sexta-feira, 26 de julho de 2019

A responsabilidade é sua, presidente (Fernando Schüler)

Passei uma semana em Washington, em um seminário, e acompanhava flashes da política americana. O assunto do momento eram os tuítes deTrump dizendo que algumas deputadas democratas, de famílias de imigrantes, deviam “voltar para seus países quebrados e infestados pelo crime”. A partir daí, o bate boca infinito. Gente respeitável chamou o presidente de racista e pediu seu impeachment. Do outro lado, a multidão gritava “mande-a de volta”, no comício seguinte de Trump.
De volta ao Brasil, a sensação incômoda. Eventos distintos com uma lógica constrangedoramente parecida. O mundo político discute o uso do termo “paraíba”, pelo presidente, e se ocupa com as provocações de sempre de Bolsonaro, que vão de uma opinião irrelevante sobre o filme “Bruna Surfistinha” à sua (quase inacreditável) insistência em emplacaro filho como embaixador nos EUA.
De fato, há um problema aí. Em primeiro lugar, a lógica da guerra cultural continua dando as cartas em nosso jogo político. O Congresso pode discutir a reforma tributária, a MP da liberdade econômica ou as regras para o financiamento eleitoral, mas o que parece mobilizar a opinião pública é a futrica do dia sobre se o presidente foi ou não aplaudido em sua ida ao Nordeste ou seu último quiproquó com Gregorio Duvivier ou algum divergente.
O presidente é o principal responsável por esta lógica, em que pese esteja longe de ser o único. Não há o que estranhar nisso. Bolsonaro é um produto da guerra cultural. É neste terreno que ele foi eleito. Seu sucesso e seu estilo de fazer política são, em grande medida, o resultado de um país que já vinha polarizado há muito tempo. Apenas inverteu a mão.
É possível ir um pouco além e especular que este dualismo entre os temas “sérios” da política e o universo da estridência cultural seja uma marca da democracia atual. O que nos leva a um paradoxo: os temas menos relevantes para a vida real das pessoas são os que obtêm audiência e terminam por pautar o mundo político. Nunca é demais lembrar: o tuíte mais popular lançado por Bolsonaro foi precisamente o mais inútil e bizarro: o que é golden shower?
Em boa medida, isto sempre foi assim. Os cidadão comum tem pouco ou nenhum poder na formulação do novo mercado do gás, no programa de privatizações e nos temas complexos da política pública. E nenhuma responsabilidade na sua condução. Por que diabos alguém perderia um chope com os amigos para estudar este tipo de coisa?
O que de fato há de novo, hoje em dia, é que o cidadão comum ganhou voz ativa na política. Ele possui um teclado e uma câmara à sua disposição e pode dizer o que lhe dá na telha, sem filtros, todos os dias. E de alguma maneira passou a dar o tom da política.
O líder populista é o tipo que aprendeu mais rápido a lidar com este universo caótico e não por acaso está em alta nas democracias. É o caso de Bolsonaro. Sua lógica parece clara: vivemos em uma sociedade polarizada, sem consenso possível, e a estratégia política viável é dobrar a aposta na própria polarização. Neste plano, é ótimo que o governador da Bahia não vá na inauguração do aeroporto de Vitória da Conquista e que tudo vire um bate-boca na internet. E está longe de ser um mau negócio dar uma declaração esdrúxula e ser chamado de “fascista” pela oposição de sempre.
Bolsonaro não apenas funciona como o ilusionista chefe, em nossa guerra cultural, como atrai seus opositores para o mesmíssimo jogo. O sistema político se retroalimenta da polarização. E nem de longe imaginem que a boa e velha imprensa profissional escapa desse cenário.
Quem sabe seja esta a cara da nova democracia e estejamos, enfim, todos felizes. O presidente no seu figurino de combate, a oposição fazendo as vezes de guardiã da democracia, enquanto o mundo digital se diverte.
O ponto é que isto tem um limite. Nossa democracia não está em risco, mas sua eficiência para produzir consensos mínimos e produzir decisões difíceis certamente está. Se todos são responsáveis por mudar os termos do jogo político, a verdade é que a maior responsabilidade cabe ao presidente. Ele é o ator central da dinâmica política, sendo sua primeira tarefa compreender que não preside um pedaço do país, mas um país por inteiro.
Não se trata propriamente de uma tarefa simples, mas a responsabilidade é intransferível. Ela é sua, presidente.
Folha de S. Paulo/25 de julho de 2019

A equação bolsonarista supõe ser impossível a união dos demais (Alon Feuerwerker)

Já está explícito que o objetivo do presidente Jair Bolsonaro é a reeleição. Dois obstáculos têm potencial para bloquear esse desfecho. Um importante é a economia. O projeto continuísta vai sofrer se o crescimento e o emprego não trouxerem novidades boas em dose suficiente. Mas, como mostra o exemplo argentino, mesmo um governo muito aquém na economia pode ser eleitoralmente competitivo, basta tornar impossível a união dos demais.
Há alguma idealização histórica sobre a frente ampla que, no final, promoveu a transição dos governos militares para a Nova República em 1984-85. Histórias oficiais têm um componente de embelezamento artificial. Quem olha as fotos das Diretas Já pode achar, erradamente, que aquela turma esteve sempre unida contra o regime de 1964. Engano. Boa parte ajudou a derrubar João Goulart, e só foi passando à oposição por falta de espaço político no lado vencedor.
E o processo levou vinte anos.
Quando o PT chegou ao segundo turno ano passado, parte da campanha petista acreditou ser quase natural retomar, agora contra Bolsonaro, aquela frente ampla de trinta e tantos anos antes. O investimento de tempo e energia teve retorno paupérrimo. Pois aderir à frente pró-Fernando Haddad implicava manter o PT no poder. Diante do custo, a esmagadora maioria das supostas forças democráticas preferiu a eleição de um entusiasta do regime militar.
É um erro primário olhar tais coisas pela lente da emoção e dos juízos morais. É só política.
Onde estão os maiores riscos políticos de Bolsonaro? Um é a possibilidade de o autonomeado centro liberal preferir a volta do PT à continuidade do bolsonarismo. A probabilidade de isso acontecer em prazo curto é a mesma que havia de vingar a Frente Ampla de Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e João Goulart quando ficou claro o desejo continuísta dos vencedores de março/abril de 1964. Algo perto de zero.
Outro risco é a direita dita de centro, pulverizada nas urnas, recolher o apoio da esquerda, especialmente do PT, por uma alternativa de viés econômico bolsonarista atenuado e sem Bolsonaro. E com algumas concessões à pauta multiculturalista, identitária e ambiental. Não está no horizonte, pois implicaria concessões econômicas e políticas à esquerda, e o primeiro político dito de centro que as propusesse seria, na metáfora, guilhotinado em praça pública pela base.
Mas a esquerda poderia eventualmente apoiar um bolsonarismo sem Bolsonaro em troca de alívios pontuais, desde que estivesse totalmente esmagada no canto do ringue. Por enquanto não é o caso. Diferente do pós-64, a esquerda mantém poder nos estados e municípios. E o movimento sindical e popular de esquerda foi lipoaspirado mas preserva o esqueleto, e espaços bem razoáveis na esfera dos debates públicos.
E a Lava-Jato parece ter deixado para trás seu momento de glória consensual.
Ou seja, mantido o estado das variáveis, o mais provável é continuar a polarização nacional entre o bolsonarismo e a esquerda, com vagidos centristas aqui e ali. Pois conter o aparecimento de um competitivo direitismo maquiado de centrismo, e sem Bolsonaro, interessa a ambos. E o melhor caminho para tanto é um continuar escolhendo o outro como adversário principal. E esperar para decidir no mano a mano em 2022. Ou em 2026. Ou…
Esse é o racional da coisa. Mas nem sempre as decisões na política são racionais. E erros acontecem. Especialmente quando o poder opera no limite da radicalização, o que parece ser o caso. E, como frequentemente lembramos aqui, a coisa mais difícil de prever, e portando de se preparar para quando vier, é o imprevisível.
Blog do Noblat/21 de julho de 2019

