domingo, 26 de agosto de 2018

Eleições 2018: Lula líder entre jovens, Bolsonaro à ..... (Amanda Rossi e Mariana Sanches)

A introdução do nome de Lula nas pesquisas foi motivo de controvérsia. Mas ela é obrigatória. Segundo a lei eleitoral, todas as pesquisas para as eleições 2018 devem conter os nomes de todos os candidatos registrados no TSE. É o caso de Lula.
No último dia 15, o PT pediu o registro da candidatura do ex-presidente. Assim, ele é oficialmente candidato, até que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) julgue sua situação. Por estar condenado em segunda instância, em tese o petista está barrado de concorrer pela Lei da Ficha Limpa.
Ibope e Datafolha testaram também cenário de pleito em que Lula é substituído pelo ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad.
A BBC News Brasil avaliou os relatórios das três pesquisas e destaca abaixo alguns dos aspectos mais interessantes dos números.
1) Eleitores de Lula são os mais convictos, mas transferência de votos é baixa
Os eleitores de Lula são os mais convictos: apenas 18% dizem que podem mudar o voto, segundo o MDA. No caso de Marina Silva, Ciro Gomes (PDT) e Geraldo Alckmin (PSDB), por exemplo, o percentual é acima de 60% - são eleitores propensos a trocar de opinião.
Mas, caso o ex-presidente Lula seja impedido de concorrer, como votariam seus eleitores? Segundo o MDA, hoje metade se dividiria entre outros candidatos - 17,3% para Haddad, 11,9% para Marina, 9,6% para Ciro, 6,2% para Bolsonaro. A outra metade, por enquanto, se perde - são eleitores indecisos ou que dizem votar branco/nulo.
Na prática, isso significa que, por enquanto, Lula só transferiria 6,5 pontos percentuais para Haddad - pouco mais do que transferiria para Marina, 4,5 pontos percentuais.
"Ainda é cedo, no entanto, para avaliar se esses votos serão mesmo transferidos ou não porque até agora o Haddad sequer é o candidato oficial do PT. Teremos que esperar para ver como os eleitores reagirão à propaganda de TV", diz Fernando Antônio de Azevedo, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).
A propaganda na TV começa no final de agosto. Nela, o PT vai mirar os 30% de eleitores que dizem que certamente seguiriam a indicação de Lula e os outros 17% que talvez seguissem, segundo o Datafolha. Hoje, Haddad tem 4% de intenções de voto nas pesquisas e um perfil eleitoral bastante diferente de seu padrinho: seu melhor desempenho acontece entre os mais escolarizados e nas capitais. Mais uma evidência de que o público lulista ainda não foi sensibilizado pelo nome do ex-prefeito de SãoUniversidade Fe Paulo.
2) Bolsonaro mantém seu eleitor "núcleo duro", mas rejeição cresce
Os eleitores do Bolsonaro são o segundo grupo mais convicto: apenas 29% deles admitem mudar de ideia, de acordo com a pesquisa MDA.
Outro indicador da definição do voto em Bolsonaro é o resultado da pesquisa espontânea, quando o entrevistado diz em quem vai votar sem antes ver uma lista de candidatos. São pessoas que já tem o nome do candidato na ponta da língua e não sentem que precisam escolher entre as opções. É, assim, o grupo mais decidido do eleitorado. Nessa pesquisa, Bolsonaro tem 15% dos votos, segundo os três institutos de pesquisa. É uma cifra que poderia pavimentar seu caminho ao segundo turno. Além dele, só Lula é muito lembrado na espontânea. Os demais não chegam nem a 2%.
O destaque de Bolsonaro na pesquisa espontânea são homens, pessoas com ensino superior, renda alta, evangélicos, brancos, moradores das regiões Norte e Sul. Esse é o núcleo duro do deputado.
"O eleitor do Bolsonaro, que na média é mais de alta renda e alta escolaridade, tende a ser menos volátil do que os demais grupos de eleitores. É gente que já se informou, formou uma convicção e dificilmente deve mudar em massa", diz Márcia Cavallari, do Ibope.
Por outro lado, Bolsonaro está tendo dificuldade de subir. Na pesquisa estimulada (quando o entrevistado escolhe o candidato entre uma lista de nomes), em cenário com Lula, ele surge com 19% das respostas, segundo o Datafolha. Já em novembro do ano passado, ele aparecia com 18% dos votos, também em cenário com Lula, de acordo com o mesmo instituto de pesquisa. A variação ocorre dentro da margem de erro.
Uma das explicações está na resistência do eleitorado feminino ao nome do deputado do PSL. De acordo com o Ibope, em um cenário sem Lula, se entre os homens Bolsonaro atinge 28% das preferências, entre as mulheres ele amealha apenas 13% das intenções de voto.
Além disso, conforme se torna mais conhecido dos eleitores, Bolsonaro tem elevado sua taxa de rejeição. Segundo o Ibope, 37% dizem que não votariam nele de jeito nenhum - 5 pontos percentuais a mais do que em junho. Nenhum outro candidato é mais rejeitado. Outros pontos fracos são os eleitores do Nordeste, de renda baixa e baixa escolaridade.
3) Ciro e Marina dividem votos de Lula no Nordeste
O Nordeste é a região do Brasil mais aderente a Lula. De cada 10 nordestinos, 6 dizem votar no ex-presidente. O que ocorre no cenário em que Lula não é candidato?
O primeiro efeito é que os votos brancos e nulos mais que triplicam na região. Passam de 9% para 28%, segundo o Datafolha.
Além disso, Ciro Gomes passa a se destacar na região. Quando Lula é candidato, a intenção de voto em Ciro no Nordeste é de 5% - exatamente igual à sua pontuação nacional. Já sem Lula, Ciro ganha nove pontos percentuais e chega a 14% da intenção de voto do Nordeste. É onde desponta melhor nas pesquisas.
Marina Silva também cresce no Nordeste sem Lula - sobe 8 pontos, atingindo 19%.
