domingo, 27 de agosto de 2017

Reforma Política e Governo Representativo (Hamilton Garcia de Lima)

- A reforma política é um tema que recusa ser esquecido, apesar da má vontade da classe política e de muitos intelectuais. De chofre, reaparece como uma artimanha das cúpulas partidárias emaranhadas nas teias da Lava-Jato. Seja como for, precisa ser enfrentada com seriedade e não sutilmente escanteada por meio do abuso ao senso-comum antipartidário dominante no país – atavismo da inadaptação nacional à democracia, como bem observara Sérgio Buarque de Holanda na primeira metade do século passado.
- Um dos focos principais desse senso-comum se dirige contra a adoção da lista fechada no sistema proporcional, sob o argumento de que ela enfraqueceria o vínculo entre eleitores e candidatos, levando “à ditadura das cúpulas partidárias” em detrimento do direito de escolha do eleitor.
A crítica é fraca e falsa sob variados aspectos; vejamos alguns. Uma das razões para que a reforma política não saia da agenda do país é precisamente o fato de que o modelo vigente (lista aberta) levou, ao longo das últimas três décadas, o vínculo entre representantes e eleitores aos piores patamares da história republicana – não obstante o juízo de muitas autoridades acadêmicas que, nos anos 1990-2000, prognosticavam o amadurecimento do modelo.
Os motivos para essa deterioração crescente são muitos, mas deve-se destacar, em particular, a opacidade do método de distribuição das cadeiras legislativas pelo coeficiente partidário-coligacional, que faz a “mágica”, aos olhos da sociedade, de eleger candidatos com os votos dos não eleitos, de tal modo que nem os políticos, em sua esmagadora maioria, sabem exatamente de onde vem os votos que efetivamente os elegem, nem os eleitores a quem seus votos efetivamente consagram, pois a grande maioria votou em candidatos que não se elegeram.
Não bastasse isso – em si, suficiente para explicar o estranhamento do eleitor em face de “seu” representante e o descompromisso desse em relação àquele –, a ideologia liberal reforça a alienação recíproca ao propalar uma abstrata primazia do eleitor que, supostamente, como vimos, escolhe o candidato usando para tal do discernimento natural. A fábula de uma razão descolada de contextos (interesses), estruturas (instituições) e tradições (cultura), só serve aqui para encobrir a farsa do sistema atual de escolha do eleitor.
Na verdade, ao contrário do que propõe essa ideologia, nosso eleitor encontra-se perdido num cipoal de siglas e nomes que pouco explicam/significam e que o impede de ter a visibilidade mínima para qualquer escolha razoável em termos, mesmo que apenas, de seu interesse individual. Sendo obrigado a votar em condições tão nebulosas, o cidadão acaba sendo naturalmente atraído pelos elementos mais visíveis no jogo: os candidatos-singulares, que se destacam pela capacidade ou acúmulo comunicativo, em meio ao mar de nulidades políticas individuais, ou pela oferta de alguma materialidade imediata, individualmente significativa, como vantagens pecuniárias ou acesso ao poder, tudo isso sem maiores considerações acerca dos efeitos colaterais de tais opções sobre a administração e o interesse público.
Na cabeça de significativos segmentos do nosso eleitorado – e até mesmo para alguns de nossos intelectuais ingurgitados de Lattes –, a oferta de serviços públicos por canais privados de clientela eleitoral, que oferecem privilégios em troca de voto, em nada se relaciona com a má qualidade do serviço público, em geral, sendo apenas uma forma supostamente inofensiva de remediá-la.
Descaminho
Mas, esse descaminho do Estado pelo sistema democrático de votação – sintetizada por uma liderança comunitária do Farol, em Campos dos Goytacazes/RJ, em 2007, nos seguintes termos: “o voto no Brasil corrompe” –, não produz efeitos apenas sobre as políticas públicas por ele impactadas, mas igualmente sobre o âmago do processo democrático, atingindo mortalmente a soberania do eleitor, sem que a abordagem liberal disso tenha a menor ideia.
Para muitos em nosso país – e isso não se limita aos pobres –,a soberania do voto se transformou numa relação fetichizada que, à semelhança do fetiche da mercadoria discutido por Marx em O Capital, transforma, em nosso caso por meio da gratidão ou ambição, o eleitor de portador da soberania do voto em tutelado por um patrono que lhe concede, sob a forma de favor, aquilo que formalmente está estabelecido como direito, distorção esta que, ao contrário daquela ensejada pelo poder econômico privado e seus enlaces de privilégios e superfaturamentos com a administração pública, não pode ser combatida por nenhuma Operação Lava-Jato.
Toda esta realidade, que fere de morte o direito de escolha do eleitor nas eleições proporcionais e subverte a essência do sistema democrático, transcorre sob a chancela da fetichista lista aberta, que, apesar de todas as evidências em contrário, continua sendo defendida pelos liberais programáticos como “garantia da liberdade de escolha do eleitor”.
Não é por outro motivo que os antídotos às doenças da alienação eleitoral e da perversão democrática , insistem em voltar ao centro do tabuleiro político quando o tema da reforma política emerge, mesmo em meio à grossa neblina lançada ao vento pelos apóstolos da liberdade abstratamente concebida; me refiro ao sistema de lista fechada e ao voto distrital, que podem ser aplicados isoladamente ou combinadamente, com ou sem financiamento público de campanha.
Ambos têm uma qualidade cuja falta corrói nosso sistema político: a de responsabilizar os partidos pelos mandatos conquistados em seu nome, ao mesmo tempo que reforça os vínculos dos candidatos com seus partidos, já que ambas as fórmulas ensejam disputas internas reais pelas vagas de candidato ou sua ordenação na lista, com impactos importantes sobre a vida das agremiações políticas. De outro lado, elas também tornam transparentes ao eleitor/representante o destino/fonte de seu poder, criando condições efetivas para a sinergia político-programática entre o eleitor e o eleito. Em síntese, eleitores, eleitos e elites partidárias se tornam corresponsáveis pelo resultado dos mandatos conquistados e ninguém pode fugir às suas responsabilidades em caso de fracasso das apostas – o que, no caso do eleitor, implica seu deslocamento na direção de outra opção partidária.
Oligarquias
O efeito colateral criticado nesses remédios é o fortalecimento das oligarquias partidárias, embora ele já se manifeste patologicamente na ausência de sua administração, no sistema hoje vigente. Ao contrário de oligarquias, o que os medicamentos em tela poderão propiciar é o aparecimento de novas elites com base no pressuposto da transparência que deverá surgir no processo de construção de candidaturas, que hoje se instituem (fetichistamente) órfãs de pai e mãe, fruto de interesses escusos articulados em convenções anômalas, marcadas por um anonimato que apenas se rompe, pontualmente, com as escolhas de candidaturas no âmbito majoritário, sobretudo para o Executivo. Nas novas condições criadas pela reforma aqui discutida, os partidos oligarquizados terão que se abrir em alguma medida à sociedade, sob pena de ficarem exclusivamente dependentes dos velhos métodos de compra de votos e cooptação, mais fáceis de serem penalizados em face da brutal simplificação eleitoral propiciada pela lista fechada e o voto distrital.
Por fim, a manutenção da proporcionalidade, na modalidade lista fechada, trará uma vantagem importante em relação ao sistema distrital: o sistema de responsabilização/simplificação das eleições poderá ocorrer sem a perda da pluralidade política-ideológica duramente conquistada nas lutas pela redemocratização dos anos 1970-80. Ademais, a lista fechada tem um aspecto pedagógico não desprezível ao promover o fortalecimento da disputa programática entre os partidos em detrimento das personalidades.
Infelizmente, estamos forçados em nossa reforma política a realizar uma pauta novecentista: criar laços mais efetivos e duradouros dos partidos com a sociedade, por meio da formação de elites políticas genuinamente ligadas aos interesses sociais, que pudessem lastrear, como indicava Weber no início do século passado, os governos e as disputas que constituem a alma da democracia parlamentar.
O desafio não é pequeno. Em nosso caso, trata-se não apenas de um programa de reforma institucional (legal), mas de recuperarmos aquilo que se perdeu no naufrágio da democracia de 1946: uma cultura de poder que restaure a sociedade como a base do governo representativo.
(*) Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF

