terça-feira, 21 de abril de 2020

Isso é Bolsonaro (Alberto Aggio)


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É traço comum das análises sobre o Brasil atual buscar entender o que melhor caracterizaria Jair Bolsonaro e seu governo. Bolsonaro é efetivamente um personagem singular, minimamente letrado, um tanto tosco, que numa circunstância especialíssima chegou à Presidência da República. Não estaria errada essa descrição, mesmo reconhecendo sua insuficiência.
Dizer que ele representa os militares seria uma generalização absurda e um desprestígio da categoria. Os militares compõem uma camada intelectual de relevância incontestável para o Estado brasileiro. Como se sabe, Bolsonaro foi afastado do Exército por indisciplina. Tornou-se político profissional com votos da corporação militar por longos 28 anos. Como parlamentar e agora como presidente permanece um defensor das demandas dos militares – vide a reforma da Previdência. É certo que recheou o Ministério com muitos deles, o que não garantiu identidade absoluta entre o presidente e os militares convidados.
Não há novidade também na caracterização de Bolsonaro como representante da extrema direita. Não apenas ele, mas seus filhos – igualmente políticos profissionais, vale ressaltar – não escondem isso de ninguém, até mesmo as ligações internacionais com essa corrente política. Tal posição, distinta de outras correntes e personalidades desse campo, acabou por definir mais precisamente Bolsonaro como expressão de uma facção da direita que tem cultivado um comportamento fascistizante.
O presidente não abre mão de concentrar em si a narrativa e a estratégia de seu governo. Embora em ambas não haja um programa determinado, coerente e sistêmico, que ele faça questão de explicitar. Mas há uma ênfase digna de menção: a persona (o “mito”) sobrepõe-se ao governo e por isso a dimensão pessoal está sempre à frente da institucional, no limite do decoro. A pessoalização existe, porém, sem nenhum afeto, nem o maneirismo típico da nossa tradição ibero-americana. A Bolsonaro não interessa o savoir-faire da política, as gentilezas com outros atores, mesmo com possíveis aliados.
Ele modula seu comportamento pelo que entende ser o jogo duro do poder. E para isso adota o método do confronto permanente, pondo sempre em relevo as discrepâncias ideológicas no lugar das soluções para os problemas da Nação. A confrontação é essencial para sua estratégia de manter o apoio de parcela significativa do eleitorado, rumo à reeleição de 2022.
Tudo isso lhe garantiu a iniciativa política até aqui. Mas 2020 começou mal para ele e para todos nós. A divulgação do “pibinho” (1,1%) de 2019, a disparada do dólar, a fuga de investimentos e, por fim, o ingresso do Brasil na pandemia do covid-19 alteraram o cenário. A pandemia jogou Bolsonaro nas cordas, fazendo-o perder a iniciativa política. Em poucos dias deu mostras de faltar-lhe o chão e de que sua estratégia maior poderia estar comprometida.
Desde então as ações do presidente visam à recuperação da iniciativa perdida. Com parte da sua equipe contaminada pelo vírus, Bolsonaro lançou-se numa escalada desesperada: não hesitou em cumprimentar os poucos manifestantes que pediam o fechamento do Congresso e do STF. Em seguida, com declarações estapafúrdias, atacou os governadores que determinaram o isolamento social para conter o avanço da epidemia. Essa atitude produziu uma fratura na estrutura federativa do País, criando embate institucional, desorientação política, além de complicar o combate à pandemia.
Mesmo na defensiva, Bolsonaro tenta manter a opção por uma “guerra de movimento” definida desde a campanha e a posse, cujo objetivo é destruir a democracia da Carta Constitucional de 1988 e implantar um regime iliberal no Brasil. Essa espécie de “revolução reacionária” levada em fogo brando (sem violência aguda, até o momento) não pode parar até as eleições de 2022. É nela que Bolsonaro imagina consolidar sua legitimidade e impor ao País uma “nova hegemonia”, não mais com os valores e ideias da “esquerda”. Para ele 2022 é o turning point.
Mas até lá haverá muita turbulência. O certo é que, para confrontar o frágil reformismo liberal-democrático que marcou a trajetória do País desde o fim da ditadura, Bolsonaro não cederá à “guerra de posições”. Em sua avaliação, esse é um ambiente hostil. No limite, poderia fazê-lo, mas imagina que estaria compactuando com um modelo que, segundo ele, marcou os governos dos presidentes que o antecederam, com custos e problemas que não saberia gerenciar.
Diante da pandemia, Bolsonaro age com mão pesada: escanteia governadores e prefeitos, desafia orientações epidemiológicas, desestrutura a federação e tensiona ao limite a relação com o Congresso. Mas não ganha nenhuma posição. Busca resgatar sua “guerra de movimento” e colocar nas ruas os que o apoiam incondicionalmente, pouco se importando em ver o País à beira da conflagração.