Já Fernando Haddad absorve apenas 5% dos votos dos nordestinos. Um dos maiores desafios de sua campanha é justamente tentar agregar em torno de si os eleitores de Lula no Nordeste. As primeiras agendas de campanha têm sido nessa região.
4) Alckmin está atrás de Bolsonaro inclusive em reduto histórico do PSDB
O tucano Geraldo Alckmin está atrás de Bolsonaro inclusive na região Sudeste, onde é mais conhecido, por ter governado o Estado de São Paulo por quatro mandatos.
Segundo o Ibope, em cenário sem Lula, Alckmin tem 11% de intenção de voto no Sudeste, contra 21% do deputado federal. Já com Lula, Alckmin também fica atrás de Bolsonaro: 9% versus 19%.
A distância é ainda maior em outras regiões do país. No Norte e Centro-Oeste, por exemplo, Bolsonaro tem pelo menos 28 pontos percentuais a mais que Alckmin - com ou sem Lula.
Os dados mostram a dificuldade da candidatura de Alckmin de decolar. A expectativa do partido é que o candidato cresça com o início da propaganda eleitoral na TV, recuperando eleitores que antes votavam no PSDB e agora aderiram à campanha de Bolsonaro. O tucano tem o maior tempo de exposição - mais de 11 minutos por dia - devido à ampla coligação partidária que construiu.
Alckmin enfrenta desgaste com denúncias de corrupção que alvejaram seu partido. O último presidenciável do PSDB, Aécio Neves é réu no âmbito da Operação Lava Jato. Alckmin tem que se desvencilhar ainda do peso de ter seu partido na base governista de Michel Temer, um dos governos mais impopulares da história - apenas 3% dos brasileiros consideram sua gestão ótima ou boa, de acordo com o Ibope.
5) Quase metade dos jovens entre 16 e 24 anos diz preferir Lula
De acordo com levantamento do Ibope, 45% dos eleitores entre 16 e 24 anos de idade diz votar em Lula. O percentual surpreende porque está fora do perfil de eleitor lulista, gente que melhorou de vida no período entre 2002 e 2010, quando Lula esteve no poder.
Já o grupo de eleitores jovens atuais tinha entre 8 e 16 anos de idade quando o governo do petista acabou, e sequer havia entrado na população economicamente ativa.
Com a ressalva de que seria preciso uma pesquisa qualitativa para ouvir esses jovens e entender seus motivos, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil levantam algumas hipóteses para explicar o fenômeno. Uma delas seria o fato de esse grupo ser menos conservador em relação a costumes e estar mais propenso a aderir a candidatos de esquerda.
Outra possibilidade é que Lula esteja conseguindo transmitir a ideia de que é oposição ao governo Temer. "O jovem pode enxergar expectativas de futuro mais atraentes com o Lula, pelo que ouvem de outras pessoas, em relação à situação atual, de pouco emprego, de dificuldade para obter financiamento estudantil ou bolsa acadêmica", diz Azevedo.
6) Bolsonaro se destaca no Norte e Centro-Oeste
Quando duelam entre si regionalmente, Lula e Bolsonaro empatam tecnicamente no Norte e Centro-Oeste, regiões pesquisadas em conjunto pelos institutos por terem uma população menor. Lula aparece com 33% e Bolsonaro, com 29% das intenções de votos, de acordo com o Ibope. São as regiões do país onde o deputado federal se sai melhor.
Sem Lula, Bolsonaro lidera isolado no Norte e Centro-Oeste, com 30% de intenção de voto. É o dobro da segunda colocada, Marina Silva.
"Bolsonaro é muito mais ouvido em região de fronteira, com conflito de terra e questão indígena. São os temas principais dele", diz Hilton Fernandes, professor da Faculdade Escola de Sociologia e Política, de São Paulo.
Bolsonaro chegou a visitar Roraima, que vive uma crise migratória sem precedentes com a entrada de venezuelanos que buscam fugir da crise em seu país. "Olha a nossa querida Roraima, Boa Vista e Pacaraima. Eu estive lá. Hoje em dia calculam que Boa Vista tem em torno de 40 mil venezuelanos. (...) Primeiro, tem que revogar essa lei de imigração aí. Outra, fazer campo de refugiados", afirmou em entrevista para o Estadão, em março.
Em Roraima, Bolsonaro teria 45% dos votos válidos, contra 26% de Lula, segundo pesquisa Ibope realizada no Estado entre 13 e 16 de agosto. A margem de erro é de 3 pontos percentuais, para mais ou menos.
Entre os Estados pesquisados pelo instituto, é onde Bolsonaro se sai melhor.
7) Marina é, hoje, a maior beneficiada pela saída de Lula da disputa
Por enquanto, Marina é quem mais ganha com a saída de Lula. Sem o ex-presidente, segundo a pesquisa Ibope, a intenção de voto na ex-ministra sobe 6 pontos percentuais - de 6% para 12%.
É ela, por exemplo, quem recebe os votos dos jovens em Lula. Quando o ex-presidente está concorrendo, Marina não tem
nenhum destaque nessa faixa etária - tem os mesmos 6% de intenção de voto registrados entre a população em geral. Já sem Lula, Marina triplica entre os jovens, com 18%. É a única candidata que cresce nessa faixa etária.
Com a saída de Lula, Marina também sobe no Nordeste e entre os mais pobres.
Um dos motivos para o crescimento de Marina é o chamado "recall" - quando os eleitores optam por nomes que já conhecem. Segundo o Datafolha, depois de Lula, Marina é a candidata mais conhecida, por 93% dos entrevistados.
"Marina tem um ótimo recall por ter sido duas vezes candidata à Presidência. Ela aparece como o segundo nome, já que o nome de Haddad ainda não está posto na esquerda. Mas essa situação não encontrará sustentação ao longo da campanha", arrisca Fernandes.
8) Haddad não é conhecido por 4 entre 10 eleitores; Bolsonaro por 2 entre 10
