quarta-feira, 27 de março de 2019

‘Presidente não demonstra capacidade de articulação’ (Sérgio Abranches/entrevista)

Passados quase três meses desde sua posse, o presidente Jair Bolsonaro não mostra forças para fazer uma “aglutinação” no Congresso, agravando a tensão entre Executivo e Legislativo, avalia o cientista político Sérgio Abranches. “Existe uma percepção de que coalizão é igual corrupção. Não é. O que está posto agora é ver como formar uma nova coalizão. Isso implica um projeto de governo bem articulado, um presidente que assuma a liderança disso e que queira formar maioria em torno de ideias que unam e não desunam.” Autor do termo “presidencialismo de coalizão” nos anos 1980, Abranches afirma que “não faz sentido” o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ser articulador político de qualquer agenda do governo. “Quem tem de fazer articulação é o presidente e suas lideranças, e elas não estão dando demonstração de ter capacidade para essa articulação.”
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Como o sr. vê o cenário político?
A eleição de 2018 encerrou o primeiro ciclo do presidencialismo de coalizão, que organizou governo e oposição de 1994 a 2014. Em 2018, houve a substituição de um sistema partidário por outro, um realinhamento. Todos perderam com a eleição de 2018, com exceção do PSL. Esse ciclo caracterizado pelo duopólio na disputa pela presidência entre PT e PSDB, que também organizava tanto governo quanto oposição, começou a dar problema em 2014, teve o auge da crise com o impeachment em 2016 e se confirmou em 2018 quando esse sistema que estava em exaustão se encerrou. O que vemos agora são os resultados disso.
• Quais as consequências disso?
Do ponto de vista de organização de governo no Congresso, uma das principais dificuldades é a pulverização. Em 2002, as cinco maiores bancadas representavam 67% do Congresso. Em 2018, os cinco maiores partidos têm 41% das cadeiras. O maior partido é de oposição, o PT, vivendo uma crise interna, e o segundo é o PSL, um partido invertebrado, que tem dado demonstrações de que não tem capacidade de ser pivô de uma coalizão em torno da qual os outros se aglutinam.
@ Por que falta essa capacidade ao PSL?
Desde o início, Bolsonaro disse que não ia fazer coalizão e não fez o menor esforço para montar maioria no Congresso. Segundo, porque o partido não tem vertebração, ainda precisa se demonstrar como uma organização partidária com ideias. Em terceiro, porque a liderança do Bolsonaro não é suficientemente forte para fazer uma aglutinação no Congresso. Nenhum dos requisitos de estabilidade de governabilidade está amparado: um presidente minoritário, um partido inorgânico, a falta de uma coalizão articulada, relações tensas entre Poderes.
• Como sair do impasse?
Existe uma percepção de que coalizão é igual corrupção. Não é. O que está posto agora é ver como formar uma nova coalizão. Isso implica um projeto de governo bem articulado, um presidente que assuma a liderança disso e que queira formar maioria em torno de ideias que unam e não desunam. A crise política tem a ver com o fato que o primeiro ciclo se esgotou e não houve nenhum esforço por parte da liderança vitoriosa de levar adiante um novo ciclo, de estabelecer novas bases para o relacionamento entre Legislativo e Executivo.
• Como a prisão do ex-presidente Temer impacta esse contexto?
Ela acontece num momento de acirramento do conflito entre o Legislativo e um clima de tensão dentro do MPF, do STF e de juízes de primeira instância. Vejo que a magnitude política da prisão de Temer se torna mais um ingrediente da crise política. Dá mais munição para os partidos, sobretudo o MDB, fazerem pressão no Congresso, para criar mais impasses e obter mais concessões do Executivo. O MDB, que hoje tem 34 eleitos, pode fazer muita pressão, exatamente por não haver nenhum partido grande e pelo PSL não ter força nem experiência. Todo mundo perdeu poder e o próprio presidente, ao não ser capaz de exercer uma liderança unificadora e perdendo popularidade, também fica sem espaço para dar solução a essa pulverização do poder. Os três Poderes estão dominados por um processo conflituoso que tem a ver com questões políticas fundamentais associadas a essa maneira pela qual se esgotou esse ciclo.
• O que a perda de popularidade representa para o governo?
Quanto menor a popularidade, menos capacidade tem de atrair apoio no Congresso. O que atrai é popularidade, carisma. Bolsonaro foi eleito por um conjunto muito heterogêneo de eleitores. É difícil atender expectativas tão diferentes. Até agora, não atendeu nenhuma delas, a não ser a questão das armas (facilitou a posse), que é controvertida.
• Como fica, por exemplo, o projeto da reforma da Previdência?
Vai sofrer muito mais por conta da perda de popularidade. Se não surgir uma forma nova de ativar as decisões no Congresso, acho que a reforma terá muita dificuldade. Não faz sentido o presidente da Câmara ser articulador político de qualquer agenda do governo, mesmo que seja do interesse dele. Quem tem de fazer articulação é o presidente e suas lideranças, e elas não estão dando demonstração de ter capacidade para essa articulação. Então, acredito que essa reforma está no limbo, à deriva.
(*) por Paulo Beraldo/O Estado de S. Paulo/24 de março de 2019

Tuítes, bíblias e balas (Angela Alonso)