sábado, 26 de agosto de 2017

A república minimalista (José de Souza Martins)

O chocho debate sobre a reforma política é dominado por políticos que advogam pela forma oligárquica da reforma. Os que notoriamente não a querem senão para assegurar-se a permanência no poder. É mais um debate em favor da oculta monarquia de régulos de província que domina até hoje o poder político do país, tenha a forma que tiver. Se for de direita, estão lá. Se for de esquerda, estão lá também.
A coisa vem dos primeiros tempos do Brasil, e persiste. O Brasil independente não teve como se livrar dessa herança. O Brasil republicano, tampouco. A Revolução de Outubro de 1930, menos ainda. A ditadura de 1964 instrumentalizou-a. A redemocratização de 1985 só foi possível compondo-se com ela. O PT só chegou ao poder beijando-lhe a mão esquerda. O governo atual tem que beijar-lhe a mão que sobrou, a direita.
Nestor Duarte, jurista, publicou em 1939 "A Ordem Privada e a Organização Nacional", em que expõe a fragilidade do Estado em face do patriarcalismo e dos interesses privados que representa. Victor Nunes Leal, que foi jurista e ministro do Supremo Tribunal, cassado pelo regime militar, escreveu um livro esclarecedor - "Coronelismo, Enxada e Voto" (1948) - sobre as raízes profundas de nossas dificuldades para construir uma ordem política que nos una como povo em torno de um projeto de nação. Contra ele conspira o localismo municipal. Ramos diversos da mesma árvore do controle do que é público pelo privado.
Seja no presidencialismo de coalizão, seja no presidencialismo de cooptação, o que temos é a ordem política nacional subjugada pelo minimalismo municipal e regional. A ordem política brasileira é governada por um sistema de troca de favores entre os Estados, a União e os municípios, entre as grandes famílias e o Estado, um sistema de compra e venda de poder.
O Brasil nasceu como colônia de uma metrópole que não tinha meios para bancá-la. Dependeu, durante todo o período colonial, da ordem privada, de um sistema de poder controlado pelas grandes famílias, baseado numa economia predatória mediante tributos ao monarca que legitimava simbolicamente o saque. O poder privado construía a Colônia para o rei, que em troca legitimava o saque e aquilo que chamamos hoje de corrupção. Era uma recompensa do governo aos poderosos. No Brasil, de fato, tirando os disfarces, a corrupção nunca foi ilegal. Apesar de numerosíssimos honrados brasileiros, o país não existiria sem ela e do sistema de poder que lhe corresponde.
Os grupos e partidos verdadeiramente democráticos têm que conciliar com o oligarquismo. As desavenças conceituais destes dias no interior do PSDB são indicativas de quanto até ele teve que conciliar com o poder do atraso que é o núcleo desse sistema.
O aspecto mais problemático do minimalismo político brasileiro é que até os grupos, movimentos e organizações ditos de esquerda, se tornaram seus instrumentos. Os governos petistas sucumbiram ao fisiologismo próprio desse pacto de reciprocidade entre o Estado e o poder privado. Fizeram o mesmo que os outros fizeram. A corrupção de que o PT é acusado é indicador da fragilidade do partido popular e dos movimentos sociais em face da força do sistema. A coisa se repete. É com base em sua função fragmentadora que o partido e Lula querem voltar ao poder. Ao insistir em dividir o país em nome da ficção pseudossocialista de classe social, o partido prefere compor com alguns e impor a todos, hegemonia em vez de democracia.
O general Golbery do Couto e Silva, ideólogo do regime militar, em conferência da Escola Superior de Guerra para justificar a abertura política, chamava a atenção dos oficiais para o fato de que o bipartidarismo e o torniquete no sistema político abrira a porta para que a política fosse ocupada pela igreja. A política escapava de seu leito natural. Era preciso reverter o processo. Mas a reversão acabou capturada pelo sistema oligárquico subjacente à política brasileira.
Nestes dias, até os evangélicos estão eufóricos com a possibilidade de ampliar sua representação política com a eventual aprovação do Distritão. O fragmentário do consórcio de religiões isoladamente restritas e insuficientes para a pretensão da hegemonia política que pretendem ganhará mais força opondo à unidade do país a força da religiosidade fragmentária. Em vez de os religiosos aceitarem como limite e condição de suas ambições a precedência da unidade da nação, eles já nos governam mediante, justamente, cooptação. A praça pública está mais vazia do que deveria estar e os partidos políticos preferem a bajulação confortável dos púlpitos. Apenas uma nova versão da política de cabresto. Longe da grande tradição republicana do protestantismo. Até eles!
Fonte: Valor Econômico (25/08/17)

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Política e representação (José Antonio Segatto)