Com a recessão às portas, o que pode comprometer sua reeleição, Bolsonaro visa a combater as lideranças que ameaçam seu caminho rumo a 2022. Isso é Bolsonaro.
O Estado de S.Paulo-18 de abril de 2020

quinta-feira, 16 de abril de 2020

O conceito de público precisa ser reconstruído (Fernando Abrucio)

Nunca estivemos tão sós e, ao mesmo tempo, tão dependentes uns dos outros. A covid-19 nos isolou drasticamente de uma forma inédita no mundo moderno, mas também reforçou o peso da coletividade, seja para coibir o alastramento do vírus, seja para garantir a solidariedade necessária para ajudar as populações mais vulneráveis.
Esses tempos difíceis podem ser longos e, com certeza, não serão resolvidos pelas visões individualistas predominantes na economia e na política. Para sairmos dessa enorme crise será preciso reconstruir e fortalecer o conceito de público, tão vilipendiado e esquecido nos tempos mais recentes.
A reconstrução do conceito de público envolve três dimensões. A primeira tem a ver com as relações entre Estado e sociedade, mais especificamente sobre a confiança na atuação governamental. A segunda relaciona-se com as políticas públicas, em particular com aquelas que formam a base do Estado de bem-estar social. E a última delas refere-se à transformação dos valores hegemônicos, tanto em suas manifestações mais narcísicas, como em sua forma tribal e intolerante que tem crescido com as mídias sociais.
Quando surge uma grande crise, o síndico que é sempre chamado para resolver o problema chama-se Estado. Não seria diferente agora com essa enorme e imprevisível pandemia. Mas é importante que se saiba que por conta de terem sido tão desacreditados e enfraquecidos nos últimos anos, os governos estão menos preparados e capacitados para lidar com os efeitos perversos da covid-19. Essa lição é importante porque demoraremos mais para sair da atual situação, com grandes custos sociais e econômicos.
É preciso, ademais, lembrar que outros problemas globais e complexos devem nos atingir nos próximos anos. Não precisa ser nem uma pandemia como a do Covid-19. Governos serão muito importantes para combater os efeitos do aquecimento global (como secas cada vez mais constantes em alguns lugares), o aumento da desigualdade derivada da revolução tecnológica, a pressão demográfica por políticas públicas aos idosos e o aumento da competitividade entre os países vinculada à qualidade educacional, para ficar em exemplos nos quais sem um Estado capacitado as soluções serão mais difíceis de serem alcançadas.
Desacreditar e enfraquecer os governos é uma tarefa que teve suas origens contemporâneas nos governos de Reagan e Thatcher, no início dos anos 1980. Essa proposta não teve adesão linear ao longo do tempo e nem entre os países, de modo que muita ação governamental de boa qualidade foi feita nos últimos quarenta anos, garantindo boas políticas públicas ou tirando a economia de crises homéricas, como foi em 2008. De todo modo, aprendemos pouco com a história e nos últimos anos as posições mais refratárias ao Estado e até mesmo às autoridades governamentais cresceram muito. Foi nesta onda que se elegeram Trump e Bolsonaro, por exemplo, com suas propostas de Estado mínimo.
A conta dessa visão de mundo será paga agora, em maior ou menor medida pelos países de acordo com a forma como aderiram a uma concepção de economia política mais neoliberal. A Saúde foi uma das áreas mais afetadas pela concepção minimalista de Estado e a crise do coronavírus fez com que muitas pessoas pelo mundo ficassem à mercê de governantes cujo discurso era de que o governo sempre atrapalha. Não por acaso, figuras como Trump e Bolsonaro demoraram a atuar, pois eles não acreditam em ações governamentais de combate a fragilidades coletivas ou à desigualdade.
Recuperar a confiança nos governos não significa acreditar que o Estado deve ser imenso e capaz de resolver todos os problemas coletivos. O modelo estatal desejável supõe controles efetivos sobre os governantes e a máquina pública, além de uma visão equilibrada sobre a sua ação no campo econômico. A questão é que nos últimos anos o pêndulo virou demais para a crença ingênua ou ideológica num poder mágico dos mercados. Além disso, acreditou-se que a sociedade, tomada como um corpo homogêneo, seria o sinônimo de público. Fortalecer as organizações da sociedade civil é um objetivo central na democracia, porém, deve caminhar junto com a construção de um governo legítimo e efetivo, que possa impulsionar o melhor da solidariedade entre os cidadãos e, sobretudo, combater as desigualdades entre eles.