Resquícios quentes da guerra fria (Sergio Fausto)

Em palestra recente na Fundação Fernando Henrique Cardoso, o general de exército Sérgio Etchegoyen, hoje na reserva, ressaltou a importância de superarmos em definitivo o enquadramento ideológico típico da guerra fria. Em termos simplificados, este se caracterizou pela polarização entre o Ocidente cristão, capitalista e parcialmente democrático, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco socialista, ateu e totalitário, sob a hegemonia da União Soviética. Adoto propositalmente os termos da época para ilustrar o denso caldo ideológico em que o mundo e o Brasil estavam mergulhados.
A observação do general Etchegoyen é espantosamente oportuna. Custa a crer que 30 anos após a queda do Muro de Berlim tenha não apenas sobrevivido, mas recobrado força entre nós o modelo mental que caracterizou a guerra fria.
O bolsonarismo reavivou o fantasma da comunização do País para conquistar corações e mentes pela manipulação de medos, ainda que imaginários. Culpar o bolsonarismo pode confortar o espírito, mas não explica por que a estratégia funcionou. A verdade é que o PT propiciou à ultradireita a possibilidade de ressuscitar a “ameaça comunista”. Mesmo com a Venezuela chavista e a presença cubana no país vizinho, ela teria caído no vazio não fossem a ambiguidade ideológica do PT e as simpatias de seus governos pelos de Chávez-Maduro e dos irmãos Castro. Não apenas o partido facilitou a retórica bolsonarista, como também a mimetizou, ao acusar a Operação Lava Jato de estar a serviço do imperialismo norte-americano.
Com o colapso da economia venezuelana e a perda de influência do chavismo na região, a verossimilhança da suposta ameaça comunista está em rápida decomposição.
Como não pode prescindir da produção de medos, há outra ameaça em ascensão no arsenal do bolsonarismo: a perda da soberania nacional pela suposta ação sub-reptícia de ONGs que, a pretexto de defender o meio ambiente, atuariam como instrumento de potências estrangeiras interessadas em explorar os recursos naturais do Brasil. Muda o conteúdo, mas o modelo mental é exatamente o mesmo: interesses antagônicos ao Brasil agem por intermédio de organizações de fachada para tolher ou suprimir os verdadeiros interesses nacionais.
Teorias da conspiração tinham maior aderência à realidade geopolítica da guerra fria do que à do mundo contemporâneo, embora mesmo naquela época se prestassem a exageros e servissem à justificação de intervenções militares e derrubadas de presidentes eleitos. Se antes tinham um pé na realidade, agora as teorias da conspiração flutuam ao sabor da paranoia e da desinformação manipulada politicamente.
A suposição de que as ONGs ambientalistas de hoje sejam como os Partidos Comunistas de ontem e obedeçam ao comando de governos estrangeiros é sintoma de que ainda sobrevivem modelos mentais que deveriam ter sido ajustados à nova realidade do Brasil e do mundo há pelo menos 30 anos. Revela, além disso, incompreensão da dinâmica de sociedades abertas e democráticas num mundo cada vez mais integrado. Não é demais lembrar que foi Vladimir Putin que começou a moda de perseguir as ONGs que denunciavam a deriva autoritária de seu regime.
As ONGs não são os únicos nem necessariamente os melhores representantes das causas que advogam, como por vezes se arvoram. Mas tampouco são correias de transmissão de governos e Estados nacionais. São produto da busca da sociedade civil por um espaço de relativa autonomia diante do Estado e do mercado. ONGs globais têm conflitos com governos e empresas em seus países de origem, assim como nos países onde atuam por intermédio de suas representações locais. Conflitam, mas também cooperam, na concepção e implementação de políticas públicas. São especialmente atuantes na área do meio ambiente, por motivos nada misteriosos: nela estão em jogo questões globais, em especial a mudança do clima do planeta, uma preocupação de todos, em particular das gerações mais jovens.
Interpretar essa nova realidade nos moldes da guerra fria é de um anacronismo atroz e perigoso. Sem arranhar a sua soberania, o Brasil tem muito a ganhar num jogo de soma positiva com as ONGs ambientalistas, convergindo no essencial, ainda que eventualmente divergindo em pontos específicos, assim como bastante a perder num jogo de antagonismo sistemático que fornecerá razões ou puros pretextos para a imposição de barreiras protecionistas às exportações do nosso agronegócio.
Exemplo extremo da paranoia em relação às ONGs ambientais pode ser encontrado em livro editado pela ultradireitista Tradição Família e Propriedade (TFP), intitulado Psicose Ambientalista. Nele o autor, Bertrand de Orleans e Bragança, bisneto da princesa Isabel, sustenta que o ambientalismo nada mais é do que a reencarnação, sob novas vestes, verdes e não mais vermelhas, da ameaça comunista.
Que um extravagante reacionário sustente essa tese estapafúrdia é irrelevante. Outra coisa é o presidente da República citar o título do referido livro para descrever depreciativamente a preocupação do mundo com a Amazônia em encontro com Merkel e Macron, como fez Bolsonaro em reunião recente do G-20. Ainda mais quando secundado pelo chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, militar de prestígio e principal ministro do governo, que em conversa com jornalistas, depois de mandar lideranças europeias “procurarem sua turma”, repetiu o surrado argumento de que as ONGs ambientalistas são pontas de lança de países estrangeiros interessados em bloquear o desenvolvimento do Brasil.
Tem razão o general Etchegoyen: está mesmo mais do que na hora de superar a mentalidade da guerra fria.
O Estado de S.Paulo/20 de julho de 2019

