No Brasil é raro pensadores de esquerda criticarem abertamente as próprias bandeiras. Não é o caso, sem dúvida, do antropólogo Antonio Risério, quem vem assiduamente chamando a atenção para os excessos dos chamados identitários. “Lugar de fala”, conceito da moda, vem perdendo a eficiência em nosso cada vez mais acuado campo democrático tornando-se por sua vez perigosa arma autoritária. É quando chega, hoje, à literatura. Mais especificamente ao modus operandi dos escritores, ditando regras sobre quem pode ou não escrever o quê. Com exclusividade para a FAUSTO, o também poeta que atuou como redator das campanhas presidenciais de Lula, autor de Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia identitária, convida a razão para ocupar o devido lugar neste debate.
• FAUSTO – Em primeiríssimo lugar, reconhece como importante o conceito “lugar de fala”?
Antonio Risério: No sentido “clássico” da sociologia e da filosofia, sim – na perspectiva autoritária e rasa do “identitarismo”, não. O que quero dizer, quando falo em sentido “clássico”, é simples. A sociologia, a antropologia, etc., sempre nos mostraram que, ao refletir sobre as ideias e os discursos que ouvimos, temos que investigar o lugar do emissor dessas mensagens tanto na estrutura social quando no seu universo de cultura. Agora, há várias formas de você examinar isso.
• Qual é o problema do identitarismo?
O problema do identitarismo é que ele faz de conta que classes e grupos sociais não existem. O que conta, para essa turma multiculral-identitária pós-moderna, é, fundamentalmente, a realidade física da pessoa, sua situação étnica ou sexual. Nesse sentido, o identitarismo é um retrocesso, um “retorno” ao cientificismo oitocentista de um Destutt de Tracy, por exemplo, que interpretava as atividades mentais como produtos de causas fisiológicas. O identitarismo é uma volta a isso, no sentido de que fecha os olhos ao movimento real da vida social e só vê a situação física do indivíduo, seja a pigmentação da pele ou o que é mesmo que a pessoa tem nas entrepernas – e isso “explica” tudo, num mundo mecânica e drasticamente dividido entre “opressores” e “oprimidos”, onde não há lugar para posições e desempenhos individuais com relação ao conjunto da sociedade, já que tudo está dado de antemão. A diferença, portanto, é que o identitarismo é ainda mais estreito, em consequência de suas obsessões cromáticas e genitais.
Então, ao abolir as classes sociais, eles não têm como analisar uma situação em que se defrontam um senhor negro e um escravo negro. Ou o caso de uma mulher que possui escravas mulheres, todas da mesma cor, todas pretas, como se viu na África com Ginga, a rainha de Matamba, por exemplo. E eu ainda prefiro pensar com Marx, Durkheim e Lévi-Strauss do que a partir da patafísica racialista dos seguidores de Abdias do Nascimento, digamos.
• A interferência do “lugar de fala” no modus operandi da escrita literária não é exatamente o oposto de um dos mais poderosos efeitos da literatura, que é o aprender a ser outros?
Sim – e ainda podemos ir adiante. Não foi Rimbaud quem disse “je suis um autre”? Os “beatmiks” também diziam isso. Jerome Rothenberg – o autor de Symposium of the Whole e Shaking the Pumpkin, entre outros – fala categoricamente: o poeta é o outro. Nós somos os “ethnoi”, os bárbaros. Mas essa coisa do “lugar de fala”, levada a extremos no neofeminismo norte-americano e no racialismo neonegro, aponta para o fim de boa parte da criação verbal da humanidade. Sei que Robinson Crusoe – naquela ilha deserta onde ele naufraga depois de sair da Bahia – Sim: pouca gente lê, de fato: sempre que falo que Defoe fez de Robinson um senhor escravista no Recôncavo Baiano, as pessoas ficam completamente surpresas, mas está lá no romance, é só ler – se queixa de não ter um escravo, até achar o pobre do Friday, mas nunca se queixa de não ter uma mulher.
