grupo de países, como eles fizeram, por causas ideológicas.
ÉPOCA - Como o senhor analisa os 12 anos do PT no poder, com Lula e Diima, do ponto de vista político?
Gabeira - Politicamente, o grande problema do PT foi ter prometido uma renovação ética no Brasil - e, ao chegar ao governo, aliar-se aos políticos que eles criticavam, recorrer aos mesmos métodos usados antes e incorporar outros igualmente condenáveis. Nesse aspecto, o PT significou algo muito negativo para o Brasil, porque, no fundo, dizia que quem propõe mudar ou traz a esperança está apenas enganando a população, e que os artífices da esperança são os mesmos que construirão uma nova armadilha. Isso acaba se transformando em aumento do voto nulo e do voto em branco. Leva a um rebaixamento da legitimidade do poder constituído.
ÉPOCA - Em sua opinião, a condenação dos réus no processo do rnensalão poderá levar a uma mudança na forma de fazer política no Brasil?
Gabeira - Considero a condenação dos acusados no mensalão uma grande advertência. Primeiro, porque ataca a corrupção política. Segundo, porque mostra ao homem comum que o acesso à Justiça não é impossível. Eles gastaram mais de R$ 60 milhões com honorários de advogados e perderam. Isso traz uma expectativa de que haja mais cuidado na prática política e de que a Justiça seja feita com mais frequência. Agora, pelo que conheço do Congresso, jamais haverá mudança que não seja imposta. Eles só mudarão forçados pelo instinto de sobrevivência. Existe no Brasil uma tendência de o eleitor esquecer em quem votou. Esquecendo em quem votou, você não tem a quem cobrar. A população precisa ter o nível de vigilância e de cobrança permanente que os americanos têm em relação a seus congressistas.
ÉPOCA - Até que ponto as manifestações de junho devem contribuir para essa mudança?
Gabeira - Essas manifestações foram muito positivas. Elas desfizeram a sensação de que tudo ia bem, de que vivíamos numa prosperidade e estávamos supersatisfeitos. Mostraram que a população está insatisfeita com os serviços que recebe pelos impostos que paga, com a corrupção e com o governo. Essa demonstração alterou muito o quadro, inclusive a psicologia e o comportamento dos próprios políticos. Pelo menos, aquela arrogância, aquela distância em relação à população, desapareceu. Isso tudo constituiu algo novo e bom no Brasil. Como todas as manifestações de massa, há um momento em que elas refluem. As pessoas não podem ficar permanentemente na rua, a não ser que haja um objetivo claro, que você esteja prestes a derrubar um governo. Não era esse o caso, uma vez que, no Brasil, vivemos numa democracia, e os governos se sucedem por eleições.
ÉPOCA - Como o senhor analisa a violência que tomou conta das manifestações?
Gabeira - Desde o princípio, houve atos de violência, contrapostos pela imensa maioria que participava da manifestação de forma pacífica. Uma vez que os grupos que se manifestavam pacificamente refluíram, sobrou o território para a violência. Hoje, você continua vendo as manifestações como se fossem uma continuidade daquelas que aconteceram em junho, mas não há vínculo real entre esse pessoal que está nas ruas e as multidões que, dois meses atrás, saíram às ruas das principais cidades do país.
ÉPOCA - Durante as manifestações de junho, surgiu o fenômeno da Mídia Ninja. Eles afirmam que a imprensa profissional é parcial. Como o senhor vê essa questão?
Gabeira - Se examinar friamente as manifestações, todos os temas levantados ali nasceram do trabalho da grande imprensa. Queiram ou não, as redes sociais metabolizam o material que vem da grande imprensa. Dentro de suas limitações, a grande imprensa tem de estar atenta a tudo. Se houver alguma coisa nas redes sociais para ela metabolizar, ela metaboliza também. Não tem espaço proibido. Então, não é justo dizer que a grande imprensa manipulou as informações sobre o que aconteceu nesse período. A grande imprensa denunciou insistentemente os fatos que indignaram as pessoas.
ÉPOCA - Parte do PT e outros grupos de esquerda têm uma vi-
são semelhante da imprensa profissional e defendem o "controle social da mídia". O que o senhor pensa disso?