Pálidos apocalipses (Eugênio Bucci)

Cena 1. Dúvidas no lugar da fé. Ainda é cedo para saber se o papa Francisco terá sido o Gorbachev do Vaticano. Ainda é cedo para saber se o atual pontífice, em nome de purificá-lo, não vai ferir de morte o organismo que o destino o encarregou de conduzir. O líder soviético de nome Mikhail Gorbachev fez algo assim quando escancarou os males do stalinismo com suas glasnost e perestroika. Inadvertidamente, ou mesmo de propósito, abriu chagas que mataram de hemorragia o império comunista. Talvez Gorbachev estivesse certo. Talvez não houvesse nada ali para preservar. Ou talvez estivesse errado. Não sabemos ainda. Sabemos apenas que o legado de Lenin se estilhaçou no dia em que um líder se prontificou a exorcizá-lo de seus defeitos mais atrozes. E quanto ao Vaticano? Estará o papa Francisco entregue à mesma sina? Suas tentativas – tíbias – de punir prelados pedófilos trará mais fraqueza do que força para a sua igreja? Há católicos, deveras conservadores, que temem esse desfecho. Não o declaram, porém. Ainda é cedo para saber. A incerteza cala fundo.
Cena 2. Dia desses, coisa de um mês atrás, o ministro da Justiça, Sergio Moro, deu de comparecer ao um estádio de futebol em Brasília. Na tribuna, ao lado do presidente da República, ficou de pé e vestiu uma camisa do Flamengo sobre seu uniforme social de autoridade pública. Moro esboçou um sorrisinho. Populares logo abaixo aplaudiram. Festejos futebolísticos. Por um instante, ou mesmo dois, soou ali um fundo musical inaudível, mas real. Era possível pressentir a voz de Jorge Benjor, uma voz antiga, ainda do tempo em que Jorge Benjor era apenas Jorge Ben, interpretando a música País Tropical. Mas há uma mudança de sentido. Agora, na letra, o verbo morar, de “moro num patropi”, soa como sobrenome: “Moro num patropi”. A canção que celebrava a malandragem e zombava da oficialidade se inverte por inteiro. O ministro e seu poder se entronizam no estádio de futebol, enquanto os “camaradinhas” de Jorge Ben, sem “jor”, talvez ouçam a canção com travos de desconfiança.
Cena 3. Agora é Maracanã. Maracanã na veia. Não faz nem duas semanas. Final de jogo. Brasil campeão da Copa América. O chefe de Estado se escarrapacha no gramado, segura a taça com as duas mãos, emoldurado pelo escrete canarinho em peso, aos gritos, em júbilo. Repórteres presentes registraram ter ouvido vozes, de jogadores ou de gente da comissão técnica, chamando o governante de “mito”. No chocante e inaudito congraçamento entre o ludopédio bilionário e o bonapartismo da era digital, algo de uma explicitude obscena, em que o suor dos atletas manchava o terno do presidente, outra pérola do cancioneiro ecoou – imaginariamente – e, de novo, com os sinais invertidos. Há décadas e décadas Chico Buarque entoava o verso “minha cabeça rolado no Maracanã” e ia por aí. “Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela/ Eu achei que era ela puxando o cordão”. Naquelas eras, deveras priscas, tinha havido uma campanha de rua, com passeatas e comícios, pedindo eleições diretas para presidente da República. A cor símbolo da campanha era o amarelo.
Era amarelo pelas diretas. Era amarelo contra a ditadura militar. O tempo passou, o tempo rolou pelas estribeiras e o amarelo mudou de lado, veja você.
Cena 4. Evocações de outro naipe ao conservadorismo católico supramencionado. Tradicionalistas apostólicos romanos se deixam empolgar com o novo governo. Um ajeita o nó da gravata amarronzada e sedosa enquanto posa para o fotógrafo do jornal. Paredes de lambri. Uma fagulha nos olhos. Ou mesmo duas. Ele crê, pois crer é da essência do ser, que o poder estabelecido no Planalto vai propulsionar os valores que contam: casamento, família, castidade, sem aborto, sem socialismo, sem modernices. Em seu êxtase – meio místico, meio político –, ele não nota que o trio elétrico do tele-evangelismo neopentecostalíssimo atropela, como tanque de guerra, os umbrais de Pedro. O neofascismo alegadamente cristão vai reduzir os templos católicos a peças de museu – e vai glorificar as frenéticas marchas bíblico-carnavalescas e seus pregadores trilhardários. Mirando a lente do fotógrafo, o conservador apostólico romano tenta sorrir, mas não acerta.
Cena 5. Esquerda sem discurso. A trajetória do socialismo em terras brasileiras descreve um arco prosódico, pontuado de tiros aqui e ali. A esquerda fala. Sempre foi assim. Deu-se, contudo, esse mutismo, essa consternação silente e acabrunhada. Qual a proposta dos partidos de esquerda para a reforma da Previdência? Ninguém foi informado. Votaram contra por quê? Ninguém entendeu. Mutismo não é de esquerda. Esquerda apática não é esquerda. Esquerda deprimida não é revolucionária. Esquerda intimidada pela euforia do boçalismo é a negação da negação da negação de Rosa Luxemburgo. Num país em que só os boçalistas falam, só os boçalistas falam alto, a esquerda balbucia “Lula livre”. Quem sabe ele saiba o que dizer.
Cena 6. Mais um presságio musical. Uma vez, os compositores Diogo Mulero, conhecido por Palmeira, e Zairo Marinoso de Carvalho entregaram ao cantor Francisco Petrônio o Baile da Saudade. Quando o século 20 ainda era sinônimo de futurismo, a valsa embalou casais de cabelos tingidos em salões que, só por isso, acabaram merecendo uma segunda chance sobre a Terra. A letra idealizava os tempos idos: “Ai que saudade eu tenho dos bailes de outrora”. Os brucutus que hoje governam também têm saudades de bailes de outrora. “America great again”, diz Donald Trump. Great como antigamente. Vai aí mais um traço de fascismo: a ideia fixa de ressuscitar um passado mítico que jamais existiu de fato. Em seu Baile, Francisco Petrônio cantava que tinha “saudade das varandas e dos coronéis”. O boçalismo que aí está tem nostalgia do coronelismo e já toma providências para restaurá-lo, com as milícias e outras armas.
O Estado de S.Paulo/18 de julho de 2019

