Dois mistérios rondam a discussão sobre as instituições brasileiras. O primeiro mistério refere-se à crônica insatisfação com o desempenho das mesmas. Sabe-se lá por que razão, as regras que regulam a escolha de representantes, os partidos políticos e o funcionamento do legislativo e do executivo são alvos de permanentes manifestações de descontentamento. Editoriais, comissões, plebiscitos, emendas constitucionais manifestam reiterada desconfiança quanto às opções constitucionais feitas pela carta de 1988. Ao submeter duas escolhas fundamentais (a república e o presidencialismo) a plebiscito e permitir a revisão por maioria simples – que acabou não ocorrendo –, a própria Constituição de 1988 talvez tenha contribuído para a criação de uma cultura política da insatisfação institucional.
A insatisfação com o desempenho das instituições está amparada em um diagnóstico pessimista, que acredita que temos as piores instituições representativas do planeta. O presidente Fernando Henrique Cardoso, em depoimento ao Jornal do Brasil, expressou a versão do subdesenvolvimento institucional brasileiro de maneira definitiva: –"Nossa estrutura política está atrás de outros países. Digo isso desde que sou senador. Nosso problema é que nosso sistema político está atrás da sociedade. A sociedade avançou mais, mudou mais depressa que o sistema político".
A conseqüência natural do diagnóstico do mau desempenho institucional é a proposta de uma vasta agenda de reforma política. Todos os aspectos do sistema representativo brasileiro foram alvos de projetos reformistas. As regras do presidencialismo foram modificadas (mandato de quatro anos para presidente e possibilidade de reeleição), enquanto o sistema proporcional que vigora nas eleições parlamentares é ameaçado a cada legislatura pela adoção de um virtual sistema distrital misto. Nesses últimos anos, falou-se de voto facultativo, de eleições para suplente de senador, de correções para distorção da representação dos estados na Câmara dos Deputados.
Aqui chegamos ao segundo de nossos mistérios: a adoção de um sistema misto nas eleições legislativas. Novamente, sabe-se lá por que, o distrital misto passou a aparecer como um consenso no meio jornalístico e político brasileiro. Talvez porque, apresentado superficialmente, ele realmente parece comportar o melhor da representação proporcional e da majoritária.
Na impossibilidade de discutir a natureza do que seja o distrital misto, pois cada proposta que carrega este nome fala de um modelo com características singulares, comento a proposta apresentada pelo senador Sérgio Machado.
Apesar de ser freqüentemente comparado com o sistema eleitoral da Alemanha, o projeto Machado é semelhante ao sistema adotado na Bolívia em 1993. Na Alemanha o cálculo para distribuição das cadeiras é feito no âmbito nacional (o que gera alta proporcionalidade), enquanto no projeto Machado o cálculo é realizado em cada unidade da federação. Outra diferença importante é que na Alemanha o número de cadeiras de cada unidade da federação na Câmara dos Deputados não é definido previamente e depende da taxa de comparecimento, enquanto no projeto Machado o número de representantes por estado é fixo.
O maior adversário da adoção de um sistema misto no Brasil é o ato de desenhar os distritos em cada unidade da federação (distritamento); menos pelas possíveis manipulações que porventura possam ser feitas para favorecer determinados candidatos e mais pela incerteza que produz. O sistema representativo brasileiro já tem um padrão de preferências razoavelmente estabilizado em termos eleitorais: alguns partidos têm força em determinados estados, determinados políticos têm redutos eleitorais em certas áreas do estado. O distritamento introduzirá uma variável abominada por qualquer político: a imprevisibilidade. A criação de um distrito eleitoral – que envolverá necessariamente a agregação de municípios médios e pequenos e a divisão de megacidades – interferirá em interesses eleitorais cristalizados. Alguns candidatos terão seus redutos diluídos em outros maiores, alguns partidos terão seus redutos divididos em um processo cujo resultado é imprevisível.