Segundo o Datafolha, 41% dos eleitores não conhecem Fernando Haddad. É o mesmo percentual encontrado há cerca de um ano.
Por um lado, esse número representa um desafio difícil para o PT: o partido tem menos de 50 dias e 5 minutos de propaganda na TV por dia para apresentar Haddad para os eleitores de Lula - o que não conseguiu fazer no último ano. Por outro, é uma oportunidade para o partido: há espaço para apresentar o vice de Lula e tentar crescer. "Apresentar Haddad talvez não seja tão simples. Até o nome dele é difícil para uma parte dos eleitores, que chega a chama-lo de 'Andrade'", diz Fernandes.
Bolsonaro também tem uma oportunidade. Ainda é desconhecido por 21% dos entrevistados pelo Datafolha e tem espaço para disputar esses votos. Já seus concorrentes Marina, Alckmin e Ciro são mais conhecidos.
9) 50% dos eleitores diz perder interesse por candidato que defender liberação do porte de armas
Se um candidato for a favor da liberação do porte de armas, como isso influencia sua chance de votar nele para Presidente da República? Essa foi uma das perguntas feitas pelo MDA.
O resultado é que defender a liberação do porte de armas é mais nocivo do que benéfico para as candidaturas. Se o candidato for a favor, 24% dos entrevistados dizem que aumenta a chance de votar nele. Outros 20% dizem que não influencia o voto. Mas 50% dizem que diminui a chance de votar nele.
"A defesa do porte de armas é uma agenda de nicho, de uma parcela da população. Funciona muito bem como estratégia para conquistar uma fração dos eleitores, mas pode complicar para expandir esse eleitorado no segundo turno", diz Fernandes.
10) Com quase metade dos votos válidos, Lula estaria próximo de vencer no 1º turno
A depender do instituto de pesquisa, o ex-presidente tem agora entre 37% e 39% das intenções de votos. Mas, para efeitos eleitorais, vale a conta sobre votos válidos: os brancos e nulos são desconsiderados do cálculo final para saber quem foi eleito.
Segundo as pesquisas dessa semana, em torno de 20% do eleitorado diz votar branco ou nulo. Assim, se as eleições fossem hoje, Lula teria cerca de metade dos votos válidos - na medição do Ibope, seriam exatamente 47%.
É perto do total de votos necessário para se eleger em primeiro turno - 50% mais um.
No Nordeste, o percentual de votos válidos de Lula chega a 71%, ainda segundo o Ibope.
"Lula estava com uma imagem muito ruim no ano passado, mas o processo todo de crise com o governo Temer reabilitou um pouco a figura do candidato, o que ajuda a explicar a resiliência dessa candidatura", diz Fernandes.
A situação jurídica das eleições ficaria em perigo nesse caso. Uma das estratégias do PT é empurrar o julgamento do registro da candidatura de Lula pelo TSE até meados de setembro, o que possibilitaria que o nome do candidato estivesse nas urnas eletrônicas.
Nesse cenário, ainda que o TSE considere Lula inelegível antes da data do pleito, em outubro, o eleitor poderia votar em Lula.
Segundo resolução do TSE, caso ele obtivesse mais de 50% dos votos, a eleição teria que ser anulada e refeita imediatamente. Se não atingir mais do que 50% dos votos, o segundo e o terceiro colocado seriam enviados para a disputa de segundo turno.
"Essa é a primeira vez que acontece uma situação dessas em âmbito nacional, então estamos falando com base no que já aconteceu em disputas para prefeituras. Mas, acreditamos que o TSE deve dar uma resposta para a situação com rapidez até porque os custos financeiros de se fazer uma nova eleição presidencial seriam altíssimos", diz a advogada especialista em direito eleitoral Karina Kufa, do Instituto de Direito Público de São Paulo.
11) Para 76%, a principal característica de um futuro presidente deve ser honestidade
O MDA questionou quais características do candidato o entrevistado vai levar em consideração na hora de votar para presidente. A principal escolhida foi honestidade, com 76% de menções. Os mesmos eleitores declararam maior preferência por Lula, com 37% das intenções de voto. O petista está condenado em segunda instância por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, no caso tríplex.
"Você tem uma orientação normativa ao expressar valores, mas se move de maneira pragmática na hora de fazer escolha. O eleitor pode até considerar que Lula foi corrupto, mas olha também para o bem-estar que ele pode ter trazido durante o governo", diz Azevedo.
Para Márcia Cavallari, do Ibope, a impressão generalizada entre os eleitores de que todos os políticos cometeram algum tipo de malfeito também pode ter mudado o modo como a escolha é feita. "À medida que a Lava Jato foi avançando sobre diversos partidos, colocou as lideranças todas na mesma página. Isso faz com que o eleitor desconsidere esse aspecto e passe a usar outros critérios na escolha."
Informações técnicas sobre as pesquisas:
– A pesquisa CNT/MDA foi realizada entre 15 e 18 de agosto, com 2.002 entrevistas, em 137 municípios. A margem de erro é de 2,2 pontos percentuais, com 95% de nível de confiança. Está registrada no TSE com o número BR-09086/2018.
– A pesquisa Ibope foi realizada entre 17 e 19 de agosto, com 2.002 entrevistas, em 142 municípios. A margem de erro máxima estimada é de 2 pontos percentuais, com 95% de nível de confiança. Está registrada no TSE com o número BR-01665/2018.
– A pesquisa Datafolha foi realizada entre 20 e 21 de agosto, com 8.433 entrevistas, em 313 municípios. A margem de erro máxima é de 2 pontos percentuais, com nível de confiança de 95%. Está registrada o TSE com o número BR-04023/2018.
BBC News Brasil (23-08-2018).