Tabata Amaral e a esquerda (Paulo Fábio Dantas Neto)

A voz da deputada federal Tabata Amaral (PDT/SP) tem sido, politicamente, a mais completa dentre as sensatas e lúcidas que têm sido ouvidas ultimamente na política partidária brasileira. Sim, porque em meio ao aparente deserto em que estamos vivendo, sensatez e lucidez tem havido na direita, no centro e na esquerda. Dou como exemplos, dentre outros, Rodrigo Maia e ACM Neto, no DEM; Fernando Henrique Cardoso, no PSDB; Eduardo Jorge, no PV, Jacques Wagner, no PT. Cada um desses no seu papel, tem atuado para defender a política e as instituições dos perigos da polarização ideológica e cultural. Importante, especialmente, o papel construtivo e crucial que tem tido Maia na presidência da Câmara, como contraponto ao ânimo destrutivo do presidente da República, sua família, seu entourage e gurus. Trata-se de uma atitude necessária, do ponto de vista da conservação das instituições. Mas ela não é suficiente, do ponto de vista da construção de um novo polo político democrático.
Tabata Amaral também está ajudando a conservar instituições democráticas e indo além. Ela inspira (e promove) renovação política. Sendo a jovem que é e tendo as qualidades pessoais e políticas que tem, estabelece contraste poderoso com contrafações anti políticas, de vários tipos, que têm usado a grife "nova política" para auto promoção de personagens que mais parecem mirar a fama do que a vida pública. Ela, ao contrário, assume, com maturidade rara, as implicações de ter optado por buscar um mandato eletivo, numa democracia. Em vez de demonizar negociações e acordos, argumenta que são necessários; em vez de alinhar-se a uma das turmas da guerra cultural em que se quer converter a política brasileira, tem mostrado capacidade de refletir, de opinar sobre as matérias de modo sério e qualificado, como fez com a reforma da Previdência.
Aceitou com realismo a ideia de que o Brasil não poderia mais adiar essa pauta, mas fez isso sem se alinhar previamente ao conteúdo dado a essa ideia pelo mercado, ou pelo governo, afastando-se claramente de uma defesa ideológica ou fisiológica da reforma. Atuou criticamente, mas responsavelmente e nisso diferenciou-se, também, da maior parte da esquerda e da centro-esquerda brasileiras, que tomaram, seja por equívoco, atraso, oportunismo, ou pelas três coisas (isso pouco importa ao que quero dizer), o rumo da negação da realidade pela mistificação populista. Apoiou a ideia de uma reforma como necessidade do Brasil, um dos passos importantes para que haja o equilíbrio das contas públicas, condição sem a qual naufraga a ideia de uma renovação nacional com mais justiça social e mais pluralismo democrático nas instituições e nos costumes - ideia que, como parlamentar, ela tem representado. Desse modo, ela vem se tornando um canal de reconexão da política institucional com camadas sociais e pessoas abertas a energias positivas de renovação, aquelas energias que podem promover mudanças sem romper o fio da trajetória democrática inaugurada na década de 1980.
A deputada Tabata Amaral e outros que, como ela, estão hoje colocados na berlinda pela reação sem horizontes de quem empurrou a esquerda brasileira para um beco sem saída são figuras preciosas também - e muito especialmente - por serem de esquerda, por assim se declararem e por assim desejarem se manter. Qualquer que seja o caminho político que democratas brasileiros (à esquerda, ao centro e à direita) encontrem para defender nossa democracia dos seus adversários que hoje estão no governo, será preciso que os ventos da renovação alcancem a margem esquerda da nossa política, onde está difícil alguém ficar em posição de conforto sem rezar a cartilha da esquerda negativa.
Políticas e políticos como Tabata Amaral são esquerda positiva, comprometida com a tradição de ação política contra desigualdades de todos os tipos e de respeito às diferenças culturais e individuais. Precisam ser acolhidos por quem assim pensa, para que sua atuação seja viável nesse nosso velho e controverso território da esquerda. Nesse sentido, é por todos os ângulos lamentável que Ciro Gomes (cujas credenciais de esquerda são mais duvidosas do que as de Tabata Amaral), em vez de lhe oferecer oxigênio no partido que ela até aqui não renegou (enquanto Ciro já trafegou por vários), esteja formando ao lado dos que intencionam sufocar a renovação responsável que ela expressa.
Agindo assim, Ciro vira as costas a eleitores que, em 2018, conscientemente ou não, tiveram sensibilidade política e social de centro-esquerda e, entendendo também, com realismo, a importância do diálogo com os liberais, marcharam consigo nas eleições, acreditando ser ele uma alternativa social e democrática à política do PT. Se era para ficarmos com o mais do mesmo, quer dizer, se era para vê-lo defender postulados e quadros da velha política corporativo-estatal da qual o PT acabou se fazendo herdeiro, por que trocar esse original mais contemporâneo por um genérico cúmplice de visões ainda mais antigas, como as de notórios dirigentes do seu partido?
Na controvérsia entre Tábata Amaral e a direção do PDT, o ponto politicamente mais relevante não é se ela foi disciplinada, ou não. Evidentemente, não foi. O ponto é por que, nas condições de fragilidade em que se encontram a esquerda e a centro-esquerda no Brasil, um partido de centro-esquerda fecha questão contra a reforma da Previdência, mesmo havendo, na sua bancada, tantas opiniões conflitantes. Mesmo que não quisesse rever seus postulados anacrônicos, não seria mais prudente reconhecer, ao menos, a divergência do que tentar cobri-la com o tapete da disciplina?
(*) Cientista político e professor da UFBa.
15 de julho de 2019

‘O bolsonarismo é uma ideologia do porão da ditadura’ (Celso Rocha de Barros/entrevista)