“Em nome da Santíssima Trindade” —assim se abre a primeira Constituição brasileira, de 1824. Seu miolo continha uma religião de Estado. Visava menos a exclusão inquisitorial que operar como meio de controle social.
A Igreja Católica tocava os serviços estatais de registrar quem nascia, casava, morria. Votava-se em paróquias e se moldavam corações e mentes cristãos em capelas e escolas. Os religiosos, mais que Deus, estavam em toda parte, a política incluída.
Ainda no Segundo Reinado, o tema foi à berlinda. Secularizar o Estado virou bordão em discursos parlamentares, artigos de imprensa e projetos de lei de modernizadores.
Um argumento caracterizava o Estado teocrático como típico de tempos de obscurantismo, a Idade Média, e advertia que a sociedade moderna se alicerçava na ciência, em vez de na fé revelada. O ministro da Educação conhece o debate: no mestrado estudou alguns de seus participantes positivistas.
Outra linha era a liberal clássica, da liberdade de consciência. A tolerância à religião dos outros seria a única maneira de se proteger da imposição da crença alheia. Liberal —e agora autodeclarado evolucionista— o ministro da Economia deveria concordar com o postulado.
O Império caiu, os dois raciocínios seguem de pé.
A República inscreveu em sua Constituição inaugural a laicidade do Estado, deixando a religião como decisão de foro íntimo. A vigente, de 1988, registrou em seu preâmbulo a expressão “sob a proteção de Deus”, mas sem impor a ninguém o exercício de uma fé particular, menos ainda o proselitismo religioso por meio de política pública.
A anunciada número dois da pasta da Educação disso diverge do texto constitucional. Em entrevista à TV Band, em 2014, Iolene Maria de Lima explicou sua pedagogia: “uma educação baseada na palavra de Deus, [...] onde a geografia, a história, a matemática vai [sic] ser vista na ótica de Deus [...]. O aluno vai aprender que o autor da história é Deus, o realizador da geografia é Deus. Deus fez as planícies [...], Deus fez o clima, [...] o maior matemático foi Deus”. Seu objetivo era ver “toda a disciplina do currículo escolar organizada da ótica das escrituras”.
Lima dirigia então o colégio Inspire, em São José dos Campos. Sendo escola privada, é escolha particular ali depositar reais e cérebros de filhos.
Na escola pública, a opção não é facultativa. A escolarização estatal beneficia sobretudo aqueles a quem faltarão recursos para fugir da doutrinação religiosa compulsória.
E, mais grave, se a escola pública seguir tais princípios ferirá de morte a laicidade do Estado.
Mesmo que Lima não tenha sido confirmada como secretária-executiva do Ministério da Educação, a simples cogitação de perfil como o seu para cargo de tamanha relevância mostra que o governo não traz sua religiosidade peculiar apenas no slogan.
Há aí um projeto de escolarizar as próximas gerações de acordo com certo credo. Uma pedagogia autoritária, capaz de penetrar órgãos governamentais e orientar nomeações, licitações e compras de material didático.
É paradoxal que os que acusam adversários da lavagem cerebral do “marxismo cultural” se empenhem em inculcar seus próprios valores nos menos habilitados para questioná-los —as crianças, que ainda estão formando convicções.
Proselitismo agressivo, que trafega para além das cartilhas. Prolonga-se em braços armados contra infiéis inimigos da pátria, como o atesta a proximidade governamental com as milícias, o empenho em armar a população e a condescendência a extermínios sumários.
Soa cacofônico falar em Deus e pregar a violência, mas a história está cheia de guerras religiosas. Nelas, ganham-se almas e vendem-se armas, o que pode rimar tanto com desígnios divinos quanto com negócios terrenos.
A questão é até quando o estrato tão alto quanto diminuto que gere os mercados vai pagar essa elevada taxa de administração para obter seu ansiado “ambiente de negócios”.
Se os bolsonaristas de coração não caírem em seis meses, como previu seu astrólogo, podem avançar no que, em Washington, Paulo Guedes chamou de revolução. Talvez o ministro tenha sido apenas irônico, crendo-se no controle do exército dos eleitos, ou tarde em admitir que, na política, como na interpretação dos textos sagrados, seus aliados são literais.
Nada garante que não visem mesmo criar sua “nova era” teológica e belicosa, missionários empenhados em revolucionar as mentes com tuítes, bíblias e balas.
(*) Angela Alonso, professora de sociologia da USP, preside o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. É autora de “Flores, Votos e Balas”.
Folha de S. Paulo/24 de março de 2019

Diálogo é o caminho para a paz (Fernando Abrucio)