A esfera pública é uma intersecção entre os diversos grupos sociais e as instituições públicas. Isso fica cada vez mais claro quanto mais se caminha por essa triste crise trazida pelo Covid-19, cujas soluções não advém de um lado contra o outro. Em vez se ter uma visão que coloca em campos opostos Estado e sociedade, o correto é postular uma visão segundo a qual é fundamental encontrar formas de articulação entre ambos, sem abandonar a saudável fiscalização que setores sociais e cidadãos devem realizar continuamente sobre os governantes, mas não deslegitimando o poder estatal em si.
O Estado insere-se como ator-chave no espaço público principalmente por meio da produção de políticas públicas. O mundo precisará cada vez mais delas por duas razões. A primeira é que cada vez mais dilemas coletivos complexos se apresentarão para as sociedades, sem que elas consigam reagir sozinhas ou por soluções descentralizadas de mercado. Políticas ambientais, sanitárias, educacionais, urbanas, de garantia de condições básicas aos cidadãos serão o alicerce para reagir a qualquer fenômeno social que desestruture países, cidades ou mesmo a esfera global. O exemplo da covid-19 é acachapante neste sentido: todo o processo de reação e combate deste problema será feito por políticas públicas - e quanto mais o Estado for capacitado e efetivo em tais ações, melhor para as nações, empresas e cidadãos.
As políticas públicas serão decisivas também por conta do crescimento das desigualdades pelo mundo. As imagens de sem-teto na Itália, Estados Unidos e Brasil em meio à pandemia são chocantes. Ficou claro que o isolamento social não é igual para todos, e a paralisação da economia irá igualmente realçar o gigantesco tamanho das disparidades econômicas e sociais. É possível que após o auge da crise epidemiológica, virá um momento de reconstrução econômica que exigirá políticas que garantam condições básicas de sobrevivência a todos, e isso, sem dúvida alguma, não será realizado pelas forças puras do mercado.
Por isso que a segunda dimensão da reconstrução do conceito de público passa inevitavelmente pela recuperação da ideia de “Welfare State”. Os governos precisam garantir boas políticas públicas de saúde, educação, segurança, assistência social, meio ambiente e em todos os campos em que as externalidades negativas do mercado e os efeitos do aumento da complexidade social exijam uma ação pública. O exemplo da covid-19 vai ficar em nossa memória por muitos anos, sendo lembrado pelos parentes dos que morreram e pelos milhões que ficaram doentes. O período de confinamento está mostrando, ademais, o quanto as escolas e os professores fazem diferença na construção das relações sociais. As famílias devem estar entendendo que a educação é muito mais complexa do que preparar os filhos para uma carreira e passar no vestibular.
A sociedade sairá da crise muito mais desconfiada do consenso neoliberal anterior e demandando mais governos e políticas públicas de qualidade. Mas isso não garante que o Estado será fortalecido da forma adequada. Os principais grupos sociais e políticos deveriam começar, desde já, a pensar em modelos de administração pública que garantam governos que se orientem pela eficiência, pela efetividade, pela ética e, com grande ênfase, pela equidade. Para isso, será muito importante valorizar os bons profissionais da área pública. Com destaque, podem ser citados aqui os médicos, professores, policiais, assistentes sociais e técnicos que participam da formulação das políticas.
A preparação do Estado para retomar sua capacidade de garantir os direitos dos cidadãos não é o último passo na reconstrução do conceito de público. Uma última dimensão refere-se à necessidade de mudar os valores dominantes no mundo contemporâneo, especialmente a força do individualismo narcisista, para o qual a exposição da privacidade de cada um e das celebridades é máximo de coletivo que se vislumbra, bem como o comportamento tribal e intolerante vigente nas redes sociais e na política. Em lugar deles, precisamos de mais solidariedade, diálogo, aprendizado mútuo entre as partes e respeito pelos saberes adquiridos pela experiência pública e pela ciência. Afinal, o que nos retirará da crise da covid-19 não serão as respostas dadas pela ignorância raivosa da internet. Ao contrário, a solução passa por aqueles que dedicam anos de estudo fora dos holofotes e dos cliques de like.
O Brasil, obviamente, tem de reconstruir o seu conceito de público em torno da recuperação da importância do Estado, de suas políticas públicas (especialmente as sociais) e do próprio debate público, marcado nos últimos anos pela polarização estéril e pela pretensa novidade vinda de gente que não se importa com a desigualdade e com os mais pobres. A covid-19 mostrou de que maneira somos brasileiros: desiguais frente à pandemia, mas mesmo assim todos tementes em relação ao nosso futuro comum. Por isso que a esfera pública do país não pode se restringir à Barra da Tijuca ignorando os morros cariocas.