Líderes eleitos usam as instituições para subverter a democracia (Steven Levitsky)

As democracias já não morrem da maneira que costumavam. Pela maior parte do século 20, as democracias eram derrubadas por homens armados. Líderes militares depunham líderes eleitos, suspendiam o governo constitucional e estabeleciam ditaduras. Durante a Guerra Fria, três quartos das dissoluções de regimes democráticos aconteceram dessa forma. Foi como a democracia brasileira morreu em 1964 — e continua a ser a maneira pela qual muitos brasileiros esperam ver a morte da democracia.
Mas as coisas mudaram. Hoje, a maioria das democracias morre não por ação de generais, mas sim de líderes eleitos —presidentes ou primeiros-ministros que usam as instituições da democracia para subvertê-la.
A maioria dos autocratas contemporâneos chega ao poder por via eleitoral. E consolida seu poder “constitucionalmente”, usando métodos como plebiscitos, atos do Legislativo e decisões da alta corte. Foi esse o caminho seguido por Chávez na Venezuela, Putin na Rússia, Orban na Hungria, Erdogan na Turquia e Duterte nas Filipinas.
Na América Latina, também, os principais matadores de democracias são líderes eleitos. De 1990 para cá, todas as rupturas de democracia na América Latina exceto uma (Honduras, 2009) foram lideradas por presidentes eleitos. Balaguer na República Dominicana, Fujimori no Peru, Chávez na Venezuela, Correa no Equador, Morales na Bolívia, Ortega na Nicarágua.
Um dos perigos da estrada eleitoral para o autoritarismo é que ela é mascarada por uma fachada de democracia. Em um golpe clássico, o fim da democracia é imediato e evidente para todos. O Congresso é fechado. A Constituição é suspensa. O autoritarismo eleitoral é muito mais sutil. Não há tanques nas ruas. O governo chega ao poder pelas urnas, e a maior parte de suas medidas antidemocráticas é tecnicamente constitucional: o Congresso ou o Supremo Tribunal as aprovam. Na verdade, muitas das iniciativas antidemocráticas são apresentadas como esforços para melhorar a democracia —por exemplo combater a corrupção, reformar o Judiciário ou sanear as eleições.
Mas por trás desse verniz constitucional, a democracia é eviscerada. Os direitos civis são sufocados lentamente, começando pelas minorias impopulares (os oligarcas na Rússia, os políticos da velha guarda na Venezuela, os imigrantes na Hungria, os esquerdistas e os curdos na Turquia, os suspeitos de crimes nas Filipinas). A mídia, as ONGs, empresários independentes e políticos de oposição são ameaçados com acusações de corrupção, fraude tributária e outros delitos “legais”. Por fim, a lisura do processo desaparece. O Legislativo, os tribunais e as autoridades eleitorais sucumbem ao Executivo. As estações de TV são pressionadas a cooperar com o governo —ou a se calar. As eleições se tornam injustas.
O perigo é que os cidadãos nem sempre percebem o que está acontecendo. A erosão da democracia é gradual e, para muitas pessoas, imperceptível. Porque não há tanques nas ruas, muitos cidadãos continuam a acreditar que estão vivendo em uma democracia —até que seja tarde demais. Em 2011, mais de uma década depois da chegada de Hugo Chávez ao poder, pesquisas demonstravam que a maioria dos venezuelanos ainda acreditava estar vivendo em uma democracia.
Se a ruptura da democracia começa nas urnas, os cidadãos precisam tomar muito cuidado ao eleger seus líderes. Precisam identificar e derrotar os políticos autoritários antes que se elejam. Essa é uma questão séria hoje no Brasil. Como os venezuelanos em 1998, quando Chávez se elegeu pela primeira vez, os brasileiros agora encaram uma eleição na qual uma figura abertamente autoritária, Jair Bolsonaro, lidera as pesquisas. Ele representa maior ameaça à democracia brasileira do que qualquer candidato à Presidência em décadas. A coluna da semana que vem mostrará por quê.
(Tradução de Paulo Migliacci)
(*) Professor de administração pública na Universidade Harvard e coautor de “Como as Democracia Morrem”
- Folha de São Paulo (24 de agosto de 2018)

O poder oculto (José de Souza Martins)