Mais uma vez, como tem ocorrido invariavelmente em todos os momentos de crise, a reforma política é aventada como panaceia para todos os problemas do sistema de representação e gestão política do País. Em suas diferentes versões, tanto em sentido estrito (mudanças na legislação eleitoral e de regulação partidária) como lato (alterações na forma de governo), seria condição indispensável para conformar o sistema político à governabilidade e à democracia. Uma das medidas primordiais seria a substituição do voto proporcional pelo majoritário/distrital para a eleição de deputados federais e estaduais.
Seus defensores justificam que seria a melhor maneira de aproximar os eleitores da política – a delimitação espacial das circunscrições eleitorais avizinharia representados e representantes, facilitando a cobrança de uns e forçando a prestação de contas de outros. Além disso, tornaria os pleitos menos custosos, eliminaria as deformações do sistema proporcional, em que o eleitor não tem controle de seu voto, e, o que mais importa, diminuiria a quantidade de partidos, excluindo mesmo as minorias e/ou as pequenas legendas, convertendo a governabilidade em algo mais exequível.
Essas razões que embasam as proposições em prol do sufrágio majoritário/distrital podem ser objetadas em muitos de seus aspectos: 1) a divisão das atuais circunscrições eleitorais (Estados) em unidades bem menores, correspondentes à quantidade de representantes nos Parlamentos, coloca o problema da delimitação de suas fronteiras pelo número de eleitores e a diferença entre os pleitos (federais e estaduais), com quantuns diversos de representantes; os critérios para o redesenho dos distritos podem implicar ordenações arbitrárias de privilegiamento de interesses locais ou regionais e oligárquicos. 2) As eleições majoritárias uninominais, ao eleger candidatos por maioria simples, eliminam minorias (mesmo que expressivas), tendem a resultar em governos unitários e subtraem atribuições dos partidos políticos, fomentando o personalismo. 3) A tese de que aproxima os cidadãos de seus representantes por meio da defesa de interesses locais é falaciosa; os atributos de um deputado federal é o de legislar e tratar de questões nacionais, e não de demandas particularistas ou regionais – o risco que se corre é o de conceber vereadores federais (ou estaduais) ou despachantes paroquiais. 4) É duvidosa a alegação de que o sistema de voto distrital diminui os custos das campanhas; os dados revelam que as eleições majoritárias, mesmo que limitadas espacialmente, são sempre mais caras que as proporcionais. 5) O argumento segundo o qual as eleições por distritos menores amplificariam a eficácia parlamentar e potencializariam a representação contém forte teor ideológico, pois, ao contrário, a probabilidade de gerar correspondência assimétrica entre os votos e a representação é bem mais elevada nos pleitos majoritários do que nos proporcionais – exemplos disso são os sistemas eleitorais distritais norte-americano, inglês, francês e outros.
Seria possível enumerar outros problemas do voto distrital/majoritário e suas impropriedades para a representação política democrática. Acredito, entretanto, que os já enumerados são suficientes para apontar que o sistema de eleições proporcionais, embora imperfeito, tem se mostrado mais equitativo para representar a soberania popular, conforme indicam as experiências – mesmo as propostas híbridas, mescla do voto majoritário uninominal com proporcional de lista fechada, como o sistema distrital misto, não revogam suas vicissitudes.
Ademais, as facções políticas que pregam como imperioso o voto majoritário/distrital o apresentam como uma grande novidade e remédio para os muitos males da política brasileira. Esquecem-se, como que numa amnésia histórica, de que tal tipo de sistemática eleitoral foi utilizada por um longo período no País – obviamente que em outras circunstâncias e/ou época –, no Império e na República, desde meados do século 19 até 1930. Seus resultados não foram nem um pouco promissores – atendeu cabalmente aos propósitos do domínio oligárquico e coronelista e às conveniências políticas de uma elite parcamente democrática.
Substituindo o sistema distrital, o de voto proporcional de lista aberta em circunscrições (distritos) equivalentes aos entes nacionais (Estados) vem sendo praticado há mais de sete décadas e, ao longo desse período, sofreu alterações diversas. É inegável que, não obstante certos aperfeiçoamentos, contém ainda muitas imperfeições. Por exemplo: o fato de o eleitor votar em fulano e, com frequência, eleger sicrano, votar no candidato do partido x e eleger o postulante do y (nas coligações); o constante encarecimento das campanhas e as interferências do poder econômico em seu financiamento; entre outras resultantes indesejáveis.
Esses problemas, entretanto, poderiam ser resolvidos, em parte, por medidas simples como a proibição de coligações nas eleições proporcionais e/ou sua substituição pelo mecanismo de federações partidárias; a troca da lista aberta pela lista fechada flexível, estabelecida em prévias eleitorais partidárias, etc. A estas poderiam ser vinculadas a fixação de uma cláusula de barreira para que o partido tenha direito ao funcionamento legislativo, acesso ao fundo partidário e ao horário eleitoral gratuito; de um fundo para financiamento público de campanhas eleitorais; a correção da desproporção de representação entre os Estados na Câmara e no Senado; etc. Tais medidas, indubitavelmente, seriam providenciais para salvaguardar a operacionalidade dos mecanismos de representação política e da soberania popular, afora regular o processo democrático, dando-lhe maior previsibilidade e legitimidade.
(*) José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp
Fonte: O Estado de São Paulo (19/08/17)

Cuidado, não pense antes de agir (Bolívar Lamounier)