Gabeira - Na Inglaterra, a partir da experiência dos tabloides, que romperam certos limites e invadiram a privacidade de autoridades e de cidadãos comuns para obter informações, caminhou-se no sentido de equacionar a questão. Só que lá quem comandou o processo foi um governo conservador, nitidamente desinteressado em controlar a imprensa. No Brasil, todas as manifestações em defesa do controle social da mídia surgem do PT, num contexto latino-americano em que os controles são, na verdade, tentativas de censura - com o uso de instrumentos clássicos da esquerda, chamados de "sociais", mas que são aparelhados pela própria esquerda. Quando o PT diz "é preciso o controle social da mídia", está dizendo "é preciso o controle social da mídia, sobretudo o controle social por parte de entidades que nós controlamos".
ÉPOCA - Hoje, 25 anos depois da queda do Muro de Berlim, o socialismo ainda faz algum sentido? O capitalismo venceu?
Gabeira - Não há dúvida de que o capitalismo predominou e o socialismo deixou de ser uma alternativa desejável. Isso não significa que algumas ideias de esquerda e de direita não continuem presentes no universo político. Certas ideias de que as pessoas são culpadas pela própria pobreza continuam existindo. Certas ideias de que as pessoas precisam ser protegidas na velhice, ter uma aposentadoria digna, também continuam aí. Hoje, não se fala mais tanto em capitalismo versus socialismo. Fala-se mais numa forma de modernizar e democratizar o capitalismo.
ÉPOCA — Vários de seus artigos recentes geraram críticas duras da esquerda. Até de "reacionário" já o chamaram. O senhor ainda se considera alguém de esquerda?
Gabeira - Considero-me uma pessoa de esquerda. Não me importo muito com as críticas, vejo como algo normal na política. Pessoas que admiro muito, como o poeta Octavio Paz, também foram chamadas de reacionárias em vários contextos. Às vezes, também chamo o pessoal do PT de reacionário, porque, no meu entender, tudo o que detém o avanço é um gesto reacionário. Tudo depende do ponto de vista.
ÉPOCA - O senhor ainda acredita na transformação do homem, no surgimento de um "novo homem"?
Gabeira - Não acredito mais nisso. Não acredito em "novo homem". Aliás, essa coisa de criar o "novo homem" serviu para muita repressão. Os homens que não cabiam nesse modelo costumavam ser fuzilados. Entre os obstáculos para o Brasil atual está uma série de ideias e de comportamentos que seguram o país. Existe uma vontade normal de, pelo menos, sintonizar o país com o que ele tem de mais moderno. Hoje, a província da política não está sintonizada com o que o Brasil tem de mais moderno. Acredito hoje em ajustar esse polos.
Fonte: Revista Época
quinta-feira, 5 de setembro de 2013
A vitória da razão (Celso Lafer)
O filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004) é, atualmente, uma referência para a ciência política e social, embora no Brasil, assim como na Itália, tenha ficado inicialmente conhecido por suas reflexões sobre Teoria Geral do Direito.
Foi um autor prolífico, atento ao funcionamento dos sistemas políticos democráticos e à dinâmica das relações internacionais, e um defensor obstinado dos Direitos Humanos e da paz.
Celso Lafer, professor emérito do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da FAPESP, autor do livro Norberto Bobbio: trajetória e obra, recentemente lançado, destaca à Agência FAPESP aspectos que considera centrais no pensamento do autor.
Leiam a entrevista:
Agência FAPESP – Norberto Bobbio tornou-se conhecido no Brasil, inicialmente entre juristas. Foi só a partir da década de 1970 que sua obra passou a interessar um público mais abrangente. Por quê?