Cientista político identificado com a esquerda, ele defende o diálogo com economistas liberais, critica a postura do PT em relação às contas públicas e vê a questão ambiental como a “maior tragédia” do início de governo
18 perguntas para Barros
1. Como o senhor vê as relações entre o bolsonarismo e o lavajatismo antes e depois dos vazamentos dos diálogos entre o ex-juiz Sergio Moro e procuradores?
Sempre houve alguma intercessão entre lavajatismo e bolsonarismo, e essa confusão certamente ajudou Bolsonaro, um deputado medíocre do baixo clero, sem qualquer histórico de combate à corrupção, a se eleger. Mas sempre houve diferenças importantes. O lavajatismo tem origens em aspirações inteiramente legítimas de combate à corrupção, e o apoio popular à operação reflete os resultados obtidos no desvendamento dos escândalos. Sempre houve algo de messiânico e alguns abusos eram conhecidos, mas isso não quer dizer que os lavajatistas apoiassem Ustra, ou a ditadura militar, ou a tortura. O partido mais claramente identificado com a Lava Jato era a Rede Sustentabilidade, que não tinha nada de extremista, muito pelo contrário.
Moro sempre foi maior que Bolsonaro diante da opinião pública, o que claramente incomoda o presidente da República. Depois da Vaza Jato, Moro é que passou a precisar do apoio de Bolsonaro. Bolsonaro apoia Moro, mas faz questão de que esse apoio se dê em termos bolsonaristas: com ofensas à sexualidade de ( Glenn ) Greenwald, fake news etc. A ideia é queimar Moro com os moderados e trancá-lo no campo bolsonarista, levando a Lava Jato junto.
2. Como o senhor define o bolsonarismo ? “Populismo” dá conta desse fenômeno político e cultural?
A impressão é que talvez Bolsonaro seja um autoritário old school demais para ser um populista eficiente. Não me parece claro que o público tenha noção de quanto Jair Bolsonaro é radical: ele é muito mais parecido com o fascista francês Jean-Marie Le Pen do que com sua filha, a populista de direita Marine.
3. O senhor já se referiu ao governo Bolsonaro como um “regime de mobilização permanente”. Por quê?
Bolsonaro continua buscando a mobilização de sua base contra as instituições. É importante diferenciar o tipo de mobilização do bolsonarismo do ativismo social saudável. Uma sociedade civil forte impõe limites ao poder. A mobilização em favor do Poder Executivo contra o Legislativo e o Judiciário tenta retirar esses limites.
4. Quais os antecedentes históricos brasileiros do bolsonarismo?
Bolsonaro pertence à linhagem dos militares que não aceitaram a abertura democrática iniciada por Geisel. Por isso o culto a Brilhante Ustra: o bolsonarismo é uma ideologia do porão da ditadura, não é do general, não é do presidente militar. É a visão de mundo do sujeito que torturava comunistas e depois entrou para o esquadrão da morte, para garimpo ilegal, para jogo do bicho. Daí, também, o elogio às milícias. É sempre bom lembrar que Bolsonaro tentou colocar bomba no quartel por aumento salarial já nos anos 80, e que Geisel teve tempo de referir-se a ele como “mau militar”. Acho que a maior parte do público brasileiro não tem coragem de admitir quão radical é o presidente que elegemos.
5. Como o senhor analisa a tensão entre a base mais orgânica do bolsonarismo e a estrutura partidária do PSL?
Acho que é a luta entre quem quer fazer um partido de direita populista “normal” — que vence eleições, disputa cargos etc. — e quem quer construir um movimento autoritário. Boa parte dos deputados do PSL quer seguir uma carreira política normal, mas a ala olavista comandada por Eduardo Bolsonaro quer um movimento contra as instituições, contra a democracia.
6. Como o senhor vê a correlação de forças dentro dos maiores partidos do Congresso, o PT e o PSL?
O PT sempre teve uma divisão interna entre moderados e radicais, mas acho que a principal cisão atual é entre governadores e parlamentares, entre quem precisa de voto de fora dos 30% de esquerda para se eleger e quem não precisa. Não acho que a ênfase no “Lula Livre” seja o problema. Acho que o pessoal foca no “Lula Livre” justamente porque não consegue fechar uma posição do partido sobre outras questões, e “Lula Livre” é algo com que toda a militância concorda.
O PSL se tornou tão disfuncional que é até difícil de analisar. Quando a legenda saiu das urnas com uma bancada daquele tamanho, todo mundo achou que atrairia adesões e se tornaria um partido muito grande. Mas pouca gente quis entrar em uma legenda tão cheia de fanáticos ideológicos, que o próprio Bolsonaro parece disposto a abandonar.
7. O senhor é um intelectual associado à esquerda política, mas sempre adotou um registro moderado em suas colunas na Folha. Há alguém, entre os liberais e os conservadores que estão se opondo ao atual governo, com quem o senhor acha possível construir pontes e coalizões, ainda que circunstanciais?
É muito possível, e é obrigatório. Acho que há amplo espaço para conversar com os liberais, e muitos dos grandes economistas liberais brasileiros têm evidente aversão a Bolsonaro. Mesmo que não se chegue a um acordo com eles sobre todas as reformas, e não custa nada conversar sobre isso também, é inteiramente viável estabelecer uma convivência razoável em que todos se unam quando a liberdade brasileira estiver sob ataque. E não, não tem problema se cada um apoiar seu próprio candidato em 2022. No campo conservador é mais difícil, embora seja possível pensar em alguns nomes — o Reinaldo ( Azevedo ), o ( Carlos ) Andreazza. Mas a verdade é que a crise mostrou que falta conservadorismo político no Brasil, no sentido preciso do termo: durante toda a crise, faltou a visão de que quebrar os partidos e o sistema político era fácil, difícil era construir outra coisa no lugar. O que sobra é conservadorismo moral e extremismo populista.
8. O senhor acha que houve omissão da esquerda com relação a temas como reforma da Previdência e segurança pública e que isso acabou jogando esses temas no colo da direita?
Acho que sim. Não se deve transigir em nada na defesa dos direitos humanos, mas é preciso discutir policiamento, repressão ao crime. O trabalhador brasileiro cujo celular é roubado na Central do Brasil e vai ter de continuar pagando as prestações do aparelho vai acabar votando na extrema-direita se a esquerda não tiver uma proposta para impedir que isso ocorra de novo.
9. O senhor tem sido muito crítico em relação aos programas econômicos do PT. O que um programa progressista e responsável deveria defender?