O homem é o lobo do homem, dizia o filósofo Thomas Hobbes. Com essa frase, ele mostrava que a violência é parte integrante da espécie humana. Porém, Hobbes achava que seria possível garantir o direito à vida das pessoas, o mais elementar objetivo dos indivíduos, caso o Estado tivesse o poder necessário para garantir a paz. Quando ocorrem tragédias como a da escola Raul Brasil, em Suzano, fica a pergunta: o que os países podem fazer hoje para evitar a morte coletiva de jovens, aqueles que simbolizam o futuro de nossos sonhos?
Obviamente que não haverá uma solução única e nem perfeita para resolver um problema tão complexo como a violência social, especialmente a forma cada vez mais pulverizada que atinge espaços públicos que não são lugares de guerra, como escolas, templos religiosos, estações de trem ou ruas movimentadas. Todas essas matanças em massa são tristes e cruéis, mas queria aqui concentrar-me num grupo, o dos jovens, para realçar a multiplicidade de causas e respostas que devem ser colocadas na mesa de debate.
Não se pode pensar em políticas públicas e ações sociais mais amplas sem ter um diagnóstico do fenômeno que se quer combater. Partindo desse pressuposto, deve-se lembrar que a juventude é a fase da vida marcada por sentimentos contraditórios e pela difícil formação da personalidade, tudo isso alimentado por uma grande energia. Os jovens se sentem fortes e livres para afirmar suas posições, para lutar por justiça e causas coletivas, ao mesmo tempo em que se sentem frágeis o suficiente para terem baixa autoestima, gerando uma sensação de abandono em meio à multidão de pessoas com quem convivem cotidianamente.
Esse estado de espírito que acompanha a juventude não vem de hoje. Sou de uma geração, a da década de 1980, que é conhecida por ter usufruído e participado da redemocratização do país. Que lutou por mais liberdades, não só políticas, mas no campo dos costumes. Que se organizava em torno de bandeiras sociais mais amplas. Mas toda essa lista positiva não pode esconder as inseguranças que marcavam a vida pessoal, os medos da passagem para a vida adulta. Havia o desejo da paz, mas também o da violência como meio para responder aos problemas que não compreendíamos ou que nos pareciam injustos - como dizia uma música do Legião Urbana, "a violência é tão fascinante e nossas vidas são tão normais".
À profusão conflitiva e contraditória de sentimentos juvenis somou-se, no mundo de hoje, uma enorme transformação tecnológica, que permite o acesso à informação e à comunicação como nunca antes ocorrera na humanidade. Os jovens estão a todo momento se comunicando, vendo novas informações, verificando o que o outro está postando e, sobretudo, procurando saber o que os demais pensam sobre eles.
A necessidade de reconhecimento é um dos grandes balizadores da vida humana. Com a revolução comunicacional, essa procura pela aceitação tornou-se insana, o que fortalece comportamentos de manada e a polarização social. Nos mais jovens, todavia, esse fenômeno é ainda mais exacerbado, porque eles estão passando pela atribulada fase de formação da personalidade, e o reconhecimento se torna a sua maior angústia, o que leva uma grande parte da juventude a comportamentos extremos, desde a depressão e bulimias, passando pela busca por um grupo extravagante ou uma ideologia radical, até chegar à apologia da violência como forma de resolver os problemas.
Claro que esse quadro geral é modelado pelo contexto de cada lugar. Dilemas raciais e a existência de imigrantes, por exemplo, aumentam o potencial risco de confronto advindo de grupos extremistas. A desigualdade social é outro fator que afeta a forma como as anomalias do reconhecimento juvenil se manifestam. Num mundo em que as mídias se tornam mais acessíveis a todos, em que se apresenta um leque enorme de produtos e modos de vida para serem consumidos, inocula-se uma enorme frustração social nos jovens mais pobres para os quais não foram oferecidas oportunidades.
A maneira como as políticas públicas e os líderes políticos e sociais lidam com questões que afetam a juventude é decisiva. Exemplos e valores dos adultos são peça-chave na determinação do comportamento dos mais jovens. Além disso, a forma como os governos lidam com questões como segurança pública, educação, esporte e cultura têm um impacto enorme na construção do pensamento juvenil.
Dito isso, o cenário brasileiro é preocupante. Jovens pobres e pretos não têm a garantia hobbesiana de suas vidas, e são mortos cotidianamente pelos criminosos ou pela polícia. A evasão escolar entre aqueles que têm de 15 a 18 anos é de cerca de 40% do total, produzindo um segmento enorme de "nem-nem" - não estudam, não trabalham e perdem assim a oportunidade de ter um futuro melhor. As atividades culturais e esportivas são insuficientes para captar a massa de jovens que anseiam por elas.
E para além das políticas públicas, ou até as alimentando, nossas elites politicas estão propondo que a melhor vacina para a violência é mais violência. A lista de ideias aqui é deprimente: vamos armar a todos, prender os jovens o mais cedo possível, proteger os ricos condomínios com muitas grades e acreditar que as milícias têm como principal objetivo manter a ordem e a paz social. Com esse arsenal de propostas beligerantes e segregacionistas, o resultado mais provável será aquele que Hobbes já estudara no século XVII: a guerra de todos contra todos, em que nos tornaremos, parafraseando o grande filósofo inglês, mais incultos, miseráveis, violentos, desgraçados e solitários.
Não há, como dito no início, uma única causa nem resposta ao problema da violência entre e contra os jovens. Não obstante, três grandes medidas podem orientar uma reação governamental e social para reduzir o risco de tragédias como a da escola de Suzano. Em primeiro lugar, precisamos, sociedade e líderes políticos, propor uma cultura de paz como forma de gerir e dirimir os conflitos sociais. As falas e as atitudes da primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, após um "lobo solitário" matar muçulmanos que estavam em mesquitas, são a prova de que é possível combater a barbárie com civilização. Ela propôs a tolerância e o desarmamento das pessoas como uma forma de se evitar a vitória da violência, em vez de defender como antídoto uma sociedade mais segregada e beligerante.
É evidente que as declarações da família Bolsonaro, do presidente ao deputado federal, passando pelo vereador e o senador, em prol ao aumento dos armamentos para a população não foram a causa direta da tragédia em Suzano. Só que a continuidade desse discurso, inclusive propondo que professores se armem para enfrentar assassinos psicopatas, não levará à solução do problema e, pior, gerará maior pânico social e péssimas escolhas dos cidadãos. As estatísticas mostram que geralmente, com larga vantagem, os criminosos e loucos que admiram as armas vencem os cidadãos comuns, do mesmo modo que os estudos revelam que os países com maior controle do armamentismo são mais bem-sucedidos no combate à violência.
Para prevenir essas tragédias, em segundo lugar, é preciso criar melhores políticas para a juventude, que devem ser prioridade num país ainda muito jovem, além de precisarem funcionar de forma integrada. Os governos no Brasil ainda funcionam de uma maneira muito segmentada pelos seus diversos setores, e questões como primeira infância, juventude ou política para idosos, precisam de maior articulação entre as áreas. No âmbito juvenil, a escola pode ser o centro irradiador a partir do qual poderiam se interligar ações da cultura, esporte, saúde e demais temas que sejam importantes para essa faixa etária.
Como a tragédia ocorreu numa escola, vale refletir como essa tem funcionado no país. Cobra-se muito, e com razão, que as unidades de ensino gerem aprendizados nos alunos em campos como linguagem, matemática, ciências e humanidades, para ficar nos básicos. Entretanto, além dos conhecimentos disciplinares, é preciso que as escolas ajudem na formação dos jovens. Eles vivem um momento conturbado de suas vidas, ao que se soma à pressão do mundo contemporâneo para um reconhecimento social perfeito. Se a educação não for capaz de lidar com esses sentimentos, não será capaz de promover o desenvolvimento econômico e social do Brasil. Não se constrói capital humano com pessoas que não tenham suas competências emocionais e coletivas bem estruturadas.
Termino escolhendo a melhor solução que adviria dos governos, mas também das lideranças sociais: focar na arte do diálogo como caminho para a paz. Quanto mais ensinarmos os jovens a dialogar e debater, quanto mais formos capazes de ouvi-los e dar vazão às suas angústias, quanto mais provarmos que é possível ser feliz de diferentes formas, quanto mais frisarmos que as redes sociais servem para prosear e se divertir (e não para brigar), em suma, quanto mais mostrarmos que é possível resolver os problemas pela conversa pacífica, e não pela violência surda, mais teremos chances de evitar que novos atos de barbárie invadam as escolas e matem nossa esperança no futuro.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
Valor Econômico/22 de março de 2019

Radicalismo e educação não combinam (Maria Clara R. M. do Prado)