Celso Lafer – Bobbio formou-se em Direito e Filosofia e foi, durante parte significativa de sua vida, professor de Filosofia e de Teoria Geral do Direito. Este, aliás, foi o tema de sua livre-docência, nos anos 1930. A irradiação inicial de seu pensamento, inclusive na Itália, foi no âmbito da Teoria Geral do Direito. Aqui no Brasil, o professor Miguel Reale, de quem fui aluno na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, conhecia e apreciava a sua obra. O meu primeiro contato com a obra de Bobbio se deu nas aulas de Filosofia do Direito do professor Reale. Bobbio sempre refletiu sobre os problemas do Direito. Em um de seus livros, diz que convinha fazer a diferença entre a Filosofia do Direito dos filósofos e a Filosofia do Direito dos juristas, que dizia respeito aos interesses e às inquietações filosóficas daqueles que se dedicam a procurar soluções para os problemas do Direito que não encontram encaminhamento apropriado apenas no Direito Positivo. Nesse sentido, suas reflexões sempre tiveram impacto muito grande entre os juristas. Até hoje é muito frequente encontrar referência a Bobbio na bibliografia dos estudos do Direito. Os cursos de Direito que ministrava eram sobre Teoria do Direito, como teoria da norma jurídica ou teoria do ordenamento, ou sobre grandes pensadores, como Locke e Kant, para citar dois exemplos de figuras importantes para o Direito e para a Teoria Política. Em Norberto Bobbio: trajetória e obra, comento dois importantes livros dele sobre Teoria Jurídica. O primeiro, Teoria do Ordenamento Jurídico, trata de um tema que, como ele sublinha, é a grande contribuição do Positivismo jurídico para a Teoria Geral do Direito. Para Bobbio, o Direito, que é identificado pelas regras de reconhecimento, está em mudança permanente e, portanto, só pode ser diferenciado pelas formas pelas quais é criado e aplicado. No segundo livro, Da Estrutura e Função, ele reflete sobre o papel do Direito como instrumento de mudança da sociedade. Afirma que, no mundo contemporâneo, o Direito não se limita a proibir ou a permitir, mas também a estimular ou desestimular – é o caso dos incentivos, por exemplo, ou de um Direito Econômico e Social que atua como componente de mudança. Temas da política ou da teoria política sempre existiram em sua reflexão, mas ele acabou desenvolvendo mais circunstanciadamente só mais adiante. No final de sua vida acadêmica, passou da disciplina de Filosofia do Direito para a disciplina da Filosofia e Teoria Política, no âmbito da Universidade de Turim, mas já dava aulas de Teoria Política e Filosofia Política desde a década de 1960. No ensaio Filosofia do Direito e Filosofia Política: Notas sobre a Defesa da Liberdade no Percurso Intelectual de Norberto Bobbio, publicado no livro, procuro mostrar como sua reflexão sobre o Direito se relaciona com a reflexão sobre a política.
Agência FAPESP – O senhor conta no livro que, dois meses antes da morte de Bobbio, teve a oportunidade de lhe dizer pessoalmente que suas lições o ajudaram na elaboração das razões que, na condição de amicus curiae, o senhor apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF), no caso Ellwanger. Quais foram os argumentos de Bobbio que o inspiraram?
Lafer – Bobbio tem grande reflexão sobre os Direitos Humanos em seu livro A Era dos Direitos. Uma das coisas que ele diz é que, no plano da afirmação dos Direitos Humanos, você tem uma primeira fase que é a da generalização, que postula a igualdade e a não discriminação. Há ainda componentes de internacionalização e de especificação, ou seja, do ser em situação: velhos, deficientes, vítimas do racismo, entre outros. Em meu argumento sobre o caso ao STF expus alguns desses aspectos. O tema era o caso de um editor de Porto Alegre, Siegfried Ellwanger, que se dedicava a publicar obras notoriamente antissemitas e também a denegar o holocausto. Ele foi condenado pelo crime da prática de racismo, de acordo com o que estabelece a legislação brasileira, especificando o texto constitucional. Ele entrou com pedido de habeas corpus argumentando que, como os judeus não são uma raça, o crime não era de prática do racismo e, com isso, afastava o problema da imprescritibilidade. O meu argumento foi o de que os judeus não são uma raça, pois não existem raças, mas só uma raça, a raça humana: os brancos, os ciganos, os negros, os índios, todos podem ser vítimas do racismo. O racismo, eu argumentava, é uma prática social e cultural e como tal deve ser interpretado. No meu argumento me vali do princípio da especificação proposto por Bobbio. A Constituição brasileira parte da ideia de igualdade e não da discriminação, especificada no artigo que trata dos direitos e das garantias. Uma das especificações é a do crime da prática do racismo, no qual se enquadrava o crime de Ellwanger. Também afirmei que o Brasil incorporou textos de Direito Internacional e entre os mais importantes está a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, onde a tipificação do crime da prática do racismo está perfeitamente compatível com a condenação de Ellwanger. Portanto, haveria aí um ingrediente adicional para a interpretação do texto brasileiro. Terminava mencionando um discurso que Bobbio fizera em 1960, na sinagoga de Turim, perante a comunidade judaica e na condição de não judeu, em que discute o significado do holocausto e do racismo antissemita. Afirmava que o racismo era lamentável e que sua pior forma tinha sido o antissemitismo comandado pelos nazistas. Caberia aos homens de boa vontade, independentemente de suas divergências, fazer um pacto para evitar que essas coisas se repetissem. Esse discurso está mencionado na parte três do livro, nos artigos Bobbio e o Holocausto: um capítulo de sua reflexão sobre os direitos humanos e Bobbio e o Holocausto – uma aproximação com Hannah Arendt, publicado na Revista USP. Como os ministros do STF são juristas qualificados e conhecem a obra de Bobbio no âmbito jurídico, o impacto da clareza do argumento dele teve ressonância. Ellwanger foi condenado por racismo por maioria de sete a três e a maior parte dos juízes citou Bobbio nos votos.