O aspecto mais desolador dos "debates" políticos na televisão, nessa campanha eleitoral, é que não há debate. Para que debate houvesse, seria necessário que os partidos fossem partidos verdadeiros, com doutrina e projeto de nação. Não o são. Há pouquíssima diferença entre eles e quase nenhuma entre os candidatos. Estamos à mercê do minimalismo de dilemas menores e cotidianos. E não dos relativos ao destino do país. É o caso do bombeiro incendiário que chacoalha a Bíblia diante do nariz dos outros e sataniza os brasileiros lúcidos que dele discordam. Em princípio, quem se apresenta candidato a um mandato em nome de religião ou de igreja deveria ter a candidatura vetada. É inconstitucional.
Na verdade, o elenco de temas propostos aos candidatos nesses debates é o que o noticiário cotidiano há muito tem colocado em destaque. Mais o que apavora as pessoas comuns do que aquilo que expressa suas aspirações de desenvolvimento humano. E de sua emancipação das carências e misérias que fazem da vida cotidiana do brasileiro uma vida de incertezas e de desesperança.
A temática dessas eleições, como de eleições passadas, não é a dos nossos problemas candentes, mas apenas os popularizados pelo noticiário alarmista do dia a dia. Processos políticos não são definidos pela popularidade manipulada, os assuntos que causam apreensão e incerteza. O noticiário não expressa o que somos nem mesmo os nossos carecimentos. E o mesmo se pode dizer dos resultados de pesquisas de opinião eleitoral. O que cabe no formulário e nas perguntas pré-formuladas não é necessariamente o que inquieta as pessoas. Há um abismo antropológico entre o perguntado e o respondido.
Como sociólogo, não posso deixar de ver a conexão que há entre a notícia alarmista sobre a criminalidade urbana e o discurso religioso das diferentes igrejas, de um lado, e a conexão entre alarmismo, evangelismo televisivo e radiofônico e a política biblificada, de outro. Como ignorar o nexo entre a barbárie dos temas do noticiário e a suposta religiosidade de políticos que oferecem ao povo a alternativa violenta da punição radical e exterminadora contra as ideias e as visões de mundo que expressam a nossa diversidade social e cultural? A criminalização das diferenças, da pluralidade social, da diversidade das crenças e das visões de mundo, da civilidade, enfim, usurpou o cenário dos debates pela televisão, que são aqui mais para atemorizar do que para esclarecer. Mais para encurralar do que para libertar.
O cenário da disputa eleitoral tanto para o Executivo quanto para o Legislativo é o dos falsos problemas inventados pelas manipulações planejadas. As dos grupos de interesse que usurparam as ideologias partidárias com o propósito de amedrontar para fazer da incerteza popular a matéria-prima das disputas políticas.
Mais uma vez, vamos às urnas informados por aquilo que é de importância menor do que por aquilo que é de importância maior. A representação política está descaracterizada, como vemos em série publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo com base em pesquisa sobre os donos do poder. Quatro grupos de interesses políticos dominam o Congresso Nacional, e por extensão, a Presidência da República: o dos funcionários públicos, o do agronegócio, o da Bíblia e o da bala. Deputados e senadores estão distribuídos pelos partidos políticos, que por irrelevantes e descaracterizados se tornaram secundários em relação a esses grupos. Partido tornou-se mero instrumento legal para viabilizar o que não é e não pode ser. Partido, aqui, é o do mero agora e do passado, não o do possível e necessário. Qualquer que seja a opção do eleitorado, esses quatro grupos é que serão os efetivamente representados no Parlamento brasileiro. Os governantes governarão manipulados por eles.
Os problemas nacionais já não chegam à consciência política da nação. São desfigurados pela filtragem de interesses sobre os quais a nação não tem controle. Mais uma vez, o Brasil não será representado em seu Congresso Nacional senão pela distorção do que é, do que padece e do que quer vencer. O Brasil do Congresso é e será o Brasil vencido, iludido, usado e descartado. Pouquíssimos dos nossos políticos tem clara consciência do que representam, de que são atores de um teatro em que os verdadeiros sujeitos do processo político não se mostram, não se identificam. Qualquer que seja o partido vencedor ou o candidato vencedor, de vários modos será joguete dessas forças invisíveis e silenciosas que serão conhecidas unicamente se caírem na armadilha das investigações policiais, as dos mensalões e da Lava-Jato. Esse Brasil oculto derrota todos os dias, não só nas eleições, a política brasileira.
Valor Econômico (24 de agosto de 2018)

domingo, 19 de agosto de 2018

Raiva ou moderação: a bifurcação política do País (Bolívar Lamounier)