Valor Econômico/10 de abril de 2020

O século chinês (Simon Schwartzman)

Indústria Americana, o documentário produzido pela produtora de Michelle e Barack Obama que ganhou o Oscar da categoria este ano e pode ser visto na Netflix, conta a história tragicômica de um milionário chinês que decide transformar uma planta abandonada da General Motors nos Estados Unidos numa moderna fábrica de vidros de automóveis, com operários americanos trabalhando sob as ordens de gerentes chineses. Os chineses esforçam-se para entender a cultura individualista e a falta de disciplina dos americanos, levam americanos para a China para verem como uma fábrica deve funcionar e acabam trocando a maioria dos americanos por robôs, para que a fábrica finalmente possa dar lucro.
Vendo o filme, fica mais fácil entender o sucesso dos chineses em controlar a epidemia do coronavírus em Wuhan com um mínimo de mortes e impedindo que se alastrasse por sua imensa população, e a dificuldade dos americanos e europeus em fazer o mesmo. A explicação que geralmente se ouve é que a China é um Estado autoritário, com poderes para controlar sua população que seriam inimagináveis numa democracia. Há rumores de que não estão contando toda a história. Pode ser. Mas o a fato é que conseguiram estancar a hemorragia. Além da força bruta, outros dois fatores, a forte coesão social e o uso intensivo e competente de tecnologias avançadas, parecem ter sido muito mais importantes.
“Coesão social” refere-se ao grau em que as pessoas se sentem parte de uma comunidade e obedecem às normas de comportamento de seus grupos. Todos concordam que é uma coisa boa, mas discordam sobre quanto. No documentário, os americanos olham espantados como os operários chineses marcham sincronizados e gritam palavras de ordem, e como, numa festa da fábrica, as crianças dançam com precisão geométrica em louvor à eficiência e à produtividade, lembrando as gigantescas manifestações coreografadas na Coreia do Norte em homenagem ao Grande Líder. Os chineses trabalham muito mais horas por dia que os americanos, ganham muito menos e são muito mais produtivos.
Vendo isso, é difícil separar o que é coesão social do que é totalitarismo, mas outros países que também estão conseguindo controlar a epidemia são a Coreia do Sul, Cingapura, Taiwan e Japão, regimes democráticos com culturas semelhantes à chinesa. É a coesão social, mais do que o regime político, que os diferencia dos países ocidentais.
O terceiro fator que explica o sucesso desses países é o uso intensivo de tecnologias de testagem, acompanhamento dos movimentos da população pelos celulares, equipamentos de proteção de médicos e paramédicos e amplo uso de equipamentos caros e complexos, como tomógrafos, para melhor diagnosticar os doentes. Aqui também vem a dúvida de quando é admissível, numa democracia, permitir que governos controlem cada movimento das pessoas, mas isso já é feito em nossos países para fins comerciais. Essas tecnologias também estão disponíveis e muitas delas tiveram origem no Ocidente, mas os orientais têm sido mais eficientes em produzir, inovar e utilizar em grande escala do que os americanos e europeus.
Das muitas especulações que se fazem sobre como será o mundo pós-coronavírus, para quem sobreviver à imensa catástrofe que estamos presenciando, parece-me claro que o século 21 será, definitivamente, o século chinês. Isso não significa que ficaremos todos sob a ditadura de Xi Jinping, já que a própria China pode evoluir para formas menos autocráticas de governo e os países ocidentais certamente recuperarão suas economias. Mas a China, que já vinha ocupando espaço cada vez maior na economia mundial, deve sair desta crise muito mais fortalecida, transferindo definitivamente o polo da economia e do avanço tecnológico mundial para o Oriente.
Das lições que temos de aprender da China, a que menos interessa, e infelizmente muitos vão apregoar, é que as democracias não são capazes de enfrentar os grandes desafios epidemiológicos e ambientais que nos esperam e precisam ser substituídas pelos candidatos a ditador que surgem nestas horas difíceis. A democracia precisa ser preservada, mas deve ser menos disfuncional, com instituições públicas mais fortes nas áreas de ciência e tecnologia, políticas sociais mais firmes e mecanismos legais capazes de lidar rapidamente com os eventuais comportamentos predatórios e demagógicos de seus líderes. Mais do que armas para eventuais guerras, é indispensável ter estoques estratégicos de suprimentos e equipamentos médicos que não dependam dos interesses comerciais e incertezas do mercado internacional, como vem ocorrendo. O SUS precisa ser repensado, concentrando recursos em saúde preventiva, vigilância epidemiológica e atendimento médico à população carente. Não se pode, e não sei se queremos, copiar o modelo de coesão social dos países orientais, mas precisamos tornar nossas sociedades mais educadas, coesas e solidárias.
Sairemos desta tragédia mais pobres e sofridos, mas, quem sabe, um pouco mais sábios, para conseguirmos sobreviver no século chinês.