Agência FAPESP – Bobbio se dizia socialista-liberal. Para um ouvido leigo, socialismo e liberalismo são antagônicos. Como ele fazia essa conciliação?
Lafer – Bobbio segue uma tradição italiana importante, começando por estudiosos italianos, assassinados pelo fascismo, os irmãos Rosselli. Carlo Rosselli – fundador do movimento Giustizia e Libertá, assassinado em 1937 –, em seu livro Socialismo Liberal, argumentava que a soma das aspirações de igualdade do socialismo com o empenho na liberdade do liberalismo apontavam um caminho, uma orientação. Bobbio se sentiu próximo dessa visão. A edição italiana do Socialismo Liberal traz um prefácio do Bobbio, reproduzido na edição brasileira, e é muito interessante.
Agência FAPESP – Como foi a relação dele com as ideias de Palmiro Togliatti, Antonio Gramsci e Enrico Berlinguer, líderes históricos do Partido Comunista Italiano?
Lafer – Bobbio era um bom estudioso da obra do Gramsci e dialogou muito com os comunistas. Fez de sua relação com o Partido Comunista Italiano um diálogo com, e não uma prédica contra. Entendia que o PCI não estava levando em conta os valores da liberdade. No livro Política e Cultura, dos anos 1950, debate com os comunistas italianos e acaba terminando num diálogo com Togliatti. Isso mostra como os comunistas italianos sempre foram mais abertos para a discussão desses grandes temas. Creio que Bobbio brigou com os comunistas porque entendia que a defesa da liberdade não era levada em conta na experiência do comunismo na URSS [União das Repúblicas Socialistas Soviéticas]. Quale Socialismo? Discussione di um´alternativa, dos anos 1970, também é um livro de polêmica. Bobbio diz que há duas perguntas que vêm dos clássicos, mais precisamente de Aristóteles: quem governa? – um, poucos e muitos – e como governa? – bem ou mal, distinção que Aristóteles faz entre monarquia e tirania e entre oligarquia e aristocracia. Para ele, a reflexão da esquerda comunista parte do princípio de que, se o proletariado e o partido – que seriam o “muitos” – governarem, automaticamente governarão bem porque são a classe universal. O argumento central de Bobbio é que não se resolve o como se governa com o quem governa. É preciso levar em conta as instituições. A contribuição que a esquerda deu à Teoria Política é a Teoria do Partido: o partido de massas, que provém da 2ª Internacional [Internacional Socialista, 1889-1916], e o partido de vanguarda, de inspiração leninista. Mas não há nada em matéria de reflexão sobre o Estado e instituições. Quando caiu o Muro de Berlim e desapareceu a URSS, Bobbio escreveu L´utopia capovolta e Esquerda e Direita, dois livros com imensa repercussão. Dizia que, só porque o fim do socialismo real aconteceu, os problemas da igualdade e da pobreza não estavam resolvidos. Não dava, portanto, para eliminar a preocupação com a igualdade.
Agência FAPESP – Bobbio acompanhou atentamente o Movimento de 1968. O que o preocupava?