Um fato que chama a atenção na presente conjuntura eleitoral é o grande número de eleitores indecisos ou que falam em anular o voto ou se abster, simplesmente. Estamos em meados de agosto e a proporção dos que se encontram em tal situação é de cerca de 60%, segundo as pesquisas. É razoável admitir que pelo menos 30% manterão tal opção, com o que o porcentual de votos válidos não irá além de 70%. E mais: em todas as camadas sociais, esse amplo contingente de eleitores está permeado por uma atitude de hostilidade às instituições e aos políticos de uma maneira geral. Ou seja, a eleição deste ano transcorrerá num clima antipolítico como há muito não víamos.
As causas principais desse clima são facilmente identificáveis. De um lado, o País vive ainda as sequelas da pior recessão de nossa história; 13 milhões de trabalhadores amargam o desemprego e no mínimo outro tanto já desistiu de procurar trabalho ou se acomodou a ocupações de baixa qualidade e baixa remuneração. Ou seja, o legado do governo Dilma continua forte, projetando sua sombra na esfera político-eleitoral.
Do outro lado, a trama finalmente desvendada da corrupção arquitetada por Lula e pelos partidos que a ele se associaram mais estreitamente atingiu uma amplitude inédita, um conluio que nem os mais pessimistas com o Brasil poderiam ter imaginado, envolvendo entre setores do empresariado e a maior parte do espectro partidário. A esses dois fatores é necessário acrescentar o patético comportamento dos dirigentes institucionais do País, que não chegaria a surpreender se estivesse ocorrendo só no Legislativo, mas que se manifesta com a mesma intensidade entre os integrantes dos tribunais superiores. No próprio Supremo Tribunal Federal (STF), os ministros se desentendem com frequência e violam pontos cristalinamente definidos na Constituição e na jurisprudência, deixando a sociedade na iminência de uma grave insegurança jurídica.
Mais ainda, enquanto a área econômica do governo faz das tripas coração para manter um mínimo de ordem nas contas públicas, o próprio tribunal, ápice da pirâmide judiciária, dá as costas ao País e aumenta seus vencimentos em 16%, decisão temerária, fadada a provocar um efeito-cascata noutras instituições.
Não há como avaliar o processo eleitoral sem levar em conta o pano de fundo acima esboçado.
A questão central é se a atitude antipolítica a que me referi desembocará num pleito radicalizado, raivoso, irracional, ou, ao contrário, se em algum momento os cidadãos sentirão raiva da própria raiva, encaminhando suas opções individuais para um desfecho mais convergente que divergente. Pelo menos por enquanto, parece inútil tentar responder tal indagação com base no discurso dos candidatos, dados a qualidade apenas mediana dos postulantes e o escasso conteúdo programático dos debates realizados.
A hipótese da convergência requer, portanto, algum otimismo sobre o desenrolar da própria campanha eleitoral. Em condições razoavelmente normais, é plausível supor que mesmo uma situação de tensão, depressão e indiferença possa ser em parte atenuada pelo ciclo eleitoral. Esse é o milagre que o processo democrático às vezes produz.
A expectativa de um novo governo e uma nova composição no Legislativo pode, em tese, instilar um novo ânimo na sociedade. Até o momento, não há indícios de que isso esteja acontecendo. É certo que a campanha ainda não começou de verdade e que nenhum dos candidatos possui o que se poderia chamar de carisma (seja qual for o real significado desse termo) positivo, quero dizer, uma capacidade de empolgar os eleitores na justa medida em que lhes aponte um futuro melhor. Jair Bolsonaro, tido como o mais carismático deles, é mais um reflexo das condições de insegurança e raiva disseminadas na sociedade que um líder capaz de as reverter. Lula, na remota hipótese de se tornar elegível, provavelmente produziria o efeito oposto, acirrando ainda mais os ânimos. Se o candidato petista for, como parece, o ex-prefeito Fernando Haddad, sim, teríamos um personagem de perfil moderado - moderado até demais, para o gosto do petismo.
Não me arrisco a tentar prever o montante de votos que Lula será capaz de lhe transferir, mas por ora não creio que seja o suficiente para levá-lo ao segundo turno. Ficará, provavelmente, num patamar próximo ao de Marina Silva, com ela compartilhando uma condição minoritária no Congresso, talvez tendo sobre ela melhores condições de conviver com o chamado “presidencialismo de coalizão”. Os demais - Ciro Gomes, Álvaro Dias, João Amoêdo e Guilherme Boulos - por certo terão uma função importante como partícipes do debate democrático, mas nada sugere que atinjam índices eleitorais robustos. Se as conjecturas acima estiverem certas, o mais provável, então, é que o segundo turno contraporá Alckmin a Bolsonaro.
Resumindo, fato é que o Brasil, quando mais precisa de candidatos à altura dos desafios já postos sobre a mesa, vive uma entressafra de líderes. A geração que conduziu a luta pela redemocratização em sua maioria já se foi, e uma nova ainda não se delineou, prestes a entrar em cena.
Do que acima se expôs, o que podemos extrair é, portanto, o imperativo de uma metódica sobriedade. Com os dados de que ora dispomos, a única previsão possível é a de que o próximo governo enfrentará difíceis problemas de governabilidade. Com a possível exceção do ex-governador Alckmin, os demais candidatos terão de se virar com uma base congressual exígua, insuficiente até em termos nominais; ou seja, serão governos de minoria. E nada, rigorosamente nada - salvo um súbito estalo de altruísmo -, nos autoriza a imaginar que um Congresso escassamente renovado possa oferecer ao Executivo o nível de colaboração de que ele necessitará para levar avante uma agenda de reformas modernizadoras.
O Estado de São Paulo (18 de agosto de 2018)

O Brasil do general (José de Souza Martins)

Na opinião do general Mourão, candidato a vice-presidente da República na chapa do capitão Bolsonaro, em discurso num almoço na Câmara de Indústria e Comércio de Caxias do Sul (RS), o Brasil herdou a "indolência" dos indígenas, a "malandragem" dos africanos e o afã de "privilégios" dos ibéricos. Um negro e brancos ouviram essa fala em silêncio.
Na atual composição do povo brasileiro, isso nos diz que um eventual governo do capitão e do general minimizará uns 75% desse povo, pois no ver do general estamos aquém do que deveríamos ser. Sobram-lhe só 25% para governar, aqueles que o candidato não estigmatiza com os defeitos que nos atribui.
O general se reconhece pardo. Mas a "antropologia" do general é pobre e nada antropológica. Ele repete os estereótipos estigmatizantes que nos vêm desde o período colonial, o que era uma técnica de degradação para dominação da pessoa do cativo. Já desmentidos por nossa realidade histórica. Questionado, disse que sua concepção dos brasileiros não é preconceituosa. Mas não disse que é desconhecimento da história social do Brasil.
Muita coisa ficou fora do elenco de suas concepções sobre o nosso povo. Para não parecer preconceituoso, ele poderia ter dito que no rol dos denunciados e processados no escândalo do mensalão não há pardos nem negros. E que foi um culto magistrado negro que levou o processo até o fim, o ministro do STF, Joaquim Barbosa. Como não há nem pardos nem negros entre investigados, processados e condenados da Lava-Jato.
É uma pena que ele não lembre que numerosos negros lutaram pelo Brasil na Guerra do Paraguai. Oferecidos pelos brancos senhores de escravos no lugar de seus filhos brancos, convocados. Escravos não podiam ser soldados. Eram, então, alforriados para lutar pela pátria no lugar de sinhozinhos privilegiados. Nessa iniquidade, a Guerra do Paraguai criou no Brasil a equivalência de branco e negro: um negro valia um branco. A única malandragem do negro, nessa guerra, foi a de lutar e até a de morrer em lugar de filhos de senhores de escravos. O general tampouco disse qual era a malandragem nos canaviais e no eito dos cafezais em que o tronco e a chibata misturavam suor e sangue para produzir a doçura do açúcar e o ouro do café.
Só chegamos à agricultura e à indústria modernas graças ao legado do ranger de dentes de seres humanos transformados em coisas e em semoventes, arrolados nas listas de população como equivalentes de animais de trabalho. Ainda nos restam senzalas, em exíguos quartos de empregadas domésticas negras e mulatas que dormem o sono cansado de vítimas históricas da cruel malandragem do escravismo.
Durante dois séculos e meio, milhares de índios capturados no sertão foram reduzidos ao cativeiro. Pagaram em servidão vitalícia o preço de sua conversão forçada ao cristianismo. Qual preguiça, cara-pálida? Nossa literatura do século XIX reconheceu-lhes a paternidade simbólica da pátria. Durante esse longo tempo, nossos índios carregaram nas costas o pesado Brasil da preguiça branca.
Um dos maiores nomes do Exército brasileiro, o marechal Candido Mariano da Silva Rondon, era de ascendência bororo. Um dos nossos maiores jogadores de futebol, Garrincha, era um índio fulniô. O xavante Juruna foi a consciência étnica da nação na Câmara dos Deputados.
O general não falou no legado dos mulatos do barroco mineiro, na música, na pintura, na arquitetura. Não falou no padre José Maurício, mulato, compositor erudito que fora professor de música de dom Pedro I. Nem nos escritores Machado de Assis, Lima Barreto, Luís Gama e Ruth Guimarães.
O general não poderia fazer política sem falar o português mestiço de língua nheengatu. A língua portuguesa que o general fala e eu falo tornou-se mestiça preguiçosa com o enxerto de palavras tupi no seu vocabulário. Mas sobretudo pela abundante invasão de vogais que a tornaram lenta e brandas as consoantes. Os índios forçados a falar português só o conseguiram dulcificando-o com vogais de abrandamento. Nem pipoca o general poderia comer se não falasse o preguiçoso nheengatu dessa palavra.
Minimizar o índio como pessoa e como autor de cultura, reduzirá o Brasil a uma ilhota desfigurada e sem brasilidade, a uma pátria impatriótica. Quem recortar o negro da história, dos costumes e da identidade do brasileiro, que é antes de tudo um mestiço, também de mestiçagem cultural, nunca se encontrará com o Brasil. A pena de morte ideológica, a do preconceito, mata a pátria, não as iniquidades que a crucificam. Pátria não é delegacia de polícia nem é quartel. Pátria é sociologicamente o nós das nossas diferenças e do nosso encontro. Sem esse nós, pode haver governo, mas não haverá a quem governar.
Valor Econômico (17 de agosto de 2018)