Gostaria de chamar a atenção para cinco possíveis efeitos (pouco explorados) da adoção do chamado sistema distrital misto no Brasil:
1.Complexidade do sistema. Sistemas mistos são mais complexos e tendem a dificultar sua inteligibilidade pelo eleitor. Na Alemanha, apesar da simplicidade da cédula, menos da metade dos eleitores sabem a função do voto dado na lista partidária. No Brasil, nas eleições gerais o eleitor necessitaria fazer até oito escolhas – marca praticamente desconhecida em outras democracias. Em um quadro de baixa escolaridade do eleitorado e de espetaculares taxas de votos em branco e anulados, um componente que torne a escolha eleitoral mais difícil, pode ter efeitos bastante negativos para a legitimidade de nosso sistema representativo.
2.Distritos eleitorais justapostos. Metade dos deputados eleitos pelo distrito e metade pela lista em cada estado significa que o número de distritos eleitorais seria diferente nas eleições para Câmara e para Assembléia Legislativa. No Rio de Janeiro, por exemplo, seriam 35 distritos com cerca de 285 mil eleitores na eleição para a Assembléia e 23 distritos com cerca de 434 mil eleitores para a Câmara dos Deputados. Pode-se imaginar o que isso produziria em termos de confusão para os eleitores e para a estratégia eleitoral dos partidos candidatos.
3.Distritos com um número de representantes muito diferenciado. Como as distorções da representação dos estados na Câmara dos Deputados não seriam corrigidas, o número de eleitores por distrito eleitoral variaria intensamente. Em números das eleições de 1998: um distrito eleitoral de Roraima seria composto por cerca de 43 mil eleitores, enquanto um distrito de São Paulo representaria 667 mil eleitores. Dividindo um pelo outro encontramos um raio de 15,5.
4.A possibilidade de criação de deputados com diferentes status. A eleição de deputados por dois métodos pode estimular diferenças marcantes na atividade legislativa. De um lado, os deputados eleitos nos distritos (com um determinado número de votos) teriam forte incentivo para cultivar laços com suas bases eleitorais – pode-se reforçar a tendência de alguns parlamentares a atuarem exclusivamente como vereadores federais, intermediários entre interesses locais e o executivo; de outro lado, os parlamentares eleitos na lista (sem voto pessoalmente identificado) teriam forte incentivo para cultivar laços com a vida orgânica do partido, pois isso garantiria uma boa posição na lista de candidatos da eleição seguinte.
5.Número excedente de cadeiras. Como ocorre na Alemanha, o projeto Machado prevê que um partido assegurará cadeiras a mais nas situações em que ele conquistar mais representantes nas eleições majoritário-distritais do que teria direito pelo cálculo proporcional. Tal mecanismo aumenta o número total de representantes da Câmara. A principal razão para a criação de cadeiras suplementares é o "voto quebrado" (o eleitor vota em um partido na lista e em outro no distrito). Como os eleitores brasileiros tradicionalmente votam em candidatos de diferentes partidos, pode-se prever uma alta taxa de cadeiras suplementares criadas em cada eleição.
Tentei mostrar neste breve texto que a escolha de um sistema que aparentemente combina o melhor dos dois modelos de representação (majoritário e proporcional), comporta aspectos pouco explorados por seus defensores.
Pelas razões apresentadas acima, acho que o sistema misto não é apropriado para o Brasil.
Podia terminar explorando um terceiro mistério: por que pouco se fala sobre o aperfeiçoamento do sistema proporcional de lista em vigor no Brasil desde 1946? Países sem graves crises institucionais, em geral, optam por fazer ajustes marginais no sistema representativo, ao invés de substituí-lo. Mas esse é um mistério para outra oportunidade.
(*) Professor de Ciência Política do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro - IUPERJ
Fonte: Conjuntura Política: Boletim de análise nº 06, 1999.
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