O desprezo do governo Bolsonaro pela área da educação é notório. Chega às raias da irresponsabilidade a falta de liderança política do Palácio do Planalto sobre a estrutura administrativa do Ministério da Educação que, em pouco tempo, já sofreu a queda de dois vice ministros, teve de conviver com fanáticos antiglobalistas em seus quadros e que, em dois meses e meio de governo, continua mergulhado em intrigas e disputas internas com poder de resvalarem no funcionamento do sistema educacional do país.
A indicação de Iolene Maria de Lima para o cargo de vice-ministra na semana passada pelo ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez, tem hoje desfecho incerto. Mas só o fato do nome ter sido apontado para o cargo já mostra o nível de insensatez que ronda a educação no Brasil. Ligada à igreja Batista, Iolene defende uma pedagogia que mistura religião com educação.
Basta recorrer à página digital da Associação das Escolas Cristãs de Educação por Princípios (AECEP), criada em São Paulo em 1997, na qual ela aparece como membro do conselho de administração. Prega uma abordagem de ensino e aprendizagem que parte do "raciocínio sobre verdades bíblicas e identifica os fundamentos do conhecimento, conduzindo à reflexão de causa-efeito, visando produzir entendimento realizador e caráter cristão", qualquer que seja o significado disso. A aplicação consistente (da abordagem educacional por princípios), diz ainda o enunciado da AECEP, contribui "para formar erudição baseada numa cosmovisão cristã e líderes servidores aptos a cumprir o propósito de Deus com suas vocações".
O Brasil não é um Estado teocrático, no qual os poderes religioso e político se fundem. Nem está associado a irmandades religiosas ou ideologias domésticas ou internacionais.
Ao longo da história, inúmeras foram as vezes em que a interferência da Igreja em assuntos do Estado acabou por ter consequências nefastas. Recorde-se a expulsão da Companhia de Jesus de Portugal, em 1759. Apesar de absolutista, a monarquia portuguesa teve influência do iluminismo através dos posicionamentos do então Secretário de Estado, Marques de Pombal, introdutor de várias reformas administrativas e econômicas no país. O poder dos jesuítas sobre as famílias mais influentes, sobre o ensino e a cultura era visto por Pombal como um obstáculo à modernização do Estado. Não só expulsou-os como confiscou-lhes todos os bens não apenas em Portugal, mas em todas as colônias.
Aqui e agora, no Brasil do século XXI, percebe-se indícios perigosos de aparelhamento ideológico e religioso na área da educação, o que deveria estar no radar das preocupações de todos os formadores de opinião, acadêmicos e até mesmo da classe empresarial. No momento em que os países mais destacados no campo educacional, como a Coreia do Sul e a Finlândia, buscam adaptar o ensino de forma pragmática às necessidades das atividades empresariais, é inconcebível que se recorra a Deus como fonte da qual emana toda a sabedoria e todo o aprendizado. Seria voltar às práticas da Idade Média, onde a educação era marcada pela influência da Igreja.
Da mesma forma é condenável a influência do fanatismo ideológico, tanto de esquerda quanto de direita. Simpatizantes da extrema direita, como parecem ser os chamados discípulos do jornalista Olavo de Carvalho - brasileiro há anos nos Estados Unidos, antiglobalista e antimarxista cultural, com forte e inexplicável influência sobre o governo Bolsonaro - transitaram até doze dias atrás pelo Ministério da Educação na condição de assessores ou como ocupantes de cargos relevantes. São sintonizados com ideias conservadoras que combatem a "ideologização do ensino", ou seja, a influência de ideologias de esquerda, e as discussões sobre gênero nas escolas. Os mais radicais defendem o fim da educação sexual na rede pública de ensino, e querem a idolatria do patriotismo e a matéria "moral e cívica" de volta às escolas.
Radicalismo e educação nunca deram certo juntos, mas já caminharam lado a lado. Não raras vezes a educação foi usada como meio para a doutrinação política de interesse de grupos específicos. Foi o caso da educação durante o III Reich na Alemanha, que tentou resgatar "o orgulho da nação alemã" e disseminou a propaganda nazista entre crianças e jovens.
A educação brasileira não precisa de influências que representem mais atraso e mais desqualificação. Já tem isso de sobra. Precisa, sim, de gente movida pela urgência em implementar uma política voltada para a melhoria da qualidade do ensino em todos os níveis e para a criatividade educacional com o objetivo de manter os alunos na sala de aula.
A taxa de evasão escolar continua elevada, em especial na educação de nível médio (secundária). Segundo o boletim Education "At a Glance 2018" (Educação ao Primeiro Olhar) da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) a taxa de inscrição dos alunos nas escolas brasileiras cai drasticamente depois dos 14 anos de idade. Apenas 69% dos adolescentes entre 15 anos e 19 anos de idade estão matriculados na rede de ensino no Brasil. A taxa reduz-se ainda mais entre os 20 e 24 anos de idade, com as matrículas escolares limitando-se a 29% daquela faixa de população.
Há alunos que saem do nível primário de ensino sem saber somar e subtrair, sem falar em multiplicar e dividir, ou mesmo sem conseguir escrever um texto minimamente compreensível. Não à toa a produtividade da mão de obra brasileira é baixa. Sem educação de qualidade e sem um treinamento voltado à realidade dos empreendimentos empresariais, o país não tem condições de evoluir. Priorizar a ideologia e a religião no sistema de ensino é colocar o país na era das trevas.
Valor Econômico/19 de março de 2019

Populismo e instituições (Marcus André Melo)