Os insatisfeitos e a democracia (Maria Herminia Tavares de Almeida)

Enquanto candidatos e partidos se ajeitam na largada da campanha, pode ser útil conhecer o que pensam da política aqueles que os premiarão com a vitória ou punirão com a derrota. Para isso vale recorrer ao Latinobarómetro, entidade de pesquisas de opinião sediada no Chile, que desde 1995 afere, ano a ano, os humores da sociedade em 18 países da área.
Seus dados mostram que os brasileiros estão especialmente insatisfeitos com a política e suas instituições. Em 2017, apenas 6% confiavam no governo, 7% em partidos e 11% no Congresso — porcentagens bem inferiores à média latino-americana e que aproximam o país daqueles vizinhos com histórias políticas bem mais atribuladas e pouca experiência democrática. É o caso de Honduras, El Salvador, Guatemala, Peru, México, Paraguai e Colômbia. Entre nós, as Forças Armadas, a polícia e o Judiciário são relativamente mais confiáveis, embora longe da marca de 50% das opiniões. Maioria expressiva dos brasileiros só confia na Igreja.
Apesar da inesperada companhia em que o país se encontra na região, as tendências observadas destoam menos do que se poderia esperar do que se passa nas nações mais ricas e de longa tradição pluralista. O desencanto e a desconfiança em face das instituições democráticas, especialmente os partidos políticos, são fenômenos reconhecidos e estudados pelos especialistas em política europeia e norte-americana.
O que chamam de "desafeição democrática" convive, paradoxalmente talvez, com a adesão firme à democracia como sistema e forma de governo a serem preservados. Seriam, portanto, sociedades habitadas por democratas insatisfeitos.
Alguns autores acreditam que essa insatisfação corrói a legitimidade da democracia; outros a consideram expressão positiva da presença de um público mais informado e, em consequência, mais propenso a exercer vigilância sobre os governos.
No Brasil, porém, a reticência diante das instituições representativas se estende à democracia propriamente dita. Menos da metade dos cidadãos (43%) se declaram democratas convictos, sustentando que o regime de competição política é sempre melhor; já a maioria se divide entre os poucos que dizem preferir um regime autoritário e os muitos para quem tanto faz.
Esse quadro não se explica pelas difíceis circunstâncias atuais. Repete-se desde que o Latinobarómetro iniciou os seus levantamentos, há mais de duas décadas.
Só em três ocasiões, nos governos do Partido dos Trabalhadores, os democratas convictos ultrapassaram —por pouco, embora— o patamar de 50%. Em 2017, não mais de 13% dos brasileiros afirmavam estar satisfeitos com a democracia. E, numa quase unanimidade, 97% acreditam que o governo serve aos poderosos. Em nenhum outro dos 18 países pesquisados os números são tão desalentadores.
Em lugar de democratas insatisfeitos, temos aqui cidadãos insatisfeitos, a maioria descomprometida com um regime político competitivo e pluralista. Estará ele em risco por isso? Como se sabe, a democracia representativa é o governo limitado da maioria, cujas inclinações não se refletem automaticamente nas decisões públicas, mas são filtradas pelas instituições e interpretadas pelas lideranças sobre as quais repousa a estabilidade do sistema.
Enquanto essas, por convicção ou interesse, estiverem alinhadas com a democracia e suas regras, nada a temer. O problema emerge quando entram em cena figuras empenhadas em explorar a insatisfação e desconfiança dos eleitores seja qual for seu custo para a democracia.
(*) Maria Hermínia Tavares de Almeida, é professora titular de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Folha de SãoPaulo (15 de agosto de 2018)

terça-feira, 14 de agosto de 2018

A máquina da polarização (Demétrio Magnoli)