Nós, brasileiros, somos mesmo um prodígio. Não contentes em acreditar que Deus é brasileiro, somos também propensos a nos vermos como um povo divino.
É certo que isso mudou de uns anos para cá, mas até poucas décadas atrás estávamos seguros de que iríamos usufruir de todas as coisas boas do mundo, naturalmente, sem grande esforço. Chego mesmo a pensar que aquele antigo otimismo ainda está por aí, disfarçado, só esperando a tempestade passar. Cedo ou tarde, o Deus brasileiro, a “mão invisível” ou, mais provável, um miraculoso “projeto nacional” nos libertará dessa angústia passageira que estamos vivendo.
A hipótese que venho de enunciar ajuda a compreender quão simplórias e confusas têm sido as ideias a que recorremos para enfrentar os desafios com que sucessivamente nos deparamos. Tudo se passa como se, no fundo de nossa mente, houvesse uma voz sempre a nos dizer: “Faça o que quer, não acredite no que está vendo ou ouvindo”. Ou, de uma forma mais taxativa: “Não pense antes de agir”.
Uma vista d’olhos no passado recente evidenciará a utilidade da hipótese que venho de enunciar para a compreensão da política brasileira. Duas ou três décadas atrás, era voz corrente que havíamos aprimorado o sistema presidencial de governo. Admitindo que governar com duas dúzias de partidos na Câmara era difícil, criáramos o “presidencialismo de coalizão”, um verdadeiro ovo de Colombo: bastava aquinhoá-los com ministérios e cargos, de uma forma mais ou menos proporcional; em troca, eles dariam ao Executivo todo o apoio de que ele necessitasse. Saía meio caro, mas compensava. Decorrida uma década, surgiram dúvidas; decorrida mais outra, concluímos que o ovo funcionava ao contrário do pretendido. Todas as dificuldades decorriam do “presidencialismo de coalizão”. Ele é que seria o mal dos males. Mas como poderia o nosso presidencialismo não ser de coalizão, se nossos partidos se multiplicam como coelhos, a tal ponto que nenhum consegue sequer 20% das cadeiras na Câmara? Todos os deputados então aquiesceram que aí havia realmente uma dificuldade. Urgia realizar uma reforma política a fim de frear a proliferação de partidos (até porque a maioria deles era sabidamente de araque). Adentramos, então, o labirinto das providências refreadoras: fim das coligações nas eleições legislativas, cláusula de barreira, voto distrital puro, voto distrital misto, etc., etc. E subitamente fomos parar – vejam os senhores que coisa extraordinária – no “distritão”, uma jabuticaba à altura de um povo que se vê como parte da divindade.
Outro dia me imaginei numa conversa imaginária com um dos adeptos desse sistema. Perguntei o que o levava a crer que o “distritão” reduziria o número de agremiações. Ele estufou o peito e me respondeu, com ar de notável convicção: “Elementar, Watson. O distritão liquidará todos eles. Os 26 hoje representados na Câmara serão reduzidos a zero. CQD”. Não me dei por achado. Voltando à carga, disse-lhe que, a meu juízo, atualmente só existe um partido: o PPSB – Partido dos que Pleiteiam Subsídios e Benesses. Com isso ele concordou: “Assim é, se lhe parece”, e lá se foi, apreciando seu cachimbo.
Com o dedo em riste, ordenei à voz que trazia na mente que se calasse e me perguntei se o que agora estamos fazendo sem pensar por acaso remontaria a alguma outra coisa que fizemos da mesma forma, isto é, sem pensar. É claro que sim. Tempos atrás, proibimos a participação de empresas no financiamento de campanhas eleitorais. E, convenhamos, que outra providência se poderia esperar de um país movido por um sincero e sempre renovado desejo de moralizar a política? É certo que havia um pequeno problema, mas para que servem os deputados e juristas senão para resolver pequenos problemas?
Qualquer cidadão que tenha deslizado o dedo indicador sobre as compilações do IBGE a respeito da distribuição da renda pessoal terá facilmente concluído que suprimir pura e simplesmente o financiamento empresarial inviabilizaria praticamente as contendas eleitorais. Outro problema de fácil solução: pegamos um bom naco do erário, apresentamo-lo como um fundo destinado a aprimorar nossas práticas democráticas e pronto! Pronto, nada!, terá a voz dito a algum deputado. “Assim, a frio, a opinião pública não vai digerir esse fundo. Precisamos acoplá-lo a uma reforma política profunda, meditada, abrangente.” Mas não seria mais simples voltarmos à mãe de todos os equívocos – a lei que proibiu o financiamento público – e alterá-la, instituindo registros online e tetos, ou seja, controles severos e transparentes?
Deve ser por essas e outras que o Brasil vai de vento em popa, mesmo admitindo que o vento não passe de uma suave brisa. Um século atrás acreditávamos que um país como o nosso, livre de tornados e vulcões, com um vasto território e uma inigualável dotação de recursos naturais, seria necessariamente o “país do futuro”. A essas condições básicas houve quem acrescentasse nossa índole pacífica, ou seja, o fato de a brandura de nossas relações sociais e raciais e a ausência de dissensões religiosas terem afastado em definitivo a hipótese de conflitos destrutivos entre o capital e o trabalho. Se tudo isso falhasse, tínhamos ainda um hedge colossal: a aceleração do crescimento econômico, sob a égide de um impecável sistema de planejamento.
Portanto, meus caros leitores e leitoras, não se preocupem com o vale de lágrimas que estão vendo e ouvindo. Pelo menos por enquanto, as reformas trabalhista e previdenciária serão como a viúva Porcina – aquela que foi sem nunca ter sido. Certo impacto a corrupção pode até causar no sistema político, mas fiquemos frios. Vamos agindo, passo a passo, e deixemos o pensamento para depois.
Fonte: O Estado de São Paulo (19/08/17)

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

De como pensando que se vai para Alemanha chega-se a Bolívia (Jairo Nicolau)

