Não é novidade que a reflexão política, vez por outra, pule o muro do terreno de disciplinas vizinhas em busca de inspiração tanto para a projeção de eventos políticos ordinários e corriqueiros, como para a construção de grandes modelos de equilíbrio institucional. Se as microanálises orientadas pela matriz da escola da escolha pública e da teoria dos jogos hoje passeiam de mãos dadas com a matemática e a álgebra em suas modelagens, no passado era a geometria quem encantava filósofos do calibre de Thomas Hobbes, dando lastro e inspiração a alguns dos melhores escritos sobre a natureza do Estado.
Dito isso, não parece heresia ou quebra com a tradição analisarmos a conjuntura do país - e projetarmos os anos vindouros - por meio de recurso a uma figura geométrica. Em breve síntese do resultado das pesquisas desenvolvidas no campo da ciência política nas últimas décadas, podemos afirmar com algum grau de certeza que democracias longevas se ancoram em pelo menos três suportes:instituições políticas legítimas e eficientes, crescimento econômico e participação cívica. Guardaria, assim, a boa sociedade analogia com um triângulo - equilátero, no melhor dos casos -, onde a economia, a política e os valores constituiriam seus vértices.
Nessa linha, cabe aqui uma afirmação, seguida de duas indagações: a) a crise em curso no país traduz-se em inédito encurtamento - além de perda de densidade e capacidade de vertebração - de dois desses vértices - a economia e a política -, sobressaindo, como resultado, o espaço reservado ao campo dos valores: a moralização e judicialização do debate público, a antipolítica na sua versão gerencial ou religiosa e a explosão das demandas identitárias são indicadores de um espaço tão novo quanto superdimensionado - à direita, prioritariamente, e à esquerda, residualmente - pela agenda dos valores; b) se esse quadro configura situação nítida de desequilíbrio, em que medida é razoável esperarmos por um ajuste dos três vetores no curso do atual governo?; c) E, mais importante, qual cenário podemos projetar para o processo eleitoral, em 2018, caso os vértices de nosso triângulo permaneçam em situação de desajuste?
Relembrar o lugar de centralidade do primeiro vetor - a economia - na vida política é exercício para lá de trivial e não requer esforços comparativos. Limitando-nos a exemplos do nosso próprio quintal, no Brasil, dois planos de estabilização monetária - o plano Cruzado e o plano Real- resultaram em vultosos dividendos políticos; tiveram por desdobramento, como se sabe, a eleição de 22 governadores de Estado, no primeiro caso, e de um presidente da República, no último. Mais recentemente, os índices de popularidade de Lula e de Dilma Roussef estiveram intimamente relacionados à oscilação dos preços das commodities no mercado internacional e ao poder de comprar das camadas populares e dos segmentos médios.
Ungido ao Poder com a expectativa de recobrar a confiança dos agentes econômicos - e, portanto, o investimento -, Temer e sua equipe seguem a dura cartilha da ortodoxia monetária que, ao preço de contração da atividade econômica e do aumento do desemprego, tem por propósito declarado levar a inflação ao centro da meta já em 2017. A projeção da inflação em descenso em 2018 acompanhada por aumento tímido nos investimentos, inibirá, contudo, os dividendos políticos do ajuste e com dificuldade se produzirá contexto favorável ao "voto econômico" - quando o eleitor recompensa com o voto ganhos pretéritos ou expectativas futuras de renda.
Se a economia dificilmente terá, então, protagonismo no jogo de 2018, desempenhando na melhor das hipóteses papel de coadjuvante no mercado dos votos, a carta da política tradicional poderá também estar fora do baralho. Rechaçada pelas ruas em 2013, acuada pelas denuncias da Operação Lava Jato, nossa elite política se desintegra de forma inédita e alarmante. A pulverização das legendas partidárias no Congresso, a fragmentação das lideranças no campo da oposição, notadamente no interior do PSDB, são indícios mais do que suficientes do processo de desintegração de nosso campo político. Difícil, portanto, não ver a eleição de 2018 como cenário de disputa fragmentada e ao mesmo tempo aberta; indefinida em relação não só aos resultados, mas sobretudo à extração e origem dos contendores.
Num cenário em que a economia e as forças políticas tradicionais se mostrem incapazes de mobilização da sociedade, abre-se campo fértil para o agenciamento da pauta de valores. Entre nós, como se sabe, os valores capazes de mobilizar tanto os segmentos populares como os setores médios têm extração fortemente conservadora: endurecimento penal, criminalização do aborto, escola sem partido e, mais recentemente, a negação da política e sua equalização à gestão empresarial, fazem parte de um pacote de valores hegemônicos que, necessariamente, exigiriam como contraponto liderança vertical e dissociada do establishment. Em nosso caso, e diferentemente, portanto, do exemplo dos EUA, o terreno dos valores, e não a economia, aparece como o terreno fértil para o florescimento de potenciais outsiders.
Com um certo tom de pessimismo, temos de concluir que nosso triângulo de Bermudas desajustado em que hoje se ancora o país, onde a economia e a política se veem à deriva, é de difícil ajuste no curto prazo. Na ausência de coordenação entre os atores políticos, de um lado, e de evidências substantivas de recuperação da atividade econômica, de outro, a persistência desse desajuste será caldo de cultura para gestação de franco-atiradores embalados pelos piores valores.
(*) Nelson Rojas de Carvalho é professor associado do PPGCS/UFRRJ, pesquisador do Observatório das Metrópoles/Ippur/UFRJ
Fonte: Valor Econômico (30/01/17)