I - Um dos problemas da democracia realmente existente - quer dizer, da democracia reinventada pelos modernos: a democracia representativa - é que ela induz à perigosa compreensão de que democracia é igual a eleição.
II - Desta fraqueza da democracia formal (que ainda vige na maioria dos países que a adotam: uma pequena minoria dos 193 países existentes - não mais do que 30 - se considerarmos a democracia adotada em seu sentido representativo pleno) aproveita-se boa parte dos ditadores, protoditadores e manipuladores. Hitler e Mussolini foram eleitos. Enver Hoxa (na Albânia) promovia eleições. No Irã dos aiatolás tem eleições. Difícil o regime que não promova eleições, mesmo quando em franca transição autocratizante (como a Venezuela bolivariana herdeira de Chávez ou a Nicarágua de Ortega).
III - Não, democracia não é igual a eleição. Nem mesmo esta limitada e defeituosa democracia formal e representativa inventada pelos modernos é tão inconsistente assim. Não basta alguém ser "democraticamente eleito" (como repete o coro dos tolos neste momento sobre Morsi, da Irmandade Muçulmana, no Egito) para haver democracia. É necessário que, além de eletividade, haja liberdade, publicidade, rotatividade, legalidade, institucionalidade e, como consequência de todos esses princípios (incluído, é claro, o da eletividade), legitimidade. Vejamos um por um:
1 - PUBLICIDADE. As regras que decorrem do princípio da publicidade têm a ver com a transparência necessária (capaz de ensejar uma efetiva accountability) dos atos do governo e a dissolução do segredo dos negócios de Estado (que constitui uma exigência real em circunstâncias que possam ameaçar a segurança da sociedade democrática e o bem-estar dos cidadãos, mas que, na maior parte dos casos, sob o pretexto de manter a segurança nacional e a ordem pública, constitui mero pretexto para ocultar procedimentos autocratizantes ou privatizantes).
2 - ELETIVIDADE. As regras que decorrem do princípio da eletividade são aquelas que disciplinam, de modo a tornar o mais equânime que for possível (dentro das limitações impostas pelas diferenças de força, riqueza e conhecimento existentes na sociedade em questão), a escolha dos governantes pelos governados, o que compreende o direito de voto para eleger representantes legislativos (parlamentares) e executivos (governamentais) pelo sistema universal, direto e secreto, em eleições livres, periódicas e isentas (limpas), atribuindo-se a todos os cidadãos em condições legais de votar o igual direito de ser votados (e a exigência adicional de que os cidadãos devam pertencer a partidos é, como se pode ver, um contrabando autocrático que atenta contra a transitividade do princípio da eletividade, mas que ainda vige em boa parte dos regimes democráticos).
3 - ROTATIVIDADE (ou alternância). As regras que decorrem do princípio da rotatividade dizem respeito à efetiva possibilidade de alternância no poder entre situação e oposição. Essa questão é chave para distinguir as democracias das autocracias e, inclusive, dos arremedos de democracia (ou seja, das democracias parasitadas por forças autoritárias, aparentemente democráticas, mas que na verdade querem restringi-la ou restringem-na objetivamente, seja por meio de um processo claramente protoditatorial, seja por meio de obscura manipulação política, em geral de natureza populista). Assumir a rotatividade ou a alternância em um sentido mais ampliado significa também, como assinalou Felipe González (2007), promover à categoria de princípio “a aceitabilidade da derrota como elemento essencial do funcionamento democrático”.
4 - LEGALIDADE E INSTITUCIONALIDADE. As regras que decorrem dos princípios da legalidade e da institucionalidade têm a ver com a estrutura e o funcionamento do chamado Estado de direito, contemplando a existência e o funcionamento de instituições estáveis, capazes de cumprir papéis democraticamente estabelecidos em lei e protegidas de influências políticas indevidas do governo. Se as leis são descumpridas ou dribladas ou se as instituições são derruídas ou apenas ocupadas, aparelhadas, pervertidas e degeneradas para servir aos propósitos políticos de um grupo privado (instalado dentro ou fora do governo), então o regime democrático corre perigo. Às vezes tal ameaça não é suficiente para colocar em risco o sistema representativo formal, mas – sem qualquer sombra de dúvida – quando isso acontece é sinal de que está havendo um refreamento do processo de democratização da sociedade. Se a lei (democraticamente aprovada) for descumprida e não houver a sanção respectiva, a democracia sempre sofrerá com tal violação, mesmo quando se argumente que a lei é injusta (e ainda que o seja de fato: neste caso, o papel dos democratas é propor a mudança da lei e não o de afrontá-la ou descumpri-la). Mas toda lei democraticamente aprovada é legítima (na medida da legitimidade do processo que a gerou).
5 - LEGITIMIDADE. Só é legítimo na democracia o ator político que respeita – sem tentar falsificar ou manipular – o conjunto das regras que emana dos princípios acima. Mas se, baseado nos votos que obteve ou nos altos índices de popularidade que alcançou, um representante (ou militante) considerar que pode desrespeitar, falsificar ou manipular as regras emanadas desses princípios devido a contar com o apoio da maioria da população (ou porque teria a “proposta correta” ou a “ideologia verdadeira” para resolver todos os problemas do mundo), então tal representante (ou militante) deverá ser considerado ilegítimo do ponto de vista da democracia.
IV - Um governo "eleito democraticamente" que não governa democraticamente (observando minimamente os cinco princípios acima) não pode ser considerado democrático. Mas como as pessoas foram induzidas a acreditar que democracia é igual a eleição, deixam-se facilmente enganar pelos arremedos de democracia que são erigidos continuamente em todo lugar (inclusive para tentar legitimar regimes autocratizantes). Não há como consertar este defeito da democracia representativa com mais democracia representativa, como sonham os liberais: trata-se de um erro de projeto, de uma falha genética.
V - Esta falha genética da segunda democracia (a democracia realmente existente, a democracia representativa inventada pelos modernos) faz com que a democracia não tenha proteção eficaz contra o uso da democracia (entendida apenas como regime eleitoral) contra a própria democracia. Qualquer grupo privado organizado pode se aproveitar das liberdades democráticas e usar as eleições para conquistar o poder e, a partir daí, iniciar um processo de autocratização do regime político: privatizando a esfera pública, aparelhando o Estado, degenerando as instituições e modificando as leis a favor do seu projeto de se eternizar no comando. Organizações estruturadas para privatizar a esfera pública (como os partidos) podem se constituir como verdadeiras quadrilhas para disputar o butim (ou seja, saquear os recursos públicos) na base do spoil system.
VII - Esta limitação estrutural (na verdade um erro de projeto da democracia dos modernos) é a principal razão pela qual a democracia representativa vem sendo questionada em todo lugar neste dealbar do século 21. O aumento do descontentamento com os sistemas políticos organizados sobre tais bases vem abrindo possibilidades para uma nova reinvenção da democracia, uma terceira invenção da democracia, uma democracia que seja: mais distribuída, mais interativa, mais direta, com mandatos revogáveis, regida mais pela lógica da abundância do que da escassez, mais vulnerável ao metabolismo das multidões e mais responsiva aos projetos comunitários, mais cooperativa, mais diversa e plural (não tendo apenas uma única fórmula internacional mas múltiplas experimentações locais).
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