“Se os homens fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos”. A afirmação é de James Madison (1751-1836), arquiteto do desenho institucional do presidencialismo. A melhor forma de exercer controles sobre governantes é maximizando —através do desenho institucional— a formação de interesses contrapostos.
O fechamento parcial do governo federal americano por 35 dias (de 22 de dezembro de 2018 a 25 de janeiro de 2019) não foi, assim, falha institucional, mas resultado antecipado. A perda de controlerepublicano na Câmara dos Representantes nas eleições de meio de mandato, em novembro, é produto do desenho institucional. Com o governo Trump amordaçado dessa forma, quiçá o livro “When Democracies Die”, de Levitsky e Ziblatt, sequer fosse lançado.
No presidencialismo madisoniano, presidentes e Legislativo são eleitos em sufrágios separados e por maiorias distintas. O primeiro, por colégio eleitoral, os senadores pelas assembleias legislativas, e os deputados federais por distritos uninominais. E, claro: membros do Legislativo têm de renunciar a seus assentos no parlamento se passam a fazer parte do gabinete.
Para aumentar a probabilidade da contraposição de forças políticas distintas —sobretudo as extremistas—, os mandatos são defasados no tempo: o dos deputados é de dois anos, o dos senadores, de seis anos, e o do presidente, quatro anos sem direito à reeleição. As eleições de meio de mandato criam a possibilidade de que a maioria que elegeu o presidente seja distinta da que elegeu o Legislativo.
O presidencialismo latino-americano nos últimos dois séculos vem se desviando do desenho original. A lista é longa: todos os países da região passaram a adotar a representação proporcional ou sistemas mistos, inaugurando o multipartidarismo como forma modal. Os colégios eleitorais, adotados em Chile, Argentina, Paraguai, foram abandonados.
Houve também extensa delegação de poderes aos presidentes. Por sua vez, a reeleição consecutiva de presidentes foi permitida em quatro países, e a não consecutiva, em seis. As eleições legislativas não simultâneas foram abandonadas —desde 1980, 60% delas são concorrentes.
A principal consequência é que instaurou-se uma dinâmica parlamentarista no sistema presidencial, porque foram criados incentivos para a formação de coalizões de governo. Sob democracias, presidentes tipicamente governam com maiorias partidárias.
O debate sobre democracia e populismo não pode fazer tábula rasa do conhecimento acumulado sobre o efeito da renda e da história sobre regimes políticos. Muito menos do desenho institucional.
(*) Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
Folha de São Paulo/18 de março de 2019

sexta-feira, 15 de março de 2019

Os barões da federação e as reformas (Marcus André Melo)

Para muitos analistas os governadores jogarão papel fundamental na reforma da Previdência: muitos estados estão quebrados e eles/elas ganharão e muito com as reformas. Para além da questão fiscal, podem beneficiar-se da transferência dos custos reputacionais de reformas impopulares para o governo federal (processo conhecido na ciência política como “blame shifting”).
Por outro lado, a vulnerabilidade de muitos executivos estaduais torna-os potencialmente presa fácil na troca de ajuda federal por apoio político às reformas. Mas as expectativas de protagonismo dos governadores estão ancoradas em uma percepção equivocada sobre seu papel nas relações executivo-legislativo. Os governadores podem ter interesse nas reformas, mas isso não implica que tenham a capacidade de influenciar de forma decisiva o processo legislativo através de bancadas estaduais.
A percepção equivocada deve-se à resiliência da imagem dos governadores como barões da federação que refletia o status quo dos anos 80 e 90, mas que mudou radicalmente nas duas últimas décadas.
Com a volta das eleições diretas para governadores em 1982, os executivos estaduais adquiriram inédita legitimidade porque eram os únicos atores diretamente escolhidos pela população. Detinham também autonomia fiscal e financeira e converteram-se em protagonistas da barganha política da transição (vide Covas, Tancredo, Arraes ou Pedro Simon).
Três fatores enfraqueceram os governadores nos anos 1990: a crise da dívida dos estados; a estruturação do sistema partidário e a centralização política, econômica e financeira.
Com a crise, os governadores perderam suas principais bases materiais de poder: os bancos estaduais e as empresas públicas, privatizados em processos comandados pelo governo federal. Não se trata de tigres sem dentes: afinal controlam máquinas de patronagem, mas não garantem votos.
Por sua vez, a formação de um sistema multipartidário vertebrado pelo PSDB e PT estabilizou a competição política por duas décadas. Os partidos ganharam centralidade. Não é a toa que FHC e Lula/Dilma não eram ex-governadores, mas figuras de partido. O colapso recente deste sistema não devolveu centralidade política aos governadores.
A centralização ocorrida se manifestou em vários níveis. Mas sob Bolsonaro assistimos a um movimento na direção contrária: um esvaziamento da centralidade política da Presidência que vem sendo erodida cotidianamente, gerando crescente déficit de legitimidade e de coordenação (parcialmente compensado pela atuação do Ministério da Economia). O resultado é um aumento importante da instabilidade e incerteza no sistema.
(*)Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
Folha de S. Paulo/11 de março de 2019

A fábrica de ilusões (Simon Schwartzman)