O Estado de S.Paulo\10 de abril de 2020

quinta-feira, 9 de abril de 2020

“Os profetas do neoliberalismo viraram promotores da economia social. É preciso voltar aos imperativos sociais” (Bertrand Badie )

Um dos maiores especialistas em relações internacionais, Bertrand Badie afirma que a crise desatada pela Covid-19 está evidenciando de forma dolorosa a verdadeira face da globalização
Carla Mascia/El País
Que um vírus originado em um mercado de Wuhan tenha se espalhado pelos cinco continentes em apenas algumas semanas, causando uma das crises sanitárias mais graves da história da humanidade não surpreende Bertrand Badie, um dos maiores especialistas franceses da globalização. O cientista político de 69 anos, professor emérito no Science Po (Instituto de Estudos Políticos de Paris) e pesquisador associado ao Centro de Estudos e Pesquisas Internacionais (CERI), há décadas defende que a ação individual de um dos 6 bilhões de habitantes do planeta pode ser mais importante do que a decisão de qualquer Governo. Em um “mundo único” em que as fronteiras já não impedem que o que acontece em um país tenha efeitos imediatos nos outros, onde a interdependência entre os diferentes setores de atividade humana jamais havia sido tão importante e a mobilidade, tanto humana como de mercadorias, tão veloz, “um aperto de mãos em Wuhan” pode colocar em xeque toda a humanidade, afirma. Por isso, o autor do recente ensaio L’Hégémonie Contestée acha que a crise atual precisa abrir nossos olhos para a importância da dimensão social da mundialização, abandonando o dogma neoliberal que se limita a conceber o ser humano como um simples ator econômico para abraçar um multilateralismo inclusivo.
Pergunta. Acha que a pandemia do coronavírus revelou o verdadeiro rosto da globalização?
Resposta. Penso que, até essa crise, a opinião pública e, o que é ainda mais surpreendente, os dirigentes dos diferentes países do mundo ignoravam e pretendiam ignorar o que esse fenômeno realmente significa. A mundialização muda profundamente o próprio significado da alteridade. O outro, em nosso antigo sistema westfaliano, era o inimigo potencial; depois, com o livre comércio e a aceleração das trocas comerciais, o outro se transformou em um competidor, um rival, e não vimos que, no plano social, estava sendo criada outra definição de alteridade, em que o outro era um parceiro cujo destino está profundamente ligado ao nosso. Isso significa que entramos em mundo que já não é o da hostilidade e da competição, e sim necessariamente o da solidariedade, porque agora se quero sobreviver e, ainda mais, ganhar, preciso me assegurar de que o outro sobreviva e que o outro ganhe, e temos muita dificuldade em admitir isso. Essa dificuldade nos levou nesse contexto de crise a escutar idiotices como “é um vírus chinês” e “o vírus é um inimigo do povo americano”, como afirmou o presidente dos Estados Unidos. Donald Trump não entendeu que o verdadeiro significado da mundialização está na criação de necessidades de integração social que devemos satisfazer urgentemente, do contrário nos encaminharemos ao desastre.
P. O senhor defende que é a fraqueza, e não a força, que rege o mundo globalizado em que vivemos. A que se refere?
R. Em um mundo inclusivo, interdependente e móvel, é o fraco que decide enquanto o poderoso está perpetuamente em uma posição reativa e defensiva. Devemos levar muito a sério as novas necessidades de segurança humana já que dos segmentos de população mais inseguros, frágeis em termos de saúde, economia, alimentação e condições climáticas, vem necessariamente o risco mais agudo da crise. Não devemos nos esquecer que esse vírus nasceu em um mercado de Wuhan caracterizado por uma grande precariedade sanitária. A vulnerabilidade de nossas sociedades extraordinariamente sofisticadas é, em última instância, bem alta. Entramos em um mundo invertido em que a lógica da fraqueza é a lei. Isso se observa em outros conflitos que ameaçam o planeta como o Sahel, Oriente Médio, a bacia do Congo e o Chifre da África, que continuam sendo áreas de grande fraqueza e que, de certo modo, conformam a agenda internacional.
P. Por que os Estados continuam priorizando o investimento militar para garantir sua segurança, sem se preocupar com os focos de vulnerabilidade que o senhor menciona?