Mas isso não é bem a regra. Vamos agora, em obediência ao esquerdismo identitário, ter romances que se passem apenas entre homens, se o romancista for homem, ou exclusivamente entre mulheres, se a romancista for mulher? Vamos jogar Madame Bovary no lixo? Jogar no lixo a esplendorosa fala final de Molly Bloom no Ulysses de Joyce? Acho que é mais ou menos para essa direção que acabam apontando. E não é só literatura, claro. Um historiador do sexo masculino, que for escrever a história do sul da França entre os séculos XII e XIII, a história da Occitânia ou Languedócio, não pode dissertar sobre a realidade das mulheres naquela região, quando elas tinham autonomia econômica, algumas eram ricas e poderosas e chegavam a financiar trovadores? Não vai poder falar de Eleonora de Aquitânia ou da Condessa de Dia? Isso é absurdo, puro e simples absurdo.
• Se vinga essa interferência, o primeiro a perder o pescoço seria Chico Buarque? Quem melhor escreve sobre os sentimentos de uma mulher?
Veja só: quem está dizendo isso sobre Chico é você – e você é uma mulher… Vamos viajar em algumas direções? Veja que criação maravilhosa é a Dulcineia de Cervantes. A gente fala dela com familiaridade até. Mas a gente não tem ideia do que ela pensa, nunca ouviu uma sílaba dita por ela. Em momento algum de Dom Quixote ela dá o ar de sua graça. No livro, a gente ouve a pastora Marcela, por exemplo. Mas Dulcineia não se materializa nunca, não aparece em nenhuma cena, nada. No entanto, todos a conhecemos. É o poder encantador, enfeitiçador mesmo, de Cervantes.
Mas vejamos ainda outra coisa. Quando Jorge Amado morreu, o jornalista William Waack fez um programa de televisão sobre ele. Fomos convidados eu, Renato Ortiz e uma professora universitária paulista cujo nome já não lembro. E esta senhora contou uma coisa que certamente deixaria Jorge fascinado e comovido. Ela disse que, em inícios de sua juventude, vivendo num meio social muito repressivo, “vitoriano”, onde não se falava de sexo, etc., ela e umas amigas liam Jorge Amado escondido. E foram personagens femininas de Jorge Amado que mostraram muitas coisas a elas, que serviram de modelos para elas com relação a certos aspectos da vida. Então, ela disse uma coisa esplêndida: “foi com Jorge Amado que aprendemos a ser mulheres”. Por essas e outras, acho maravilhoso que mulheres escrevam sobre mulheres, que relatem suas vivências femininas do mundo, etc. E que escrevam também sobre os homens, claro. Sempre aprendi muito sobre os homens ouvindo as mulheres, a começar por minha mãe – e continuando ainda hoje com Sara Victoria, minha mulher.
Agora, não queiram nos proibir de escrever sobre mulheres. De escrever sobre o que amamos. Aliás, Roland Barthes dizia isso: “só estudamos o que desejamos ou o que tememos”. E pode ficar certa de que não é por temor que falo de mulheres. É apenas pitoresco que algumas feministas radicais não suportem que nós homens escrevamos sobre mulheres, embora citem Foucault e Derrida – que, até onde eu saiba, não são mulheres – em defesa de suas posições. Mas é impossível não fazer isso. O planeta em que vivo não é habitado exclusivamente por homens. E eu posso muito bem me sentir levado a recriações estéticas da vida feminina. Nessas conversas, o filósofo Spinoza é meu guru. Ele, que conheceu o “herem” (a excomunhão rabínica), disse tudo:
“É preciso conceder a cada um o poder de pensar o que quiser e de dizer o que pensa”.
• Uma de suas queixas é que identitários não condenam crimes de identitários?
Não se trata de queixa, mas de constatação. É como no caso dos maoistas que evitavam falar das orgias sexuais de Mao Zedong com jovenzinhas virgens chinesas, que eram levadas de bandeja para ele… Com relação aos identitários, o caso paradigmático, a que sempre me refiro, é o do “pantera preta” Eldridge Cleaver, relatado por ele mesmo, em seu livro Soul on Ice.