Dois mistérios rondam a discussão sobre as instituições brasileiras. O primeiro mistério refere-se à crônica insatisfação com o desempenho das mesmas. Sabe-se lá por que razão, as regras que regulam a escolha de representantes, os partidos políticos e o funcionamento do legislativo e do executivo são alvos de permanentes manifestações de descontentamento. Editoriais, comissões, plebiscitos, emendas constitucionais manifestam reiterada desconfiança quanto às opções constitucionais feitas pela carta de 1988. Ao submeter duas escolhas fundamentais (a república e o presidencialismo) a plebiscito e permitir a revisão por maioria simples – que acabou não ocorrendo –, a própria Constituição de 1988 talvez tenha contribuído para a criação de uma cultura política da insatisfação institucional.
A insatisfação com o desempenho das instituições está amparada em um diagnóstico pessimista, que acredita que temos as piores instituições representativas do planeta. O presidente Fernando Henrique Cardoso, em depoimento ao Jornal do Brasil, expressou a versão do subdesenvolvimento institucional brasileiro de maneira definitiva: –"Nossa estrutura política está atrás de outros países. Digo isso desde que sou senador. Nosso problema é que nosso sistema político está atrás da sociedade. A sociedade avançou mais, mudou mais depressa que o sistema político".
A conseqüência natural do diagnóstico do mau desempenho institucional é a proposta de uma vasta agenda de reforma política. Todos os aspectos do sistema representativo brasileiro foram alvos de projetos reformistas. As regras do presidencialismo foram modificadas (mandato de quatro anos para presidente e possibilidade de reeleição), enquanto o sistema proporcional que vigora nas eleições parlamentares é ameaçado a cada legislatura pela adoção de um virtual sistema distrital misto. Nesses últimos anos, falou-se de voto facultativo, de eleições para suplente de senador, de correções para distorção da representação dos estados na Câmara dos Deputados.
Aqui chegamos ao segundo de nossos mistérios: a adoção de um sistema misto nas eleições legislativas. Novamente, sabe-se lá por que, o distrital misto passou a aparecer como um consenso no meio jornalístico e político brasileiro. Talvez porque, apresentado superficialmente, ele realmente parece comportar o melhor da representação proporcional e da majoritária.
Na impossibilidade de discutir a natureza do que seja o distrital misto, pois cada proposta que carrega este nome fala de um modelo com características singulares, comento a proposta apresentada pelo senador Sérgio Machado.
Apesar de ser freqüentemente comparado com o sistema eleitoral da Alemanha, o projeto Machado é semelhante ao sistema adotado na Bolívia em 1993. Na Alemanha o cálculo para distribuição das cadeiras é feito no âmbito nacional (o que gera alta proporcionalidade), enquanto no projeto Machado o cálculo é realizado em cada unidade da federação. Outra diferença importante é que na Alemanha o número de cadeiras de cada unidade da federação na Câmara dos Deputados não é definido previamente e depende da taxa de comparecimento, enquanto no projeto Machado o número de representantes por estado é fixo.
O maior adversário da adoção de um sistema misto no Brasil é o ato de desenhar os distritos em cada unidade da federação (distritamento); menos pelas possíveis manipulações que porventura possam ser feitas para favorecer determinados candidatos e mais pela incerteza que produz. O sistema representativo brasileiro já tem um padrão de preferências razoavelmente estabilizado em termos eleitorais: alguns partidos têm força em determinados estados, determinados políticos têm redutos eleitorais em certas áreas do estado. O distritamento introduzirá uma variável abominada por qualquer político: a imprevisibilidade. A criação de um distrito eleitoral – que envolverá necessariamente a agregação de municípios médios e pequenos e a divisão de megacidades – interferirá em interesses eleitorais cristalizados. Alguns candidatos terão seus redutos diluídos em outros maiores, alguns partidos terão seus redutos divididos em um processo cujo resultado é imprevisível.
Gostaria de chamar a atenção para cinco possíveis efeitos (pouco explorados) da adoção do chamado sistema distrital misto no Brasil:
1.Complexidade do sistema. Sistemas mistos são mais complexos e tendem a dificultar sua inteligibilidade pelo eleitor. Na Alemanha, apesar da simplicidade da cédula, menos da metade dos eleitores sabem a função do voto dado na lista partidária. No Brasil, nas eleições gerais o eleitor necessitaria fazer até oito escolhas – marca praticamente desconhecida em outras democracias. Em um quadro de baixa escolaridade do eleitorado e de espetaculares taxas de votos em branco e anulados, um componente que torne a escolha eleitoral mais difícil, pode ter efeitos bastante negativos para a legitimidade de nosso sistema representativo.
2.Distritos eleitorais justapostos. Metade dos deputados eleitos pelo distrito e metade pela lista em cada estado significa que o número de distritos eleitorais seria diferente nas eleições para Câmara e para Assembléia Legislativa. No Rio de Janeiro, por exemplo, seriam 35 distritos com cerca de 285 mil eleitores na eleição para a Assembléia e 23 distritos com cerca de 434 mil eleitores para a Câmara dos Deputados. Pode-se imaginar o que isso produziria em termos de confusão para os eleitores e para a estratégia eleitoral dos partidos candidatos.
3.Distritos com um número de representantes muito diferenciado. Como as distorções da representação dos estados na Câmara dos Deputados não seriam corrigidas, o número de eleitores por distrito eleitoral variaria intensamente. Em números das eleições de 1998: um distrito eleitoral de Roraima seria composto por cerca de 43 mil eleitores, enquanto um distrito de São Paulo representaria 667 mil eleitores. Dividindo um pelo outro encontramos um raio de 15,5.
4.A possibilidade de criação de deputados com diferentes status. A eleição de deputados por dois métodos pode estimular diferenças marcantes na atividade legislativa. De um lado, os deputados eleitos nos distritos (com um determinado número de votos) teriam forte incentivo para cultivar laços com suas bases eleitorais – pode-se reforçar a tendência de alguns parlamentares a atuarem exclusivamente como vereadores federais, intermediários entre interesses locais e o executivo; de outro lado, os parlamentares eleitos na lista (sem voto pessoalmente identificado) teriam forte incentivo para cultivar laços com a vida orgânica do partido, pois isso garantiria uma boa posição na lista de candidatos da eleição seguinte.
5.Número excedente de cadeiras. Como ocorre na Alemanha, o projeto Machado prevê que um partido assegurará cadeiras a mais nas situações em que ele conquistar mais representantes nas eleições majoritário-distritais do que teria direito pelo cálculo proporcional. Tal mecanismo aumenta o número total de representantes da Câmara. A principal razão para a criação de cadeiras suplementares é o "voto quebrado" (o eleitor vota em um partido na lista e em outro no distrito). Como os eleitores brasileiros tradicionalmente votam em candidatos de diferentes partidos, pode-se prever uma alta taxa de cadeiras suplementares criadas em cada eleição.
Tentei mostrar neste breve texto que a escolha de um sistema que aparentemente combina o melhor dos dois modelos de representação (majoritário e proporcional), comporta aspectos pouco explorados por seus defensores.

Pelas razões apresentadas acima, acho que o sistema misto não é apropriado para o Brasil.
Podia terminar explorando um terceiro mistério: por que pouco se fala sobre o aperfeiçoamento do sistema proporcional de lista em vigor no Brasil desde 1946? Países sem graves crises institucionais, em geral, optam por fazer ajustes marginais no sistema representativo, ao invés de substituí-lo. Mas esse é um mistério para outra oportunidade.
(*) Professor de Ciência Política do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro - IUPERJ
Fonte: Conjuntura Política: Boletim de análise nº 06, 1999.

domingo, 13 de agosto de 2017

Uma falsa proposta de modernização (Fernando Abrucio)