R. Vivemos durante séculos e séculos com a ideia de que o que nos ameaça e causa nossa insegurança é de natureza militar e interestatal. No mundo de hoje gasta-se por volta de dois trilhões de dólares (10 trilhões de reais) em orçamento militar. Precisamos admitir que essa competição só adula a arrogância dos Estados e não tem nenhuma eficácia em termos humanos. O Programa das Nações Unidas ao Desenvolvimento deixou claro em um relatório de 1994 que a principal ameaça ao mundo era a humana, a alimentar, a sanitária, a ambiental, entre outras, e ninguém, nenhum líder do planeta levou a sério essa advertência, seguindo os incertos caminhos do investimento militar. Se pelo menos essa crise servir para que os dirigentes que até agora não estavam à altura de sua responsabilidade, e que não quiseram ver o que estava diante de seus olhos, levem a sério, então terá servido para algo.
P. O que lhe inspira a guinada keynesiana que de repente impregna o discurso de alguns políticos mais conhecidos por sua orientação liberal como Donald Trump e Emmanuel Macron?
R. É preciso lembrar que o social foi assassinado pelo neoliberalismo e relegado a um mero efeito de goteira. A famosa fórmula tão elogiada pelo Banco Mundial de que “o crescimento é bom para os pobres” porque acabarão se beneficiando de seus efeitos, reflete a maneira como o social foi concebido nos últimos 30 anos. Se hoje os profetas do neoliberalismo estão se transformando em promotores da economia social é porque concebem, diante da catástrofe atual, que já não será possível fazer o mesmo que antes e que será necessário voltar aos imperativos sociais.
P. Acha que essa mudança social será duradoura?
R. É muito cedo para saber se irá se manter após a crise ou se as velhas práticas voltarão. Há um sinal de otimismo, entretanto, no fato de que o novo foco dessa direita que se confundia com o ultraliberalismo, responsável pelo desmantelamento dos serviços públicos, foi anterior à crise sanitária. O ano de 2019 foi extremamente turbulento com a proliferação de movimentos sociais em todo o mundo e isso teve consequências. A prova disso é, por exemplo, o tom social adotado por Boris Johnson no Reino Unido durante as últimas eleições legislativas. A ideia de investir em questões sociais praticamente se transformou no slogan do Partido Conservador Britânico. Acho que isso significa que essa redescoberta do social não depende totalmente do medo ao coronavírus, há algo mais, e isso me faz pensar que, aconteça o que acontecer, nunca voltará a ser o mesmo.
P. A União Europeia está sendo muito criticada por sua incapacidade de proporcionar uma solução comum contra a pandemia da Covid-19...
R. Essa é, de fato, a grande decepção dessa crise, e talvez o ponto mais obscuro. A Europa esteve até agora, e quero ser muito cuidadoso com minha formulação, em um nível zero de integração. Ou seja, uma incapacidade total, não digo parcial, para dar uma resposta integrada a uma crise que, comparada com todas as que enfrentamos, é exatamente a que precisa de mais solidariedade. Esse fracasso pôde ser observado tanto no plano sanitário, com a ausência de coordenação entre Estados membros —cada Estado faz do seu jeito e frequentemente de maneira contraditória—, como econômico, com um BCE (Banco Central Europeu) cuja primeira ação foi totalmente desastrosa e causou uma espécie de quebra nas Bolsas que poderia ter sido ainda mais considerável.
P. Christine Lagarde corrigiu isso ligeiramente depois, concorda?
R. É verdade que existiu uma pequena inflexão, em ritmo forçado, mas a verdade é que continuamos sem ter acordo sobre os Eurobônus (ou coronabônus), no meu entendimento, a maior expressão do que se pode fazer juntos para enfrentar a crise financeira que se aproxima no horizonte. O problema é que ainda que consigamos chegar a uma solução comum, o dano já está feito. Estamos vendo o verdadeiro rosto da União Europeia e suas lacunas no plano da solidariedade. Outro aspecto com o qual precisamos nos preocupar é por que não importa qual seja a questão na UE, encontramos essa distância entre o norte e o sul? E isso desde Maastricht. Acabará tendo efeitos catastróficos e podemos até nos perguntar se algum dia acabaremos por ter duas Europas.
P. O que resta da governança global diante da retomada soberanista que estamos vendo nos últimos anos?
R. A inoperância da Europa é um reflexo do fracasso da governança mundial. A ação da OMS se reduz a ler todas as noites um comunicado em um inglês aproximado para pedir aos Estados que façam alguma coisa, o que é verdadeiramente desastroso quando a OMS deveria ter sido a task force no assunto, o órgão que coordena as políticas de saúde, que organiza a ajuda técnica e médica e, principalmente, que produz normas. O grande perigo é justamente a falta de padrões comuns, e que cada país continue operando por sua conta e à sua maneira.
P. A solução para sair dessa crise está, de acordo com o senhor, em mais multilateralismo e decisões comuns. O mundo atual, entretanto, está cheio de líderes nacionalistas, de Trump, passando por Bolsonaro, a Johnson. É paradoxal, não acha?