Partidos de esquerda têm de ser ambientes em que os economistas se sintam seguros para dizer, de vez em quando, “não tem dinheiro para isso”. Pegue o exemplo do Nelson Barbosa: nos últimos anos, ele vem propondo reformas que procurem conciliar equilíbrio fiscal com preocupação com os pobres. Você pode gostar ou não das propostas dele, mas é algo que ele vem tentando. Aí, quando sai o programa do PT para a eleição de 2018, não tem quase nada das propostas do Nelson.
À exceção de um trecho bem tímido sobre Previdência, não havia quase nada que demonstrasse preocupação com o estado das contas públicas. Isso era contrário, inclusive, ao que fizeram as boas administrações petistas. A gestão Haddad na prefeitura de São Paulo foi fiscalmente responsável, como a de Erundina já havia sido. É possível que isso seja efeito um pouco das ideias de esquerda dos anos 60, que, para se distanciar do marxismo ortodoxo, que era ultraeconomicista, acabou falando mais de política e cultura do que de economia.
10. Há alguma hipótese plausível de uma força da esquerda brasileira se mostrar uma alternativa viável ao eleitorado evangélico a médio ou longo prazo?
Sem dúvida. Em primeiro lugar, porque os evangélicos não são só evangélicos. São trabalhadores brasileiros que têm seus próprios interesses e desejam políticas públicas que a esquerda sempre defendeu, como saúde e educação públicas. Mas também é possível que os fiéis se tornem mais tolerantes à medida que fique claro, por exemplo, que o casamento gay é uma afirmação da família, não o contrário. Agora, é claro que o respeito à fé de todos os fiéis deve ser absoluto.
11. Quais lições de sua formação de esquerda lhe parecem úteis na interpretação da política contemporânea? E quais lhe soam descartáveis ou pelo menos datadas e inadequadas?
Houve debates que a esquerda ganhou, como o da desigualdade: é difícil encontrar um sujeito sóbrio que não reconheça que o Estado deve evitar que o fosso entre pobres e ricos se torne imenso e intransponível. Na última eleição, quase todos os candidatos defendiam taxar juros e dividendos. Não era assim, foi a esquerda que levou essa briga adiante. Por outro lado, a esquerda precisa deixar de considerar que toda solução estatista é melhor que a solução pró-mercado. Em política econômica, ou na discussão sobre privatização, vale o que funcionar. Às vezes vai ser o Estado, às vezes vai ser o mercado, e o que interessa é que os objetivos da sociedade sejam mais bem atingidos.
12. Como o senhor enxerga a, por falta de nome melhor, “virada identitária” de parte significativa da esquerda nacional?
Acho ótima. Conquistas como o casamento igualitário e os direitos das mulheres estão entre as grandes realizações humanas das últimas décadas. Feminismo, movimento LGBT, movimentos antirracistas, tudo isso é parte da grande luta pela liberdade. Todos esses movimentos têm realizações imensas. Eu sou muito menos machista, racista e homofóbico do que já fui graças a eles, e só tenho a agradecer. Eu gosto de ficar mais inteligente. Talvez falte um pouco de prudência na hora de criticar o cidadão comum que comete um deslize, e às vezes há excessos de patrulha. Ninguém é perfeito, cuidado sempre é necessário. Mas o saldo da coisa toda é amplamente, esmagadoramente positivo. E, claro, não há por que desistir das pautas tradicionais do combate à desigualdade econômica.
13. Como o senhor avalia a atuação política dos intelectuais de esquerda ligados a universidades e think tanks ao longo dos anos Lula e Dilma?
Acho que faltou criticar e revisar programas enquanto dava tempo. Se intelectuais de esquerda tivessem criticado a Nova Matriz Econômica, por exemplo, isso teria tido muito mais peso do que as críticas dos economistas tucanos. E mesmo nas ideias de esquerda já havia muita coisa que tinha de ter sido revisada antes mesmo da chegada à Presidência.
Houve exceções, é claro, mas não conseguiram se fazer ouvir.
14. Existe algum “ponto cego” na produção científica atual sobre a situação política brasileira?
Sem sombra de dúvida, a crise de 2008. Foi o fato mais importante do mundo na última década: a economia piorou, a esquerda perdeu a fé no liberalismo, a direita se tornou antiglobalista. E aqui no Brasil a gente discute as coisas como se a crise não tivesse tido impacto nenhum sobre nós, mesmo a economia tendo piorado, a esquerda tendo perdido a fé no liberalismo e a direita tendo se tornado antiglobalista.
15. Quais os principais obstáculos de longo prazo para as principais forças políticas brasileiras?
São o mesmo problema, mas visto de ângulos diferentes. Para a esquerda, o desafio é pensar um programa de redistribuição de renda que seja compatível com um Estado falido e um país que não cresce direito há 40 anos. Para a direita liberal, o desafio é como implementar reformas liberais que podem produzir mais desigualdade em um país que já de saída é um dos mais desiguais do mundo.
16. Como o senhor analisa o papel da imprensa no atual cenário político nacional?
Acho que boa parte da imprensa tem viés de centro-direita porque o público que paga por notícia tem esse perfil. Isso explica a ênfase nos escândalos petistas, mas a verdade é que as denúncias não pararam depois que o PT caiu. Os escândalos de Temer e Bolsonaro foram denunciados, e continuam sendo. Por isso a guerra de Bolsonaro contra a imprensa: os jornalistas sérios, inclusive os de direita, continuam denunciando seus escândalos.
17. Há alguns anos o STF não era uma instância muito permeável ao escrutínio da sociedade civil e se mantinha razoavelmente distante das discussões públicas mais imediatas. Como foi o processo de mudança desse quadro e como o senhor descreveria a atual correlação de forças no Supremo?
Sob um certo aspecto, é ótimo que o STF tenha se tornado mais transparente. Mas parece claro que, em mais de um momento nos últimos anos, a Corte decidiu exclusivamente por pressão da opinião pública, o que é ruim. Quando as democracias instituem Supremas Cortes, é justamente para que as flutuações da opinião pública não comprometam a sobrevivência de longo prazo do estado de direito.
18. Qual a mudança mais drástica feita pelo atual governo na estrutura da burocracia federal brasileira? Quais são as implicações?
De longe, a maior tragédia é a preservação ambiental. Não foi sequer necessário mudar lei, foi só deixar claro que o Ministério do Meio Ambiente não fiscalizaria mais nada. Nessas áreas regulatórias em que Bolsonaro não depende de aprovação do Congresso, os danos vão ser enormes.
Gabriel Trigueiro/Revista Época/13 de julho de 2019