• O que relata?
Cleaver conta que estuprou mulheres brancas como um ato de vingança, de revanche, de “reparação” histórica. Diz que sentia um prazer imenso em “sujar” as fêmeas do homem branco. E nunca nenhuma neofeminista, nenhuma “radfem” norte-americana, abriu a boca para protestar, condenar isso. Mais ainda: Cleaver conta muito tranquilamente que, antes de currar brancas, treinou no gueto currando pretinhas. E então? Cadê Angela Davis? Onde estão as feministas neonegras, que não falam sequer uma sílaba sobre o assunto? Ora, isso significa que, por ser um preto, um “oprimido”, Cleaver tem todo o direito de ser um criminoso sexual, estuprador de pretas e brancas? Sinto muito, mas se este é o sentido de justiça do identitarismo – vale dizer, identitários têm o direito de cometer crimes –, aviso que não tenho nem quero ter nada a ver com esse mundo. Se existem coisas que não arquivei – e espero nunca arquivar – são o meu senso de justiça e a minha capacidade de indignação.
• Em que momento o caráter representativo do conceito “lugar de fala” se tornou um truque de autoritarismo? A meu ver, o “lugar de fala” faz muito sentido no que tange a dar voz para quem vive na pele certas dores, pessoas que nunca puderam falar, escrever, encenar, o que for, mas me parece que esse conceito se perdeu em algum momento…
Em que momento, exatamente, não sei, mas é fato que se perdeu. As coisas, como sempre, partem de uma base justa. O problema são as perversões que vêm nos desdobramentos, nas radicalizações malucas. Dar voz a quem não tinha voz não implica cassar a voz de quem a tem. E foi isso que passou a significar. Um problema, também, é que os identitários lidam com caricaturas de pessoas – e não com pessoas reais, complexas, contraditórias, etc. Somos todos múltiplos e diversos. Além disso, o mundo mudou muito e muda o tempo todo. Os identitários não suportam a ideia de transformação, seja ela política, social ou cultural. Precisam de um mundo parado no tempo. As feministas, por exemplo, falam de um Ocidente “patriarcal” que há muito não existe mais. A grande opressão machista, hoje, está no mundo islâmico – e contra isso as neofeministas não dizem nada, porque os muçulmanos são também “oprimidos”. Não dá para levar a sério. O Brasil também mudou muito.
A sociedade brasileira em que viveram Ana Nery e Nísia Floresta Brasileira Augusta não é a sociedade brasileira em que vivem Bia Lessa, Tabata Amaral ou Fernanda Torres, que não só têm voz, como se manifestam com frequência, e podem curtir livremente a vida sexual que escolherem, sem que ninguém tenha nada a ver com isso.
Do mesmo modo, o Brasil em que viveu José do Patrocínio não é o Brasil em que viveram Donga e Hilário Jovino Ferreira, nem o Brasil em que vivem Vagner Love e Ronaldinho Gaúcho. Temos problemas, sim, mas muita coisa mudou. Nosso esquerdismo identitário não admite mudanças, tem uma visão estática do mundo, estática e maniqueísta, como um truque barato para não enfraquecer seus discursos. Mas, feliz ou infelizmente, a história não para. E o que enfraquece os movimentos não são as mudanças – é a visão estática, que vai ficando para trás, enquanto a roda gira.
• O “lugar de fala” tende a simplificar as formas de pertencimento? Como se toda experiência de racismo, de sexismo, de homofobia, entre outros, fossem iguais, envolvendo algozes parecidos, e, principalmente, como se fosse fácil identificar porque numa relação de afeto tudo é muito mais complexo, o algoz pode ser o pai, a mãe, o filho…
Entendo perfeitamente o que você quer dizer e concordo, mas vou dar uma variada. Existem algumas leituras do tema, mas uma em particular me atrai. Quem a sugeriu, anos atrás, foi o sociólogo Jessé Souza – hoje, infelizmente, convertido em “intelectual orgânico” do PT. A sociologia weberiana dá forte ressalte, em sua leitura do protestantismo ascético triunfante nos Estados Unidos, ao espírito de seita. À “capacidade protestante sectária de associação para fins de interesse comum”. É um associativismo sectário que se funda não em base afetiva, mas em relações “horizontais” de interesse, logo, relações entre iguais – indivíduos da mesma classe social ou do mesmo grupo profissional, por exemplo.