Mais uma vez a história se repete como farsa no Brasil: o parlamentarismo aparece como solução mágica para resolver os problemas do sistema político. Já vimos esse filme antes, em 1961, e o resultado foi aumentar a instabilidade. Naquela época, os proponentes eram políticos e militares com medo da posse de Jango, tratado como comunista em meio ao clima da Guerra Fria. Ironicamente, agora é o ex-vice Temer que propõe a adoção do novo sistema, ou pelo menos, como diz ele, de algo similar aos modelos português e francês. Ao dizer isso, parece que o nosso atual presidente está querendo modernizar o Brasil, copiando os países desenvolvidos. Mas, por trás disso, há o desejo de manter o status quo, fingindo ser reformista.
A briga sobre o melhor sistema de governo, tomando como meramente dicotômica a relação entre presidencialismo e parlamentarismo, já não é vista por muitos estudiosos como verdadeira. Em termos empíricos, há muitas variações no funcionamento de cada sistema. Além disso, há outros elementos institucionais que afetam o desempenho político dos países: regras eleitorais, formas de organização partidária, mecanismos de "accountability" entre os Poderes, organização territorial do poder, relacionamento entre políticos e burocratas, procedimentos orçamentários-financeiros, para ficar nos principais. A crença de que basta optar pelo modelo parlamentarista e assim tudo dará certo, não tem base nas evidências científicas.
Colocar os casos francês e português no mesmo bloco institucional parlamentarista, ademais, parece-me, no mínimo, um erro conceitual. São duas experiências conhecidas mais como sistemas semipresidencialistas, mantendo várias das características de separação de Poderes que caracterizam o presidencialismo. Alguns estudiosos elogiam esse modelo, outros acreditam que ele possa conter os problemas de ambas as formas institucionais. Os momentos de coabitação na França, quando o presidente não tem maioria na Assembleia, são geralmente conturbados e difíceis.
Isso não quer dizer que o parlamentarismo seja em si ruim. Algumas de suas variações têm tido bons resultados em determinados países. Eu mesmo votei nele no Plebiscito de 1993, quando venceu o presidencialismo, e creio que o melhor legado daquele processo foi tornar mais complexo o debate institucionalista no país. Hoje é possível afirmar, com base nas pesquisas comparadas, que esse sistema pode contabilizar bons e maus momentos.
A instabilidade da experiência italiana retrata bem isso, do mesmo modo que o parlamentarismo não é uma panaceia universal para todos os males. Seguindo a mesma lógica, ao contrário do que diziam os líderes que defenderam a opção presidencialista, esse sistema não é garantia, em si, de maior sucesso na representação do povo. Afinal, Trump está aí para provar o contrário, ganhando a eleição tendo menos votos populares do que sua concorrente.
Mas o ponto central é que não há uma escolha evolutiva sobre o melhor sistema de governo. Isto é, dizer que a adoção do parlamentarismo torna um país mais desenvolvido institucionalmente é um argumento sem amparo científico. Acima de tudo porque as construções institucionais têm a ver com a trajetória dos países, com a combinação de suas instituições, com opções valorativas sobre as formas de representação política - um modelo mais proporcional ou mais majoritário - e, especialmente, com o diagnóstico específico sobre a situação política de cada nação.
Antes de optarmos por uma falsa solução institucional, é necessário conhecer porque escolhemos tal caminho. Alguns de seus defensores atuais têm dito que o parlamentarismo seria uma saída para os problemas do presidencialismo de coalizão. O primeiro temor que advém desse diagnóstico é acreditar que seja possível montar um governo, num país multipartidário como o Brasil, sem construir coalizões.
É inegável que há problemas no sistema político brasileiro atual, mas parte das críticas deriva de uma visão antipolítica. Qualquer aliança é vista como espúria. Deseja-se um governo forte, o que resultaria num Legislativo mais fraco.
Se isso acontecer, será difícil corrigir os erros ou descaminhos dos governantes, quando parcela substantiva de nossa crise deriva, ao contrário, da falta de fiscalização e "accountability" dos principais ocupantes dos cargos públicos. Coalizões, como qualquer divisão de poder, podem trazer dificuldades à governabilidade, mas sistemas que não têm qualquer princípio dessa natureza podem caminhar para alguma espécie de autoritarismo.
As coalizões podem ser criticadas porque elas são expressão de um multipartidarismo exagerado. Não há dúvida que o número de partidos relevantes no Congresso Nacional brasileiro extrapolou o bom senso, da mesma maneira que as regras de concessão de recursos públicos às legendas permitem uma proliferação de agremiações que só vivem para vender (às vezes literalmente) apoio. Porém, o remédio, como ensinavam os alquimistas medievais, pode virar veneno.
Talvez alguns prefiram o bipartidarismo, tal como vigorou na ditadura, ou, para mantermos o anseio pelo parlamentarismo, no Segundo Reinado, visto por alguns como um período de grande estabilidade. Esquecem de dizer que fórmulas como essa só geraram exclusão política e social no Brasil. Dadas suas várias heterogeneidades, sociais, culturais e de autonomia política local, é melhor para o país ter algum modelo mais proporcionalista, embora não necessariamente com alguns vícios daquele que vigora hoje.
O presidente Temer encontrou um argumento diferente para apoiar uma solução de viés parlamentarista: é preciso que Executivo e Legislativo trabalhem em harmonia, e não em guerra ou com o domínio de um sobre o outro. O presidencialismo à brasileira atiçaria, neste sentido, essas duas coisas a evitar. Vale a pena citar o seu raciocínio na integra:
"Você sabe que eu tenho muita simpatia pelo parlamentarismo, não é? Eu acho que o Brasil pode caminhar para isso. Veja: de alguma maneira, nós estamos fazendo quase um pré-exercício de parlamentarismo", disse o presidente ao Valor. "Vocês sabem que eu fui três vezes presidente da Câmara. O Legislativo era uma espécie de apêndice do Executivo. No meu governo, não. É parceiro do Executivo. E temos trabalhado juntos, o Executivo e o Legislativo".
A argumentação de Temer, em meio a uma crise que dura pelo menos três anos, é sedutor para muita gente. O parlamentarismo consagraria a forma que o presidente encontrou de gerar harmonia entre os Poderes e, digamos assim, trabalhar para o bem do país. Mas essa construção só foi possível, no atual momento histórico, porque boa parcela dos parlamentares e o próprio Temer fizeram um pacto para se proteger de denúncias da Justiça. Mais do que isso: o grupo dominante no governismo tende a tomar decisões, como a reforma política de plantão, que buscam estabelecer regras para dificultar a renovação política congressual.
Portanto, em vez de ser um instrumento para mudança, o parlamentarismo da era Temer serve para manter os interesses da classe política, em especial a chamada base governista, ancorada hoje principalmente no PMDB e no "Centrão". Eles são a cara daquilo que Temer está chamando de "pré-exercício de parlamentarismo". Ou seja, nada parecido com o requinte e o charme da experiência britânica, nem com a combinação de eficiência e "accountability" do modelo alemão.
Se o país quer atacar os males do presidencialismo de coalizão, precisa atuar sobre os seus verdadeiros problemas. Um dos maiores é sem dúvida o modelo de "spoil system" que vigora na administração pública, a partir do qual parlamentares governistas podem indicar e ajudar a escolher, sem exagero, milhares de cargos, sem que princípios de mérito e transparência comandem tal processo.
Essa prática, aliás, seria insustentável no parlamentarismo, que supõe um modelo de Estado mais estável, dado que possíveis trocas de coalizão dominante levariam a uma enorme instabilidade na alocação dos principais postos públicos. Será que os querem optar pelo parlamentarismo gostariam de perder o poder patrimonialistas de ocupar ou distribuir postos no governo federal?
Lembrem-se, caros leitores: a harmonia entre os Poderes no governo Temer foi alcançada basicamente loteando grande parte do Estado brasileiro, fortalecendo o deputado com esse instrumento, e dando poder de barganha ao presidente para evitar qualquer surpresa no Congresso. Assim, ambos os lados ficaram felizes, embora isso não tenha melhorado a qualidade das políticas públicas.
Reformar o presidencialismo brasileiro passa por enfrentar esse modelo de relacionamento entre política e burocracia. Isso pode ser feito dentro do próprio presidencialismo, junto com outras reformulações institucionais. Mas os aliados do presidente estão mais preocupados em criar novas regras eleitorais que aumentem a barreira de entrada a novos grupos e pessoas. E se for possível, alçar pessoas ao poder maior sem que elas passem por eleições presidenciais. O parlamentarismo proposto é para brasileiro ver e achar que virou inglês.
Fonte: Valor Econômico (11/08/17)

O moralismo esgotado (Paulo Delgado)