Derrota no terceiro turno (Demétrio Magnoli)

O terceiro turno das eleições presidenciais foi disputado na Câmara, na votação da reforma previdenciária. O placar avassalador, 379 a 131, não assinalou um triunfo de Bolsonaro, mas da articulação parlamentar liderada por Rodrigo Maia (DEM-RJ), pelo relator, Samuel Moreira(PSDB-SP), e pelo presidente da comissão especial, Marcelo Ramos (PL-AM). A esquerda —PT, PDT, PSB e PSOL— sofreu, mais que um insucesso parlamentar, uma derrota política de proporções históricas. Essencialmente, ela colocou-se fora do jogo político, encarcerando-se voluntariamente na cela de Lula.
As ruas vazias, o plácido entorno do Congresso, a transição da opinião popular rumo ao apoio à reforma —a catástrofe da esquerda pode ser sintetizada num caleidoscópio de imagens icônicas. É a conclusão de uma trajetória pautada pela incompreensão da democracia. O passo inicial foi a denúncia do “golpe do impeachment”; o seguinte, a campanha do “Lula livre!”; o derradeiro, a recusa do debate sobre a Previdência, que é parte de uma rejeição mais geral a revisitar as políticas populistas conduzidas por Lula e Dilma desde 2007.
O fracasso tem donos. Haddad nunca chegou nem perto do lugar de reformador do PT, atribuído a ele por tantos intelectuais esperançosos, preferindo o posto de gestor público da massa falida do lulismo. Boulos e Freixo reconduziram o PSOL à irrelevante condição de linha auxiliar do PT. Ciro Gomes e os dirigentes do PDT e do PSB perderam a oportunidade de fundar um polo oposicionista pragmático, capaz de aperfeiçoar o projeto da nova Previdência. A cela de Lula está repleta de prisioneiros virtuais de um Brasil corporativo que faliu anos atrás.
O beneficiário do autoexílio da esquerda é a direita bolsonarista. No vácuo político deixado pela deriva governista do PSDB, Bolsonaro tem a chance de se apropriar dos louros de uma vitória que não lhe pertence, ganhando novo fôlego. Lá atrás, Lula ensaiou uma reforma previdenciária, e Dilma admitiu a necessidade de estabelecer idades mínimas para a aposentadoria. Mas a esquerda do “não”, submissa ao corporativismo, imersa no oportunismo eleitoral, entregou a bandeira do futuro à direita reacionária. Todos pagaremos por isso.
“Ser de esquerda não pode significar que vamos ser contra um projeto que de fato pode tornar o Brasil mais inclusivo e desenvolvido”. A jovem deputada Tabata Amaral (PDT-SP) fala por outros sete deputados de seu partido e 11 do PSB que desafiaram suas direções partidárias para apoiar a reforma previdenciária. Ela exprime, ainda, a opinião de uma pequena coleção de intelectuais e economistas de esquerda que escapam à bolha do sectarismo. Justamente por isso, está sob ameaça de expulsão.
A reforma é a obra inaugural do “parlamentarismo branco”. Rodrigo Maia já antecipa novos objetivos, na forma das reformas tributária e administrativa. No plano retórico, o PT e Ciro Gomes chegaram a ensaiar propostas razoáveis no rumo de uma tributação mais progressiva e da radical redução nos cargos comissionados. Ao que tudo indica, porém, a esquerda seguirá ausente do debate nacional, contentando-se com a denúncia genérica das desigualdades sociais. A pesada âncora do lulismo prende a esquerda às areias do passado.
O sectarismo custa caro. O Executivo está ocupado por reacionários tão arrogantes quanto incultos, que rezam no santuário herético do “Deus de Trump”. Eles querem distribuir armas, promovem a delinquência policial, estimulam o ativismo político de procuradores jacobinos, sonham subordinar a lei e a escola ao fundamentalismo religioso. A agenda extremista só encontra barreiras no “parlamentarismo branco” e num Judiciário acossado pelo fogo das redes olavo-bolsonaristas. O Brasil precisaria de uma esquerda moderna, cosmopolita. O que temos, porém, são os estilhaços de um lulismo espectral, que agoniza em câmera lenta.
Folha de S. Paulo/13 de julho de 2019

O que impulsiona o populismo? (Dani Rodrik)

Será a cultura ou a economia? Essa pergunta molda boa parte da discussão sobre o populismo contemporâneo. Será que a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas, o Brexit e a ascensão dos partidos políticos nativistas de direita na Europa continental são consequência do aprofundamento da fissura de valores entre conservadores sociais e os liberais sociais, com a canalização, pelos primeiros, de seu apoio a políticos xenófobos, etnonacionalistas, autoritários? Ou será que esses desdobramentos são reflexo da angústia e da insegurança econômica de muitos eleitores, alimentadas pelas crises financeiras, a austeridade e a globalização?
Muita coisa depende da resposta. Se o populismo autoritário tiver suas raízes na economia, a solução adequada é um populismo de outro gênero - voltado para a injustiça econômica e para a inclusão, mas pluralista em sua política e não necessariamente prejudicial à democracia. Se suas causas estiverem na cultura e nos valores, no entanto, o número de alternativas será menor. A democracia liberal pode estar condenada por sua própria dinâmica e contradições internas.
Algumas versões do argumento cultural podem ser descartadas de saída. Por exemplo, muitos comentaristas dos Estados Unidos se concentraram nos apelos de Trump ao racismo. Mas o racismo, de uma forma ou de outra, é característica antiga da sociedade americana e não pode nos revelar, por si só, por que seu manejo por Trump teve tamanho sucesso. Uma constante não consegue explicar uma variação.
Outras explicações são mais sofisticadas. A versão mais perfeita e ambiciosa do argumento da reação adversa cultural foi apresentada por Pippa Norris, minha colega na Escola de Governo John F. Kennedy de Harvard, e por Ronald Inglehart, da Universidade de Michigan. Em livro recente, eles argumentam que o populismo autoritário é consequência de uma guinada geracional de valores de longo prazo.
Na medida em que as gerações mais jovens ficaram mais ricas, mais escolarizadas e mais seguras, adotaram valores "pós-materialistas" que enfatizam o secularismo, a autonomia pessoal e a diversidade, em detrimento da religiosidade, das estruturas familiares tradicionais e da conformidade. As gerações mais velhas foram isoladas - tornando-se, na prática, "estrangeiros em seu próprio país".
Will Wilkinson, do instituto de análise e pesquisa Niskanen Center, recentemente defendeu argumento semelhante, concentrando-se no papel da urbanização em especial. Wilkinson argumenta que a urbanização é um processo de triagem espacial que divide a sociedade com base não apenas no sucesso econômico como também em valores culturais. Ela cria áreas prósperas, multiculturais, de alta densidade onde predominam os valores socialmente liberais. E deixa para trás áreas rurais e centros urbanos de menor porte que são cada vez mais homogêneos em termos de conservadorismo social e de aversão à diversidade.
Do outro lado da discussão, economistas geraram uma série de estudos que vinculam o apoio político dos populistas aos choques econômicos. No que talvez se constitua na mais famosa entre essas análises, David Autor, David Dorn, Gordon Hanson e Kaveh Majlesi - do MIT, Universidade de Zurique, Universidade da Califórnia, campus de San Diego e Universidade Lund, respectivamente - mostraram que os votos em favor de Trump na eleição presidencial de 2016 mantiveram forte correlação com a magnitude dos choques comerciais adversos com a China.
Na verdade, de acordo com Dorn, Hanson e Majlesi, o choque comercial com a China pode ter sido responsável pela vitória eleitoral de Trump em 2016. Se a penetração dos produtos importados tivesse sido 50% menor do que a taxa efetiva no período 2002-2014, um candidato presidencial democrata teria vencido nos Estados decisivos de Michigan, Wisconsin e Pensilvânia, levando Hillary Clinton à vitória nas eleições.
Detectou-se que a maior penetração dos produtos importados da China teve influência sobre o apoio ao Brexit e sobre a ascensão dos partidos de extrema direita na Europa continental.
Os argumentos cultural e econômico podem parecer estar em tensão - se não em contradição pura e simples - entre si. Mas, lendo nas entrelinhas, pode-se discernir um tipo de convergência. Pelo fato de as tendências culturais - como o pós-materialismo e os valores promovidos pela urbanização - desenvolverem-se no longo prazo -, não respondem totalmente pelo momento em que ocorreu a reação adversa populista. (Norris e Inglehart postulam um ponto de virada em que grupos socialmente conservadores se tornaram uma minoria mas ainda tinham poder politico desproporcional.) E os que defendem a primazia das explicações culturais não descartam, na verdade, o papel dos choques econômicos. Esses choques, sustentam eles, agravaram e exacerbaram as divisões culturais, dando aos populistas autoritários o impulso a mais de que precisavam.
Norris e Inglehart argumentam que "as condições econômicas de médio prazo e o crescimento da diversidade social" aceleraram a reação adversa cultural, e demonstram que fatores econômicos tiveram um papel no apoio aos partidos populistas. No mesmo sentido, Wilkinson enfatiza que a "angústia racial" e a "angústia econômica" não são hipóteses excludentes, porque os choques econômicos intensificaram grandemente a triagem cultural comandada pela urbanização. Por sua vez, os deterministas econômicos deveriam reconhecer que fatores como o choque comercial com a China não ocorre em um vácuo, e sim no contexto de divisões pré-existentes da sociedade.
Em última instância, a análise precisa das causas que estão por trás da ascensão do populismo autoritário pode ser menos importante do que as lições de política pública a serem extraídas dela. Há pouca discussão nessa esfera. As medidas corretivas econômicas da desigualdade e da insegurança são primordiais. (Tradução de Rachel Warszawski)
(*) Dani Rodrik, professor de economia política internacional da Faculdade de Governo John F. Kennedy, da Universidade de Harvard, é autor de "Straight Talk on Trade: Ideas for a Sane World Economy".
Valor Econômico/12 de julho de 2019