R. Acho que podemos dizer que os planetas nunca estiveram tão mal alinhados. Há uma necessidade de governança local como nunca em nossa história, e ao mesmo tempo um auge de nacionalismo que não havia sido visto até agora. Ambos são inconciliáveis. De modo que a única razão à esperança é que o nacionalismo é uma ideologia vazia que não tem nada a oferecer. Todas as tentativas de gestão estritamente nacional da crise falharam. Líderes como Johnson, Trump e até Bolsonaro, que partiram de premissas nacionalistas, e negacionistas, precisaram mudar seu discurso, cada um a sua maneira. Além disso, o desprezo desses políticos liberais pelos desafios sanitários nos leva a outro ponto essencial que abordei no ensaio L´impuissance de la Puissance, que é a flagrante impotência de um país como os Estados Unidos diante dessa pandemia. A evolução da crise nos EUA é aterrorizante e em parte se deve a essa concepção herdada da Escola de Chicago de total cegueira diante das ameaças e dramas coletivos.
P. Há outras grandes ameaças, como a mudança climática, que requerem uma ação conjunta a curto prazo. Acha que o coronavírus mudará a mentalidade dos políticos mais céticos sobre a necessidade de investir recursos antes que não se possa mais voltar atrás?
R. Logicamente, esse raciocínio é imparável. Humanamente já é diferente e politicamente, ainda mais. Humanamente, é difícil olhar os dois objetivos ao mesmo tempo ainda que estejam muito ligados, mas politicamente, o fato de que a luta contra o aquecimento global signifique gastos, esforços, sacrifícios a curto prazo para se ter conquistas a longo prazo transforma esse investimento em algo politicamente suspeito. Após essa crise, os Estados terão que investir muito para reconstruir a economia global. Aceitaremos gastar e investir muito pelo clima, ou seja, acrescentar gastos aos gastos? Sou bem pessimista.
P. Sairá algo bom dessa crise?
R. Sempre há esperança. O próprio de uma crise, aumentar o medo, é o que permite o desenvolvimento da criatividade humana e social. A crise econômica de 1929 que levou os nacionalistas a vencer nas urnas, também inventou o keynesianismo e permitiu que a economia nacional se revitalizasse até a vingança do neoliberalismo nos anos oitenta. Também foram as grandes guerras, e as mais mortíferas, que trouxeram, pelo menos na Europa, invenções absolutamente extraordinárias e que por fim permitiram a resolução de problemas que não poderiam ser resolvidos em contextos de paz e mobilização. Quanto mais forte essa crise for, portanto, mais romperá os esquemas e os círculos viciosos e por isso acho que algo positivo pode sair dela. Quando, como e por quê, não sabemos.
08/04/2020

Um zero à esquerda (Fernando Limongi)

Diante da urgência do cenário que se desenha com a eclosão do coronavírus, cientista político considera que a cartilha neoliberal primitiva de Bolsonaro e Guedes, que vê na redução do Estado o remédio para todos os males do país, deve ser ignorada como delírio de loucos e dos que acreditam em mitos.
“Victor Hugo era um louco que se julgava Victor Hugo”, disse Jean Cocteau. Com pequenas adaptações, o chiste se presta para definir o atual ocupante do Palácio do Alvorada: Jair Bolsonaro é o mito inventado por um bando de malucos.
Analistas, por dever de ofício, devem decifrar o comportamento dos políticos, conferindo racionalidade a seus atos. A tentação de atribuir cálculo ao presidente tresloucado é enorme. Diz-se que há método na loucura, que tudo não passa de encenação meticulosamente arquitetada.
Dizer que está mirando 2022 não é senão reafirmar o óbvio. Que político não tem olho voltado para os eleitores e para as próximas eleições? E Bolsonaro nunca escondeu que só pensa em sua reeleição, que esta é sua única preocupação e que, para tanto, precisa abater toda e qualquer liderança, no seu governo ou fora dele, que possa lhe fazer sombra.
Comprou briga com João Doria e Wilson Witzel porque os dois podem enfrentá-lo no futuro. Disto não se duvida. A questão é se fez as escolhas certas e se o seu comportamento destemperado lhe renderá votos.
Para dizer o mesmo de outro modo: para ser reeleito, o presidente tem que cumprir o que prometeu. Mesmos os mais fiéis, mesmo os que acreditam em mitos, precisam ser satisfeitos. E é aí que entra o coronavírus.
O destempero e a insensatez não são novidades. Bolsonaro sempre foi e será assim. O cavalão, como era conhecido no Exército, é indomável. A novidade é o desespero.
A reeleição que dava por assegurada está indo para o ralo com a desorganização da economia. As perspectivas já não eram as melhores antes da epidemia; as promessas da retomada do crescimento não passavam disso, de promessas.
