Membros e adeptos gratuitos do novo governo têm se manifestado em defesa da propriedade, em governos anteriores supostamente ameaçada pela esquerda. É manifesto desconhecimento do assunto imaginar que a esquerda é um bloco político e não um elenco de convergências ideológicas eventuais, desacordos e contradições.
Mesmo em relação à reforma agrária. Se a esquerda fosse um bloco, o atual governo seria outro. Em diferentes países, a reforma agrária foi e tem sido providência contra o monopólio da terra pelo estamento senhorial do antigo regime e seus remanescentes. Pois bloqueiam o desenvolvimento do capitalismo com o parasitismo da renda fundiária e impedem a expansão do mercado interno, de que o capitalismo carece.
Uma das confusões do momento político brasileiro é a relativa à questão agrária e a decorrente política de reforma agrária. São superficiais as opiniões sobre temas sociais no Brasil. Desconhecem que a reforma agrária brasileira, com as alterações e ajustamentos que foram necessários, foi definida e implantada pelo regime militar de 1964. Fora concebida no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), dirigido pelo general Golbery do Couto e Silva, que seria reconhecido como o teórico do regime surgido com a queda de João Goulart. Resolver a questão agrária era e é uma questão política porque é uma questão de segurança nacional.
Há pouco tempo, quando ainda candidato, o atual vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, maçom, em palestra no Rio de Janeiro para os membros de duas lojas da maçonaria, em alusão à exclusão social, referiu-se à "questão da propriedade, não só intelectual, mas a propriedade da terra, a propriedade urbana. Isso dignifica a família nessas nossas comunidades. Se você entregar o título de propriedade, você traz aquela pessoa para o sistema capitalista. Isso muda a maneira de pensar".
O nome do que preconiza o general é reforma agrária, meio de conter a irracionalidade econômica de um capitalismo rentista, nocivo à expansão do capitalismo propriamente dito, o da produção e não o da especulação. O rentismo gera lucros fáceis, mas não gera participação social e democrática. Enriquece alguns e empobrece muitos. Põe em risco a reprodução capitalista do capital. É o pai do autoritarismo e das ditaduras. Inimigo da pátria e da sociedade. É a direita.
O regime fundiário brasileiro nasceu defeituoso, com a Lei de Terras, de 1850, concomitante à proibição do tráfico negreiro e a possibilidade do fim próximo da escravidão. O escravo era a garantia dos empréstimos hipotecários de que dependiam os grandes fazendeiros.
A terra não cumpria essa função. Passou a cumpri-la quando, com essa lei, o Estado brasileiro abriu mão do senhorio do território e das funções econômicas e sociais da terra e da natureza em favor dos proprietários privados. O oposto do que aconteceria pouco depois nos EUA, que abriram o acesso às terras novas do Oeste à livre ocupação de colonos livres para conter a possibilidade da expansão territorial da economia escravista do Sul e o consequente comprometimento do capitalismo do Norte. Por isso, eles são o que são e nós somos o que somos.
A referência do general pode ser uma ressalva à concepção vulgar de que aqui o direito de propriedade é um direito absoluto. A Constituição Brasileira reconhece o direito de propriedade da terra como um direito condicional, precedido pela função social da propriedade. Já era assim na Constituição de 1946, com a proclamação do direito de igualdade no acesso à propriedade e várias restrições ao direito absoluto de propriedade.
Constituição que, aliás, limitou o direito de propriedade ao solo e dele excluiu o subsolo. Em 1934, o Código de Águas já excluíra expressamente da propriedade privada as águas de uso comum. Com o tempo, outras medidas, de governos "de centro", impuseram novas exceções e limitações ao direito de propriedade, como no caso dos territórios indígenas, o das reservas florestais, a do patrimônio histórico. Uma forma de proteger o patrimônio imaterial e o ambiental da nação.
Algumas ameaças a essas lentas conquistas de restituição da soberania do território ao poder do Estado estão postas na agenda de possíveis, arriscadas e regressivas "inovações" no âmbito territorial. Uma delas, a decisão de separar a condição propriamente étnica dos índios de suas referências territoriais, deixando-os sob tutela do Ministério da Família e as terras indígenas sob a do Ministério da Agricultura. Outra é a de paralisar a reforma agrária, o que destrói um capital cultural e agrícola que historicamente foi e tem sido responsável pela prosperidade agrícola do Sul e do Sudeste do país.
Valor Econômico/25 de janeiro de 2019
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