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Milagre brasileiro (Fernando Schüler)

A reforma da Previdência é quase um milagre. O Brasil, aliás, é uma espécie de milagre. Nos últimos anos, aprovamos reformas improváveis, como a PEC do Teto, a reforma trabalhista, a lei das terceirizações, e agora estamos perto de emplacar a reforma previdenciária.
A reforma é quase um milagre porque nosso sistema político é disfuncional. Nesta quarta-feira, 26 partidos votaram na reforma. Catorze deles com dez votos ou mais. Isto é, partidos relevantes, de tamanho médio, incapazes de resolver qualquer coisa, no Congresso, mas capazes de obstaculizar, complicar o jogo, cobrar fatura.
É isso que faz do Brasil a democracia mais fragmentada do planeta, com baixa efetividade institucional e alto custo político na tomada de decisões estratégicas. Mesmo dizendo que não iria fazer esse jogo, o governo liberou alguns bilhões em emendas e recursos para viabilizar a reforma. Alguns acham normal. Ouvi de um deputado que esta era uma forma de “democratizar” o Orçamento. Analistas dizem que o varejo político é um fato normal das democracias, que nosso presidencialismo de coalizão exige isso. De minha parte, só observo. Vejo isso mais como deformação do que uma virtude. Apenas uma deformação com a qual nos acostumamos.
A reforma também é um milagre pelo imenso peso das corporações no jogo político. Vamos lá: por que cargas d'agua o vigia do supermercado, que vira e mexe enfrenta a bandidagem na periferia de nossas cidades, vai se aposentar com 65 anos, e o segurança do Congresso com 53? Não discuto aqui o mérito do trabalho de ninguém, mas por quê? Acertou na mosca o Carlos Góes, quando provocou: para todas as categorias que pedem aposentadoria mais cedo por causa de “circunstâncias especiais”, tenho uma pergunta: sua categoria tem uma condição mais difícil que a de um pedreiro?
Uma explicação para o milagre da reforma é a mudança de mentalidade ocorrida no Brasil nos últimos anos. A última pesquisa Datafolha deu um sinal claro nessa direção: 47% da população agora apoia a reforma, e 44% são contra. Há pouco mais de dois anos, quando o ex-presidente Temer colocou esta pauta na ordem do dia, 71% eram contra. Nunca canso da frase de Weber: a política é o lento perfurar de tábuas duras.
Essa mudança não veio de graça. A reforma não se mostrou auto-evidente, como me sugeriu um amigo professor tempos atrás. Não há nada muito auto-evidente, em política. Houve um trabalho duro de centenas de economistas, think tanks, lideranças da sociedade e da política que colocaram esse tema na pauta, disputaram ideias, em especial no mundo digital, e souberam virar o jogo.
O milagre também parece ir acontecendo porque vivemos um período especial na nossa história política, de maior autonomia do Congressofrente ao Executivo. Algo que tenho chamado, na falta de uma expressão melhor, de modelo de corresponsabilidade. Acho graça da turma que fica discutindo sobre a paternidade da reforma. É do governo? Do Congresso? Do Rodrigo Maia? Daria para espichar muito essa lista. A reforma é fruto de uma aliança não explícita entre os liberais de Paulo Guedes e o centro político do Congresso. Se quiserem, os sociais-democratas ainda girando em torno do PSDB, de Samuel Moreira, e outros partidos. O que apenas corrobora uma velha provocação que gosto de fazer: é tanta a irracionalidade do Estado brasileiro, que por muito tempo não haverá muita distância entre a agenda do bom liberalismo e da boa social-democracia
Por fim, uma intuição: milagres não acontecem indefinidamente. Vinícius Torres Freire tocou nisso em sua coluna de ontem. O atual arranjo institucional brasileiro é precário. Meu ponto é apenas dizer que não se irá criar um novo ciclo virtuoso, no plano político, sem um ajuste nas regras do jogo.
Sendo mais específico: o mesmo trabalho de convencimento que se fez em torno da reforma da Previdência terá que ser feito em torno da reforma política. Rodrigo Maia não permanecerá eternamente na presidência da Câmara e há uma agenda difícil de reformas à frente. É ingênuo pensar que voltar alegremente ao velho modelo da coalizão majoritária, sob a batuta do executivo, enterrado nas últimas eleições. Precisamos de novas regras, e é bom que quem tem a cabeça no lugar comece a pensar logo sobre isso.
(*) Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Folha de S. Paulo/11 de julho de 2019