No Brasil todos querem ganhar na loteria, e muita gente joga, mesmo que pouquíssimos ganhem. No ensino superior é parecido: cerca de 7 milhões se candidatam todo ano ao Enem, disputando cerca de 300 mil vagas em universidades federais. Muitos dos que não passam vão para escolas privadas, em alguns casos com bolsas ou créditos educativos. Em 2017, 2,5 milhões de pessoas entraram em cursos superiores, a grande maioria no setor privado, e 1,2 milhão se formaram. Dados do Inep mostram que depois de quatro anos 31% dos estudantes haviam abandonado o curso e só 11% se formaram. O abandono é muito maior nas instituições privadas (37%) e em áreas como ciências matemáticas e computação (40%), ciências sociais (35%) e cursos à distância (42%).
A peneira, na verdade, começa antes. Hoje existe escola fundamental para todos, mas a qualidade, sobretudo nas redes municipais e estaduais, é muito ruim, e a grande maioria chega ao ensino médio mal sabendo escrever e fazer contas. Em 2018, 3 milhões de jovens entraram no ensino médio, mas só 2,3 milhões chegaram ao terceiro ano. Outro 1,4 milhão, de mais velhos, se matriculou em cursos de educação de jovens e adultos, em que a grande maioria não se forma – e a qualidade é pior ainda. É pior do que loteria, porque é um jogo de cartas marcadas: filhos de famílias mais ricas e educadas, que estudam em escolas particulares ou passam nos “vestibulinhos” das escolas federais, têm mais chances de conseguir boa nota no Enem, passar na Fuvest, escolher os melhores cursos ou ir para uma escola superior privada de elite. Já a grande maioria fica pelo caminho.
Ter educação superior hoje no Brasil significa ter uma renda média do trabalho de R$ 4.600 mensais, comparada com R$ 1.600 dos que têm nível médio e R$ 1.350 de quem só tem o fundamental. Mas depende muito do curso e da faculdade que a pessoa seguiu: cerca de metade das pessoas de nível superior trabalha em profissões de nível médio, com renda próxima de R$ 2.400. Para ter maiores benefícios é preciso entrar numa carreira disputada, como medicina ou engenharia, ou passar na prova da OAB ou num difícil concurso para cargo público: é para poucos.
Além do imenso custo pessoal para os milhões que gastam anos, dinheiro e esperança tentando uma carreira que nunca vão atingir, existe o custo público de manter tudo isso. Segundo dados da Secretaria do Tesouro, os gastos da União em educação superior passaram de R$ 32 bilhões a R$ 75 bilhões entre 2008 e 2017, em sua grande maioria na forma de salários para professores de tempo integral das universidades federais, enquanto o crédito educativo, concedido de forma indiscriminada ao setor privado até recentemente, chegou a mais de R$ 30 bilhões em 2016 e 2017. Tudo isso para financiar um sistema com 30% ou mais de ineficiência, sem falar na qualidade e pertinência do que é ensinado. O Ministério da Educação mantém um sistema extremamente complexo e caro de avaliação do ensino superior, com as provas do Enade e a divulgação de diferentes índices que não nos dizem quais cursos são efetivamente bons ou ruins, nem qual a empregabilidade dos formados, ou a eficiência das instituições no uso dos recursos públicos.
Outra ilusão é a suposta “indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão”, consagrada no artigo 207 da Constituição. Em seu nome, 87% dos professores das instituições federais e 80% das estaduais têm contratos de trabalho de tempo integral, e a maioria de dedicação exclusiva, elevando enormemente os custos, embora a pesquisa que mereça esse nome – regular, de padrão internacional e de impacto social e econômico – esteja concentrada numas poucas instituições, existam poucas patentes e grande parte dos artigos produzidos termine enterrada em revistas que ninguém lê. Em seu nome, também, as instituições de ensino são avaliadas pelo que elas não querem, não sabem fazer nem precisam – quantos professores doutores têm, quantos papers produzem, quantos cursos de pós-graduação oferecem.
Não será fácil sair desta situação. Não é possível reverter o relógio e limitar o acesso à educação superior, mas é possível melhorar as avaliações e oferecer uma gama de alternativas de estudo e formação para pessoas que chegam ao ensino superior com diferentes condições e necessidades. O “modelo de Bolonha”, adotado pela União Europeia e muitos outros países, consiste num primeiro ciclo de três anos de amplo acesso, seguido por mestrados ou cursos mais avançados. Além disso, existem amplos sistemas de formação vocacional que começa no ensino médio e continua no pós-secundário, em institutos e centros especializados. Transitar do sistema tradicional de cursos de quatro ou cinco anos para esse modelo não é fácil, mas é possível, se houver uma visão clara do que se pretende e estímulos adequados para que as instituições respondam.
O setor privado, que trabalha numa perspectiva empresarial, já se vem adaptando às novas condições, compensando a perda dos subsídios do crédito educativo por cursos à distância e ampliando a oferta de cursos “tecnológicos” de curta duração. O setor público necessita, sobretudo, de incentivos corretos para disputar e usar bem seus recursos, com contratos de gestão para cumprir metas diferenciadas e realistas, novas formas de governança e flexibilidade legal e institucional para responder a esses incentivos. E os estudantes devem compartir a responsabilidade e os custos de sua educação, sobretudo por meio de créditos educativos associados à renda futura.
O mercado tem suas vantagens, mas também problemas quando a competição se dá por baixos custos e venda de ilusões. O ensino superior brasileiro precisa de uma visão de futuro, regras claras de funcionamento, mais flexibilidade e mais transparência. E o Ministério da Educação, que é parte, talvez não seja a melhor agência para regular esse sistema.
(*) Simon Schwartzman é sociólogo e membro da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (CONAES)
O Estado de S.Paulo/9 de março de 2019

O Brasil precisa de um estadista (Fernando Luiz Abrucio)