Queixoso e em disparada, apostando na agilidade verbal para fornecer réplica à ruína, o ator oco aperta o passo.
Os acontecimentos comprimem-se num único momento. Clássico da emoção massificada, o Cine Theatro da política nacional encena mais um ato da peça Um Inventário de Erratas”. O espetáculo esbarra na frieza da plateia, que treinou os ouvidos e já distingue grito de argumento. A habilidade virou isolamento. O balanço geral da temporada confunde os críticos: um grande sucesso de bilheteria, enorme fracasso de público.
Muitos imaginam a política um teatro de iniciados, sem ordem, sem lei. Mistura diversidade de auditórios à disposição dos mesmos atores que se arrumam para serem vistos como prima-donas realçando suas vantagens. E vão em frente sem se dar conta de que a demagogia é uma oferta irreal de intimidade. A tentação de infringir normas contamina os Poderes. As aberrações querem se impor.
Sem aversão ao sensacionalismo, senhor da ideia de que vive uma saga de encantado, o ator cru é imprudente se aplaudido, estúpido se vaiado. Despreza as condições espirituais da companhia que o levou ao palco.
Não prestou atenção à causalidade histórica que produziu o seu sucesso. Só tem olhos para quem se aglomera na frente do tablado. Quer driblar o destino que colheu. Nessa afabilidade valiosa e recíproca, devedor, vira comprador. Velhos conhecidos de comédias e tragédias já encenadas fazem sua destreza avançar mais do que o cuidado. E cercado de afeto incapaz de sentimento verdadeiro, a trupe de atores acrobatas, acha que o teatro do poder ensina mais do que vida fora do palco.
Apostando na força inesgotável do faz de conta, empanturra o cenário com excessos. Até que, acusado de impor um novo sistema moral à peça que representa, flagrado na glória de usar plumagem alheia, revela uma imagem insatisfatória de si mesmo. Fantasia que o consagra como diretor-ator-protagonista de um espetáculo refém do patrocinador.
Agora, que a cada dia um choque revela o contexto de todas as apresentações, diz que o teatro é de marionetes e não é ele que movimenta os cordéis. “Somos fantoches incompreendidos, bonecos populares manipulados por animais ferozes.” Dissimulando, ameaça com o velho espalha-brasas. Esconde o longo trecho que declamou, adocicado e sem doutrina, que o fez benquisto de todos os enredos.
Donos das companhias teatrais eleitorais não têm os mesmos problemas do público que os escolhe. Até zombam de quem os prestigia. Cargos escondem tudo, inclusive muitos vícios. Por isso, vendo a confusão que se avizinha na nova temporada, ele quer antecipar o carnaval para prevalecer a inversão permitida que domina seus festejos. Vamos lá, dominar o espectador, caravanas de delírio para controlar a realidade por meio de palavras.
Os candidatos a atores farão leis para conhecer o segredo do público, sem revelar o seu. O político-ator tornou-se um canastrão: ele não quer viver sob a consciência do outro, que o olha. Como não aceita prova de erro, que considera normal, não aceita juiz algum.
Sua origem pragmática recolhia sobras do que encontrava à esquerda, mas foram os fundadores moderados da companhia que a vestiram de ideologia original. Foram estes que se organizaram para vencer por pontos e assim cresceram. Quando, só, pisou no ringue, jogou fora a teoria, quis ganhar por nocaute. A incontinência jogou-lhe a toalha. Deslumbrado com a lascívia do aplauso, aceitou o que o levou à lona, ajudando a fazer de “político” um xingamento.
Sempre disponível, ficou por cima da situação como ninguém. E se deixou a coisa pior do que encontrou, é o único culpado. A mudança que o perturba é a mudança democrática. Passou a perna no pudor, singelo princípio elementar. Ventríloquo, foi condenado, por ampliar a voz do mau costume.
Atropelou argumentos de justiça social por estranha noção de distribuição de renda e infiltração de classe. Misturava intuições a uma fábrica de decisões improvisadas. Ofereceu a poderosos a aquiescência que aumentava o leite e o mel do privilégio; aos pobres, a condescendência, que lhes abria o mundo da dívida e da dependência. Pressupondo a qualidade moral de todos os seus atos, quer escolher quem vai julgá-lo.
Tudo no debate em torno de sua performance é “atmosfera”. No papel de corajoso ou maltratado, a dinâmica é mais de espetáculo que de esclarecimento. O objetivo é impressionar os inocentes e apontar o inimigo no juiz. Como prova de gratidão, conferindo ardilosa superioridade à decisão de se sujeitar a alguém, atribui ao povo a inquietante tarefa de julgá-lo. Ideia tola, se no tribunal de multidão dá Barrabás.
Desde Plutarco aprende-se mais com a queda de um cavalo do que com o elogio de um adulador. Talvez por isso o juiz, ao perceber que ele não estava a altura de si mesmo, concedeu-lhe fiança. Tirando da sentença o caráter implacável de suprimir a liberdade, negada a seus parceiros, deu-lhe o estribo para descer da sela e rever seu jeito de montar. Mas como não quer se afastar dos seus defeitos, viu nisso um estímulo para cavalgar seus fãs. Montou um passeio por currais eleitorais que o livre de ler a peça que o condena. Ele quer degustar seu papel como narcótico, supondo que a dor falsa de um ator é mais verdadeira do que a dor real do espectador. Mas quando a plateia descobrir que não é ela a condenada, nada oferecerá alívio à sua dor.
Nos burgos podres o ator do teatro antigo ouve excelências do resignado: nunca reclamei de ninguém que me usa com promessas. Não sou governista porque sou pobre, sou pobre porque sou governista.
Não é a primeira vez que a ambição destrói sonhos de quem toma o poder por um gigante sem perceber nada do seu enfeitiçamento. E diante do desconcerto que é ver o ator se orgulhar de não admitir ninguém que o corrija, a peça em que atua deve, sim, corresponder inteiramente ao original da sua vida.
Fonte: O Estado de São Paulo (09/08/17)

sábado, 12 de agosto de 2017

‘Há um acordo de autodefesa do sistema político contra o Judiciário’ (Marcos Nobre/entrevista)