Lafer – Ele olhou para 1968 com muito interesse porque aquilo representou uma mudança na sociedade italiana e em suas aspirações. O que o impressionou naquele momento foi o capítulo da violência. Na experiência italiana, a violência era a prática do fascismo. Bobbio preocupou-se ao ver como a violência – o maoísmo e as brigadas vermelhas, por exemplo – estava ocupando um espaço crescente na esquerda. Dizia que o único salto qualitativo possível – mas não necessário – da convivência coletiva é a passagem do reino da violência para o reino da não violência, para um mundo regido por normas e pelo Direito. Não foi crítico de formas mais intensas de participação como parte da organização das vozes da vida democrática, mas ele não via a democracia direta substituindo, nas sociedades modernas de massa, o potencial de contribuição da democracia representativa. Ou seja, ele vê nos mecanismos da democracia direta uma forma de aprimorar a democracia representativa e não de substituí-la.
Agência FAPESP – Na defesa da não violência ele também faz um elogio à tolerância, não é?
Lafer – Bobbio dá diversas razões para a tolerância. A questão da tolerância surgiu na Europa e no mundo ocidental com o problema da divisão do mundo cristão entre católicos e protestantes. Aparece, primeiro, como liberdade religiosa, o que não era um problema simples, já que conciliava verdades tidas como contrapostas pelos seguidores. Desenvolveu-se mais adiante com as liberdades políticas, que são a base da democracia. A questão era: como se convive com visões e verdades políticas distintas? Bobbio diz que há várias razões para a tolerância, para a afirmação do valor da tolerância, e uma delas é o respeito pelo outro. E, finalmente, há também um problema prático: ou se tolera e assim se convive, ou se persegue. Não há um terceiro caminho. Ele complementa dizendo que há uma razão mais profunda: a realidade é ontologicamente complexa e a tolerância é a expressão, no plano do conhecimento e da vida política, de que o mundo é complexo e de que é preciso lidar com isso. Diz ainda: a tolerância surgiu no mundo como uma maneira de lidar com opiniões e verdades diferentes e, hoje, o grande desafio é como conviver com os diferentes, com as minorias, com o outro que é diferente, e esse é o tema da xenofobia, do preconceito racial ou sexual, é o tema desse mundo multicultural e multidiverso.
Agência FAPESP – Em seu último livro, O Tempo da Memória, Bobbio fala do significado da velhice no mundo contemporâneo. Como ele trata esse tema?
Lafer – Nesse ensaio ele trata da experiência de ser velho. Diz que a velhice passou a ser um problema para o mundo moderno, o que não acontecia quando Cícero escreveu De Senectute. As pessoas vivem mais e vivem mais como velhos. E o que é viver como velho? Bobbio tem imagens muito límpidas: o velho desce a escada e sabe que não há volta, e sabe também que o número de degraus é cada vez menor. Uma coisa é o movimento solene dos cardeais na procissão, mas o velho anda devagar porque não consegue andar de outra forma. São reflexões muito interessantes.
Agência FAPESP – O senhor é considerado padrinho de um “casamento” muito desejado pela comunidade acadêmica: o de Hannah Arendt com Norberto Bobbio, ao articular o Centro de Estudos Hannah Arendt, recentemente inaugurado, com o Instituto Norberto Bobbio. Os dois filósofos algum dia se encontraram de fato?
Lafer – Nunca se conheceram nem se encontraram. Acho que Hannah nunca leu nada de Bobbio. Creio que Bobbio tinha bem mais informações sobre ela, mas nunca escreveu sobre Arendt. Em A Era dos Direitos, ele cita meu livro sobre Hannah Arendt, em que trato da questão dos Direitos Humanos em sua obra. A mesma sensibilidade de geração os aproxima: ambos lidaram com a era dos extremos e se preocuparam com o que ela significou. Têm temas em comum e, no ensaio sobre Bobbio e o Holocausto, faço uma aproximação entre a noção do mal em Hannah Arendt e em Bobbio. Os meus alunos brincavam que eu gostaria de ter casado os dois e que, agora que eles morreram, estou fazendo essa aproximação. Eles pensam de maneira diferente, mas leram os autores fundamentais – Hobbes, Marx, entre outros – e se relacionam com eles, o que cria vários potenciais de aproximação.
Fonte: Agência FAPESP
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