O momento grave do país exige uma liderança presidencial muito especial, com qualidades maiores do que a de líderes populares ou partidários. No período mais recente, nunca a palavra estadista foi tão perfeita para uma situação histórica em que o presidente terá de orientar suas ações pelos interesses maiores do Estado brasileiro. Mas se Bolsonaro preferir se guiar por uma visão mais sectária, atuando apenas segundo a opinião de seus próximos e incentivando o clima de guerra contra os que não pensam exatamente como ele, o Brasil não sairá da crise.
Antes de entender que qualidades um estadista deveria ter agora, é preciso mostrar por quais razões um líder com tais predicados seria mais urgente neste momento. A resposta mais ampla é a confluência de várias crises no mesmo ponto da história, numa intensidade e combinação raras, uma verdadeira tempestade perfeita.
A primeira crise é a econômica. Ela não pode ser representada apenas pelo baixo crescimento e enorme desemprego. Por trás de tudo isso, há a necessidade de reformar grande parte do modelo econômico, dando maior solvência fiscal ao Estado, melhorando a competitividade da economia, fortalecendo os pilares da produtividade (principalmente em termos educacionais) e garantindo um mercado de trabalho que gere mais e melhores empregos.
Não será nada fácil, pois transformação de tal envergadura exigirá mudanças legislativas difíceis, como as reformas da Previdência e do sistema tributário, além de um processo intrincado de implementação - por exemplo, quem vai formular e executar as melhorias na educação necessárias para qualificar o capital humano?
Mas a crise econômica não pode ser descolada da dinâmica social brasileira. A característica mais marcante do país é a desigualdade e reformar o Estado sem levar em conta isso é mais do que uma falta de sensibilidade. É um passo para o precipício. A tarefa é árdua porque teremos de, a um só tempo, garantir a solvência do Estado sem piorar a vida dos mais pobres do país. Olhar apenas para um lado levará a dois fins trágicos: ou será o caminho para inviabilizar as políticas públicas porque não teremos dinheiro para tal, ou será a trilha para deslegitimar o governo frente à maior parcela da população.
Sendo mais direto: o Brasil não pode gastar com a Previdência o volume de recursos em relação PIB que gasta hoje, mas não pode deixar para atrás os desvalidos urbanos e rurais que não tiveram igualdade de oportunidades no ponto de partida, sobretudo do ponto de vista da educação, ou que tenham problemas de saúde graves. Há muita coisa para mudar no modelo previdenciário do setor público, no ajuste mais parcimonioso do país à sua demografia e nos generosos subsídios às empresas ou mesmo à classe média.
O ponto mais nevrálgico, no entanto, é a crise política. O alicerce do sistema partidário por mais de 20 anos foi destruído, sem que algo em seu lugar fosse colocado. O processo de renovação que ocorreu é muito mais heterogêneo, inorgânico e frágil do que pode pensar a vã filosofia dos crentes na reforma moral do país. O Congresso não tem hoje uma coluna vertebral e o partido do presidente, além de francamente minoritário, é composto por neófitos na política, incapazes de entender a profundidade da crise e os seus remédios. Brincam de propor a Escola sem Partido, a mudança forçada da composição do STF e outras bobagens. Estão muito distantes de um diagnóstico sério, que envolva não só o entendimento dos problemas do país, mas que busque ainda inspiração na experiência internacional bem-sucedida. Essa dispersão temática só vai atrapalhar a busca do essencial.
O amadorismo político, na verdade, começa no Executivo. Desde a redemocratização, nunca se viu um fosso tão grande entre o Palácio do Planalto e as duas Casas Legislativas. Continuar usando a estratégia da campanha eleitoral como forma de convencer os congressistas é desastroso em termos de efetividade política. O presidente Bolsonaro tem que montar uma maioria parlamentar para aprovar reformas constitucionais, e isso exige construir uma coalizão, ou para usar uma palavra mais adequada ao bolsonarismo, um casamento partidário. É o que ocorre em todas as democracias multipartidárias, algo mais complexo no Brasil por conta da enorme fragmentação partidária.
Para piorar, a crise política pode ficar mais ampla, tornando-se geopolítica. A forma como o Brasil tem se comportado nos últimos três meses no cenário internacional é, no mínimo, temerária. O sucesso do país sempre esteve atrelado, embora de diferentes formas no tempo, à sua posição moderada e cooperativa em relação a diversos atores estrangeiros, sejam países ou organismos multilaterais. Mas o chanceler quer dar um cavalo de pau e colocar o Brasil numa cruzada de transformações semelhantes ao pós-Segunda Guerra Mundial. Essa ousada aposta aumenta a incerteza sobre nosso futuro nos próximos anos.
Por conta dessa soma de crises, precisamos urgentemente de um estadista que seja capaz de ter três qualidades. A primeira é pensar além do seu mandato. Isso envolve, de um lado, levar em conta o projeto de nação inscrito em nossa história e reforçado pela Constituição de 88. Um rompimento brusco com o que, arduamente, construímos poderá enfraquecer as bases mais sólidas do país.
Por outro lado, o momento exige um estadista capaz de explicar ao país quais são as medidas necessárias para termos um futuro melhor. Em alguns aspectos, isso significará muita gritaria de vários grupos, incluindo bolsonaristas, e uma provável perda de popularidade. Mas é preciso que o presidente Bolsonaro saiba que, sem fazer alterações profundas nas políticas públicas, em pouco tempo ele também perderá legitimidade. Sem melhorar a situação fiscal, ganhar a confiança da comunidade internacional em questões como o meio ambiente e os direitos humanos e iniciar um projeto que sinalize a melhoria da educação, não haverá Trump que nos salve. E o alarme vai soar bem antes do fim do mandato.
A segunda qualidade de estadista diz respeito ao amplo diálogo com as principais forças políticas e sociais do país. Esse predicado será necessário para, primeiramente, legitimar e aprovar reformas difíceis, que não vão parar na Previdência. A estratégia de atropelar o mundo político e de jogar a culpa nos adversários não dará certo. Governos de outra linha ideológica tentaram fazer isso e só provocaram mais crise.
A maior abertura ao diálogo é fundamental, ademais, para reduzir a polarização política. Cabe lembrar que o que pode ser útil para ganhar uma eleição pode ter o efeito contrário quando se é governo. Alimentar a divisão do país, por meio de guerras culturais e contínua provocação dos adversários, só vai atrapalhar a realização de mudanças estruturais do Estado. Um exemplo: muitos implementadores das políticas públicas podem não ter votado no presidente e caso se sintam alijados ou forem xingados, nada os fará cooperar.
Além disso, o presidente Bolsonaro deveria ouvir mais outros grupos sociais que ultrapassem seu círculo de apoiadores, pois, diga-se a verdade, seu plano de governo era bastante incompleto, dado que não tinha o diagnóstico de vários problemas do país. Ele precisará agregar mais informações e soluções que não estavam colocadas no processo eleitoral. Imerso numa imensa crise, o Brasil precisa agora de alguém que, em alguma medida, junte os diferentes e disso obtenha maior força e legitimidade políticas.
O rol de qualidades do estadista se completa com o exercício de liderança em tempos difíceis. Em situações assim, grande parte do capital político obtido com a eleição será gasta. Para que esse processo seja mais eficiente, Bolsonaro precisa definir de que maneira irá convencer as pessoas e os grupos políticos da urgência das mudanças mais duras. O presidente pode e deve descentralizar várias decisões governamentais para gestores competentes. Mas os temas mais complexos e polêmicos devem ser liderados por ele.
A liderança de um estadista também se mede por sua capacidade de arbitrar conflitos e avaliar as decisões de seus subordinados. Muitas confusões ocorreram em pouco tempo de governo, concentradas em alguns ministérios, e aparentemente o presidente esteve alheio a maioria delas. No fundo, a impressão que se tem é que Bolsonaro ainda não em uma ideia clara de quais são as prioridades do país e que futuro imagina para as principais áreas de políticas públicas. Sua inexperiência no Executivo e a falta de um grupo político mais orgânico e preparado para os desafios do poder explicam esse quadro de incerteza decisória.
Claro que o presidente pode optar por um outro caminho, acreditando, erroneamente, que só deve responder a um grupo sectário que o apoiou desde o início. Se seguir essa trilha, todo o restante, num tempo menor do que se imagina, vai abandoná-lo, e a grande maioria estará do lado contrário de Bolsonaro. O tempo é de mudar o padrão de liderança, antes que o presidente descubra a verdadeira solidão do Palácio do Planalto, olhando para os retratos de Jânio, Collor e Dilma.
(*) Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP.
Valor Econômico/8 de março de 2019

terça-feira, 12 de março de 2019

Incivilidade política (José Antonio Segatto)