Marcos Nobre diz que está sendo criado um novo Centrão em apoio a Temer, cujo principal articulador é o tucano Aécio Neves; Nobre é professor de filosofia na Unicamp e cunhou o termo 'peemedebismo'
Marianna Holanda (O Estado de S.Paulo)
Ao analisar o reflexo da votação na Câmara dos Deputados da denúncia contra o presidente Michel Temer por corrupção passiva, o professor de filosofia da Unicamp e cientista político Marcos Nobre aponta um “acordo geral de autodefesa do sistema político contra o Judiciário”. Para Nobre, o principal objetivo da base governista que votou contra o prosseguimento da acusação formal é se reeleger para “fugir de Curitiba”.
Ele vê o PSDB em um momento de divisão total, com duas estratégias distintas: com o senador Aécio Neves (MG) agindo como o “mais importante articulador do governo” e o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, costurando para que o partido desembarque da gestão Temer o mais rápido o possível.
“A sigla está rachada no meio e cada metade desceu para um lado do muro. É a primeira vez que o PSDB não vai poder subir no muro e fazer um arranjo interno. Alguém vai ser massacrado”, disse Nobre. Veja os principais trechos da entrevista ao Estado.
Como avalia a votação da denúncia contra Temer na Câmara e o placar de 263 votos favoráveis?
A questão não é o placar. Se a gente se fixar nisso, acha que essa votação era sobre o Temer. E não era. A votação era sobre duas estratégias para 2018 do campo de centro-direita, que hoje está próximo do governo. Uma é colar em Temer, porque vai ser uma das duas únicas fontes de recurso para eleição de 2018, já que não vai ter financiamento empresarial e que as doações de pessoa física serão limitadas. A outra fonte será o fundo (eleitoral, em discussão na reforma política). Então a estratégia é ter os partidos e usar a máquina governamental. Tanto em termos de cargos, quanto em termos de recursos. Por que a prioridade é renovar o mandato para fugir de Curitiba. A outra estratégia é: para ter de fato chance de ganhar eleição presidencial é preciso descolar do governo Temer.
Quem são os articulistas dessas estratégias?
Aécio na primeira estratégia e o Alckmin, na segunda.
Então, as chances do Temer de continuar na Presidência estão nas mãos do PSDB?
Não do PSDB inteiro, do Aécio. A sigla está rachada no meio e cada metade desceu para um lado do muro. É a primeira vez que o PSDB não vai poder subir no muro e fazer um arranjo interno. Alguém vai ser massacrado. Os alquimistas vão tentar liquidar os aecistas com base na ideia de que eles precisam ter uma candidatura presidencial viável. Já os aecistas adotaram a estratégia de colar no Temer e usar os recursos do governo para liquidar os alquimistas. Hoje o Aécio é o mais importante articulador do governo. O fato de Imbassahy ter entrado na Secretaria de Governo significa que existe um jogo ‘Aécio-Rodrigo Maia-Imbassahy’ para reorganizar o Centrão como uma base aliada do governo. Vai ser uma base menor, mas mais aguerrida.
É possível um dos lados dos tucanos ‘perder’ e continuar no partido?
É uma situação de guerra, em que não tem solução a não ser com a derrota do adversário e daí essa derrota tem que ser feita a tempo do adversário sair. Se a reforma política mantiver a exigência de filiação até 6 meses antes (das eleições), então é até abril.
Por que Aécio está articulando em favor de Temer?
Do ponto de vista eleitoral, Aécio não tem mais nenhuma perspectiva. Defender o Temer, para ele, é defender a si mesmo. No mesmo jeito, guardadas as devidas proporções, do Eduardo Cunha. Qual a diferença? O Eduardo Cunha, no governo Dilma, foi para oposição, foi pro confronto. O Aécio, pelo contrário, vai ser o Eduardo Cunha do governo Temer do lado de Temer.
Após a denúncia ser barrada, Temer ficou refém da Câmara?
A noção de refém acho que é ruim, no caso do Temer, porque parece que está preso. E ele está muito bem onde está, junto com o Congresso. O Luiz Felipe Alencastro (professor de Economia/FGV) chamou de “parlamentarismo troncho”, mas eu acho que não chega a ser um parlamentarismo. É um acordo geral de autodefesa do sistema político contra o Judiciário. O que o Aécio está propondo é organizar todas essas forças num “grupão” pra defender o governo. Então é um novo Centrão.
Como Aécio consegue articular essa base em torno dele?
Ele tá morto do ponto de vista eleitoral, mas não do ponto de vista do jogo político, porque há justamente um descolamento total do sistema político em relação à sociedade. O sistema político está girando em autodefesa, completamente descolado da sociedade. E a lógica dele é assim: eles têm o monopólio da representação – se quiser ser candidato, tem que se filiar a um desses partidos –, o monopólio dos recursos – os grandes partidos; e também querem cargos e recursos do governo. Porque, com isso, eles têm uma vantagem competitiva gigantesca em relação a qualquer outro que aparecer. Ou seja: o sistema está se organizando para impedir que algo novo surja. Que é o que todo mundo na sociedade tá esperando, mas estão fechando todos os campos para impedir que o novo apareça.
A reforma política é um exemplo disso?
Sim, ela te dá o Fundo Partidário, mas os recursos do governo fazem uma diferença enorme se você não tem financiamento empresarial.
Mas continuar com o governo agora não é uma forma de ficar com a imagem ruim para 2018?
Sim, mas para eleições presidenciais. Estaduais não. Olha o Amazonas. Tem um candidato novo? Os caras tão contando que esse governo Amazonas vai ser o modelo que vai ter em 2018. Ou seja: vocês não gostam da gente, mas vocês vão ter que escolher entre o que tem aqui. Porque a gente vai barrar o novo.
O apoio a Temer é uma forma de conter a Lava Jato?
Também. Temer e o Aécio são bons para esse sistema, porque ninguém entende a situação em que estão os outros como eles. Vão fazer de tudo pra se defender e defender quem pode ser alcançado pela operação.
Qual a estratégia deles para conter a Lava Jato?
Não tem como parar a Lava Jato, mas tem como desacelerar, jogar óleo na pista... O problema de todo mundo é chegar em 2018 elegível. Renovou mandato, você tem quatro anos de imunidade. Temer ou Aécio, se puderem, vão fazer de tudo pra desacelerar a Lava Jato. Desfazer a força-tarefa, essa é a primeira. Se ninguém falar nada, aí vai pra segunda, terceira. Não significa que vão conseguir. Mas ter alguém que está preocupado com isso no poder, estar com essa pessoa é o melhor lugar para se estar.
Temer vai continuar “sangrando” até 2018?
A chance dele sobreviver (até as eleições de 2018) é muito alta. Mas pode aparecer uma denúncia e pode ter movimento de rua de novo. Temer cai se tiver movimento de rua. A única coisa que faz você ter uma mudança dentro do sistema político tão radical como tirar um presidente é movimento de rua. Outro fator é quando o sistema político começando a comer a si mesmo, sem participação da sociedade, que é o que vinha acontecendo com o (Rodrigo) Maia.
Como foi isso?
No momento em que surgiu a possibilidade de ter o afastamento do Temer e ele assumir, é evidente que Maia aproveitou da situação. Com essa possibilidade, ele se colocou como um player num nível muito mais alto desse novo Centrão. Foi tentar ampliar o espaço do DEM. Aí veio o episódio do PSB e o Temer colocou Maia no lugar dele. Mas isso só foi possível porque o Aécio entrou no jogo, com tudo pra fazer esse novo “blocão” de apoio ao Temer. Sem isso, acho que dificilmente o Temer teria conseguido resistir.
Essa nova base fica mais coesa para uma eventual segunda denúncia contra Temer?
A ideia é essa. Passou a primeira, as outras passarão também. Porque você já riscou uma vez, risca uma segunda, uma terceira.... Então, se não tiver movimento de rua, o sistema político continuará operando fechado em si mesmo.
(7 de agosto de 2017)