Já houve época em que, no Brasil, ensaístas competentes e eruditos enriqueciam a cultura política do país com estudos seminais que iam ao nó de nossas incômodas contradições para nos explicar o que achávamos que éramos e não conseguíamos ser. Euclides da Cunha, o maior dos nossos ensaístas, explicou-nos com estilo e elegância o mais brutal dos nossos enganos em "Os Sertões".
Republicanos que proclamaram uma República sem povo, constituída de uma humanidade servil, recém-saída da escravidão, analfabeta e ignorante, declararam guerra a uma comunidade de gente simples, do sertão remoto. Era, em grande número, descendente de índios tapuias. Gente refugiada na religião para, na fé, se proteger das iniquidades da política e da economia, interpretadas como sinais mais do que evidentes do fim dos tempos e da proximidade do fim do milênio. Os republicanos de praia inventaram um inimigo fictício, massacraram os devotos de uma monarquia milenarista para fazer de conta que haviam feito a revolução do progresso em nome da ordem.
São também esclarecedores seus livros "Contrastes e Confrontos" e "À Margem da História", conjuntos de ensaios sobre o que, aos olhos de hoje, podemos definir como a nossa hipocrisia constitutiva, a dos opostos refazendo-se mutuamente: os liberais opondo-se ao fim da escravidão e os conservadores empenhando-se em encerrá-la, ainda que ao seu modo, para dar lugar à terceira escravidão, a da peonagem na Amazônia. Ou, já nos tempos de agora, um capitalismo delinquente, viabilizado pela facção de direita da esquerda. Nos meus tempos de estudante universitário, os últimos militantes da esquerda juvenil diziam que, com uma esquerda dessas, não é preciso direita. Euclides já mostrara que somos o país dos avessos.
Pouco adiante, já nas primeiras crises da República, Alberto Torres, em dois robustos e luminosos ensaios, na perspectiva conservadora, analisou as perdas e insuficiências da organização política nacional. Concluiu que, na escravidão, ao menos tínhamos ordem. Ironizava aquela frase positivista colada sobre o lábaro que a bandeira ostenta estrelado: "Ordem e Progresso". Creio que foi Millôr Fernandes, um de nossos maiores pensadores, quem disse: "Desde que tenhamos ordem, não tem importância que não tenhamos progresso". Ou teria sido o Barão de Itararé, outro pensador humorista?
A verdade é que não temos os dois. O sempre lúcido Antonio Candido disse, mais de uma vez, que nossa crítica social passa pelo humor e pela troça. Digo: e nisso ficamos. Ou Tiririca não é uma significativa nota de rodapé nas linhas tortas de nosso cinismo político? A política esterilizou-lhe o humor, triste evidência de um teatro de fundo de poço.
Nessa embrulhada histórica que nos oprime há muito, o Brasil separa o desenvolvimento econômico do desenvolvimento social. O povo não conta. Não é apenas a falta de caráter de alguns, mais numerosos do que nos diz nossa vã ingenuidade, que explica a corrupção constitutiva de nosso sistema político. A partir do momento em que a ordem política foi concebida para manter o povo à margem, a porta da desordem foi escancarada e o convite à esperteza na política foi instituída.
A República não só inventou um republicanismo falso e oligárquico como inventou um povo de ficção, completamente artificial, prisioneiro dos currais da dominação retrógrada. Periodicamente, as porteiras dos currais são abertas para que os inocentes úteis possam ir às urnas renovar mandatos ou eventualmente convocar esse ou aquele dissidente para que possamos fazer de conta que temos ordem. A imensa multidão dos condenados ao castigo do voto condicional, o voto sem alternativa de um sistema político de cumplicidades que nos torna todos acólitos do que nossa consciência repudia.
Isso, obviamente, não é coisa de agora. Para dizer tecnicamente, é estrutural. Tem raízes profundas, na escravidão que formou nosso caráter, nossos medos e nossa cultura de sujeição. Fomos historicamente educados para temer, obedecer e calar. Não é acidental que na história deste Brasil as revoluções sejam revoluções de quem manda, e não de quem é mandado. Fernando Henrique Cardoso, num esclarecedor ensaio sociológico dos anos 70, chama nossa atenção para o fato de que o Brasil independente não nasceu de uma revolução nacional, uma revolução do povo. A Independência foi feita pelo próprio Estado, no herdeiro da coroa proclamando a independência da Colônia, uma revolução sem povo, as funções da sociedade civil usurpadas pelo Estado. Somos uma coisa à luz do dia, nas ruas, e outra coisa no escurinho do poder.
Não é estranho que, como Alice, de Lewis Carroll, quanto mais depressa caminhamos, mais longe ficamos.
Fonte: Valor Econômico (26/05/17)
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