Um importante intelectual alemão, Karl Marx, em 1852, no livro O 18 de Brumário, em perspicaz análise do processo político francês dos anos 1848-51, revela como foram criadas as “circunstâncias e condições que possibilitaram a um personagem medíocre e grotesco (Luís Bonaparte) desempenhar um papel de herói”.
Guardadas as singularidades dos acontecimentos na França da época, posteriormente, nos séculos 20/21, fenômenos com alguma similitude com aqueles se sucederam em outros lugares e situações particulares, até mesmo em tempos recentes. Podemos citar como exemplos, circunscrevendo-nos apenas ao continente americano e à contemporaneidade, as eleições presidenciais que elegeram o agrônomo Alberto Fujimori (Peru, 1990), o coronel Hugo Chávez (Venezuela, 1998), o empresário Donald Trump (Estados Unidos, 2016) e o capitão Jair Bolsonaro (Brasil, 2018).
O caso do Brasil, o mais recente, é deveras ilustrativo desses fatos. Político obscuro e sem qualidades, que durante quase três décadas engrossou as fileiras do baixo clero no Congresso Nacional, Bolsonaro fez carreira de deputado federal por partidos fisiológicos e clientelistas ou de aluguel. Representante do corporativismo militar e do nacional-estatismo, arauto do regime ditatorial e apologeta de seus métodos despóticos e cruéis, manteve sempre a coerência de concepções e a constância de práticas em sua trajetória parlamentar: a demonização da política e o ultraje da democracia, a glosa dos direitos de cidadania e a hostilidade aos valores humanistas, o combate às manifestações identitárias e multiculturais.
O desafio, todavia, é explicitar como um sujeito incivil e rústico, sem projeto, sem estrutura partidária e com recursos limitados, pôde angariar tantos adeptos e obter tamanha votação, que permitiu sua eleição para a Presidência da República de um país deveras complexo.
Inúmeras têm sido as respostas dadas por jornalistas e cientistas políticos, por especialistas e leigos, para compreender o sucedido. Dentre elas, algumas podem ser destacadas:
1) A severa crise econômica e suas sequelas teriam criado insatisfação generalizada.
2) A revelação dos muitos e graves escândalos de corrupção nos diversos níveis do aparato estatal, envolvendo partidos governistas – sobretudo o consórcio PT-PMDB –, associados a práticas fisiológicas, clientelistas e patrimonialistas, teria produzido reprovação indignada do establishment político pela opinião pública. Ademais, seria responsável pelo depauperamento do centro político e pela perda de credibilidade do sistema partidário, permitindo a emergência no cenário político de novos atores.
3) A incapacidade de governos na segurança pública teria propiciado as condições para o aumento exponencial da criminalidade, da violência e da disseminação do medo e da apreensão social.
4) A ineficácia da gestão do Estado e da condução das políticas públicas, concatenada aos malfeitos dos donos do poder, teria criado clima de insatisfação e descrédito sem precedentes da política e dos políticos, dos partidos e das instituições.
5) O ativismo de entidades e movimentos identitários, na busca de reconhecimento, teria desencadeado uma reação conservadora afrontosa, em especial de igrejas evangélicas, em defesa de valores tradicionalistas.
6) Os influxos da onda conservadora e/ou de direita em ascensão na Europa e nos Estados Unidos teriam fomentado a disseminação de concepções extemporâneas e reacionárias: xenófobas, racistas, populistas, nacionalistas e antiglobalistas – em consonância, propalou-se uma atroz persecução a socialistas e partidos de esquerda em geral, além de movimentos identitários, de defesa de direitos civis e/ou humanos. A ira antipetista propagou-se como uma centelha e atingiu a esquerda indistintamente.
Esse conjunto de fatos e fatores teria produzido uma situação de mal-estar sociopolítico de vulto, um verdadeiro estado de anomia e seria mesmo responsável pelo desencadeamento, em 2013-15, de um agressivo e inusitado movimento antissistema, que conseguiu mobilizar grandes contingentes de manifestantes nas ruas e nas redes sociais. Com palavras de ordem “contra tudo o que está aí” e profissões de fé cruzadistas – em resguardo da pátria e da ordem, da família e dos “bons costumes”, de Deus e da civilização cristã – foram aguçados sentimentos elementares e ordinários que estariam latentes e afloraram de maneira impetuosa.
Nesse clima e/ou conjuntura é que teriam sido criadas as condições para a emergência da candidatura Bolsonaro. Apresentado como outsider, antipolítico, salvador da pátria, com uma retórica insolente e beligerante, preconceituosa e regressista, anti-secularista e anticosmopolita, conquistou ampla massa de adeptos dos mais variados estratos sociais. Explorando ardilosamente a mídia eletrônica, reuniu uma legião de tuiteiros, youtubers, blogueiros, etc. – orientados por ideólogos do submundo da internet – numa incomensurável operação de propaganda e proselitismo político-ideológico.
Se as interpretações ou constatações acima expostas forem verossímeis, elas sinalizam que podemos ter de vivenciar, nos próximos anos ao menos, tempos infaustos para os valores e procedimentos democráticos e para o exercício da cidadania. O cargo de presidente da República não enseja, entretanto, per se, prerrogativas de domínio desmesurável e arbitrário – os mecanismos de poder e os meios de exercê-lo tendem a restringir possíveis investidas antirrepublicanas, de insolência política, de ultraje da democracia e de constrangimento de direitos. As garantias institucionais e constitucionais vão depender, contudo, do ativo e engenhoso protagonismo dos agentes da sociedade civil e política, comprometidos com a manutenção do Estado de Direito Democrático, com a publicização do Estado e com as liberdades em sentido lato.
(*) José Segatto é professor titular de sociologia da Unesp
O Estado de S.Paulo/7 de março de 2019