“Para Max Weber, a confiança intersubjetiva é produto do espírito de seita, por oposição ao espírito da Igreja católica”. É a diferença fundamental entre o espírito sectário e o princípio da fraternidade universal do catolicismo. E Weber vai ver nos Estados Unidos, país do protestantismo sectário, o reino por excelência desse espírito de seita, com seu típico associativismo exclusivista – que se expande em todas as direções, para além da esfera religiosa. Vale dizer, ocorre a secularização do espírito sectário, com “a filiação religiosa acrescida ou substituída pela filiação às mais diversas associações, sociedades, clubes e universidades”.
Mas o importante, de momento, é que Jessé situa o multiculturalismo identitário justamente nesse contexto. É a exacerbação do associativismo sectário exclusivista – e excludente – que vai gerar sua vocação, disposição ou ânsia para estabelecer compartimentações. Fixar divisórias. Instaurar apartheids. Concordo plenamente: em última análise, o fragmentarismo identitário-multicultural é produto do puritanismo anglo-saxão, do protestantismo ascético calvinista, correndo extremado e esbaforido nas baias do associativismo sectário.
• Pode haver superioridade moral em um ambiente como a literatura, que é exatamente o encontro com outros indivíduos?
Ser ético é uma coisa, considerar-se moralmente superior aos demais, pela simples circunstância de se ter nascido mulher ou preto, por exemplo, é outra. Podemos falar do ambiente artístico, de modo geral. O fato de uma pessoa ter uma conduta moralmente condenável não faz dela um artista maior ou menor. Tudo indica que Cacilda Becker, por exemplo, podia ter às vezes um comportamento algo canalha, como relata Paulo Lima em Anjo Bom, Gênio do Mal, mas isso não tira dela o título de grande atriz. E o mesmo pode ser dito a propósito de crenças religiosas, ideológicas, etc. Muita gente já escreveu que a Divina Comédia, de Dante Alighieri é uma “tradução” estética da teologia de Santo Tomás de Aquino, mas não conheço ninguém que tome isso como critério de julgamento de Dante. E ainda há todo tipo de contradição por aqui. Ezra Pound, que chegou a aderir ao fascismo italiano, escreveu versos violentamente anticapitalistas.
• Sim…
Aqui mais perto, entre nós, Nelson Rodrigues era aplaudido pelos militares quando criticava Dom Hélder Câmara, a “teologia da libertação”, os “padres de passeata”. Ao mesmo tempo, ele foi um dos escritores brasileiros que mais sofreram com a censura, durante a vigência do regime militar. Então, não existe isso. Um grande poeta racista ou homofóbico pode e deve ser condenado enquanto racista ou homofóbico, mas não vai deixar de ser um grande poeta por causa disso.
George Orwell dizia que podia dar exemplos e mais exemplos de antissemitismo nas obras dos maiores nomes da literatura universal. E é verdade. Mas isso não diminui em nada a grandeza dessas obras, como forma de conhecimento da vida, do mundo e da humanidade. Aliás, no Evangelho segundo Mateus, Jesus designa os povos não-judaicos como “cães”, mas isso em nada tira a beleza e a força do texto. Oscar Wilde, de resto, ficou encantado com a passagem. Enfim, não é a ética que faz o poeta. Nem a ideologia. Roman Jakobson disse certa vez que se o que fosse importante, na arte verbal, fosse o conteúdo, a Declaração dos Direitos do Homem seria certamente o maior de todos os poemas, em todos os tempos. E é isso.
• Qual deve ser o lugar do escritor em sua própria obra?
O lugar ou a clareira que ele conseguir desenhar.
Eliana de Castro/19 de fevereiro de 2020
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