Mas Paulo Guedes (ministro da Economia), tanto quanto Bolsonaro, acredita no mito que criou para si mesmo, o de que seria simples resolver os problemas econômicos do país. Rebento do neoliberalismo original, aluno de Milton Friedman, o ministro acredita que basta diminuir o Estado para que o Brasil experimente um novo surto de crescimento.
O nó da questão estaria na regulação excessiva a tolher a iniciativa empresarial virtuosa. Para a Escola de Chicago, tudo quanto o Estado faz é atender interesses especiais de grupos organizados.
Pode parecer estranho, mas o fato é que o neoliberalismo primitivo tem grande afinidade com o discurso populista. Não por acaso, ao tomar posse, Paulo Guedes encheu os pulmões para dizer que o Brasil era o “paraíso dos rentistas”, que o reino destes verdadeiros parasitas chegaria ao fim.
De forma mais elaborada, em seu discurso de posse, declarou: “Os bancos públicos se perderam em grandes problemas com piratas privados e burocratas políticos. Burocratas corruptos e criaturas do pântano político se associaram contra o povo brasileiro”.
A harmonia do casal Bolsonaro-Guedes foi consumada no altar do populismo, com apelos simplistas em defesa do povo contra elites sanguessugas. Contudo, antes da eclosão da pandemia, Guedes vinha colhendo derrota atrás de derrota. O anúncio do pibinho e das revisões para baixo do crescimento deste ano foram as mais claras delas.
E todos os economistas de prol batiam na mesma tecla: sem reformas não haveria retomada do crescimento. O consenso, contudo, repousava na indefinição da lista de reformas prioritárias e de seu conteúdo. Em um ponto, contudo, quase todos concordavam: a disciplina fiscal não poderia ser abandonada.
E aí veio a pandemia, e qual foi a reposta de Guedes? No mínimo, tão atabalhoada quanto a de seu chefe. Inicialmente, defendeu que não havia motivos para mudar de rumos, que avançar as reformas teria se tornado ainda mais premente. Ou seja, o ministro não viu razões para abandonar a sua cartilha.
Com ou sem pandemia, o remédio seria o mesmo, diminuir o papel do Estado. Quando se convenceu de que alguma medida emergencial seria necessária, só se lembrou de aliviar o lado dos empresários, assinando medida provisória permitindo a suspensão temporária do pagamento de salários.
Enquanto isto, reconhecendo o inusitado da situação, a maior parte dos economistas ouvidos pela imprensa passou a defender programas de transferência de renda para os mais afetados, independente dos seus efeitos fiscais. Momentos extraordinários pediriam medidas excepcionais, e cada um dos entrevistados contribuiu com seu elenco de medidas emergenciais a serem adotadas.
Neste debate, a equipe econômica pouco contribuiu. Foi a voz discordante no novo consenso formado. Guedes saiu de cena, refugiando-se em seu apartamento, ao mesmo tempo em que Bolsonaro armava a sua guerra particular contra o isolamento social e suas repercussões sobre a renda dos trabalhadores impedidos de correr atrás de seu sustento.
Em nenhum momento, tudo indica, sua equipe econômica o instruiu de que havia alternativas, de que os autônomos e desempregados poderiam ser assistidos por programas de transferência de renda.
E se Bolsonaro quer se reeleger, se tem uma estratégia eleitoral, não seria mais apropriado assumir a paternidade dos programas defendidos pelos economistas? A solução da charada é simples: Bolsonaro não o faz porque não é isso o que ouve de seu guru.
Em meio a seu sumiço, o ministro encontrou tempo para se reunir com investidores. Pressionado a se posicionar, afirmou que, como cidadão, apoiava as medidas de isolamento social preconizadas pelo Ministério da Saúde. Por que precisou do adendo “como cidadão”? Qual sua posição como autoridade máxima da política econômica do governo? Evitou entrar em conflito com o chefe ou o apoia?
O fato é que o ministro resistiu o quanto pôde, recorrendo a inúmeros subterfúgios, postergando a entrada em vigor do plano aprovado pelo Congresso. Provavelmente, para parafrasear um de seus ídolos, vê no programa o início do caminho que leva à servidão. Carlos Bolsonaro, com sua sutileza e tato habitual, foi direto ao ponto: quem defende programas deste tipo são os esquerdistas.
A urgência do cenário que se desenha, contudo, recomenda que Bolsonaro e a ideologia que fundamenta seu governo sejam ignorados, como são ignorados os delírios dos loucos e dos que acreditam em mitos. Aplicando a regra usada pelo presidente para identificar seus filhos, não seria inadequado tratá-lo como o zero-zero, isto é, como um zero à esquerda.
Folha de S. Paulo/ 6 de abril de 2020