Quando, em 2002, Lula da Silva lançou a Carta ao Povo Brasileiro, o PT reconhecia que a maioria do eleitorado situava-se no centro do espectro político. A disputa pelo centro marcou as eleições cruciais da Nova República: o triunfo de FHC, em 1994, e o do próprio Lula, no ano da Carta. Nada indica que o eleitorado mudou, ao menos no que concerne a valores ideológicos. Mas, paradoxalmente, a campanha eleitoral inicia-se sob o signo da polarização.
A lógica em curso, no horizonte do primeiro turno, organiza-se em torno da disputa pelos extremos. De um lado, Ciro Gomes concorre com Fernando Haddad, o avatar de Lula, por um lugar no turno final. Do outro, Geraldo Alckmin concorre com Jair Bolsonaro pelo outro posto disponível no turno decisivo. Henrique Meirelles, que carrega o cadáver do governo Temer, está virtualmente fora do jogo, embora tire votos preciosos de Alckmin. Marina Silva, que tira votos dos dois polos, e Alvaro Dias, um dreno de votos de Alckmin no Sul, excluíram-se voluntariamente do debate ideológico principal, escolhendo a posição de “candidatos da Lava-Jato”.
A crise terminal da Nova República é o pátio no qual opera a máquina da polarização. O lulopetismo invoca o impeachment como pretexto para interditar a revisão crítica da política econômica que conduziu o país à depressão e a condenação de Lula como álibi para evitar o confronto com o tema da corrupção. A gritaria sobre o “golpe”, que se mantém mesmo depois dos pactos eleitorais com os “partidos golpistas”, forma a moldura de uma plataforma negacionista. Recusando-se a tomar conhecimento do colapso fiscal, Haddad promete um retorno aos “anos dourados”. Sem medo de ser feliz, nadando nas águas mornas do populismo, o corpo substituto de Lula rejeita o teto de gastos, a reforma previdenciária e a reforma trabalhista.

Isso tem implicações. Ciro, ex-ministro de Itamar e de Lula, uma figura que poderia estabelecer uma ponte entre o centro e a esquerda, curva-se à partitura do populismo para pescar no oceano do eleitorado lulista. O candidato do PDT ecoa o discurso do “golpe parlamentar”, namora com anacronismos nacionalistas, compromete-se a reverter os leilões do pré-sal e anuncia que, de algum modo misterioso, numa “carga” contra o Judiciário, resgatará da masmorra o presidiário Lula.
Na ponta oposta, Bolsonaro incendeia o imaginário do autoritarismo populista. O clown da extrema-direita conta histórias sombrias sobre crime e castigo, pecado e salvação, Orcrim e polícia, poder civil e poder militar, liberdade e autoridade, enquanto seu guru econômico entoa a cantiga de ninar do “Estado mínimo”, investindo especulativamente na ignorância histórica e política do “mercado”. A desmoralização da elite política confere-lhe quase 20% das intenções de voto. Em busca desse mercado eleitoral, Alckmin desvia a nau tucana para a direita.
Sob assédio do bolsonarismo, o PSDB troca de pele, substituindo FHC por João Dória. Na marcha da centro-esquerda à centro-direita, o partido faz do antipetismo uma doutrina, renuncia a falar sobre direitos sociais e flerta com o conservadorismo no âmbito dos costumes. Cercado pelo “centrão”, Alckmin perde contato com a classe média urbana e a juventude. Significativamente, não poucos dos quadros históricos tucanos optam pela retirada da cena pública ou procuram alternativas no simulacro de partido criado por Marina.
As engrenagens que produzem a polarização também agravam a crise de legitimidade do sistema político da Nova República. As sondagens registram taxas de rejeição devastadoras para todos os candidatos viáveis (e, inclusive, para Lula). O voto por exclusão, prática normal no turno final, surge como comportamento predominante já no turno inicial.
O eleitorado segue no centro, mas os candidatos escorregaram para as margens do palco político. O cenário espelha um duplo fracasso histórico. Num lado, do PT, que se reduziu à condição de aparato partidário de um caudilho. No outro, do PSDB, que se deteriorou até assumir feições similares às do “centrão”.
O Globo
13 de agosto de 2018

Rito místico (Marco Aurélio Nogueira)

Não é difícil entender a postura do PT e do PCdoB que, na noite de domingo 5 de agosto, indicaram Fernando Haddad candidato a vice-presidente na chapa de Lula e um acordo nacional que permitirá a Manuela D’Ávila entrar na chapa mais à frente. Era o que lhes cabia fazer.
Mas surpreende o modo como as decisões foram tomadas.
PT e PCdoB são partidos laicos, com quadros políticos experimentados e militância ativa. Todos ali sabem pensar com a própria cabeça e se vangloriam disso.
Porém, para por em ação o “plano B” e a operação concluída ontem, precisaram aguardar que Lula enviasse da prisão uma carta dando aval à nova estratégia. Sem a palavra final e a ordem do ex-presidente, o impasse persistiria. Criou-se assim um cenário de submissão e subserviência, no qual Lula é apresentado como uma mente superior, no melhor estilo “guia genial do povo”, devidamente revestida da imagem de “maior líder político do Brasil”.
A indicação feita pela carta de Lula não conteve qualquer novidade ou surpresa. O “plano B” era notícia de véspera, conhecida por todos, vinha sendo cozinhada nos bastidores há semanas. Tudo não passou, na verdade, da obediência a um rito, destinado a consagrar a ideia de que Lula toma as decisões cruciais, que somente sua mente iluminada poderia tomar, graças ao descortino e ao desprendimento pessoal que a caracteriza.
Foi uma encenação, típica da política em estado bruto. A verdade dos fatos revela o inverso do que foi apresentado: os dirigentes partidários decidiram o que julgaram ser melhor e comunicaram a Lula as conclusões e avaliações do debate interno.
Mas o fato de terem aceitado o papel público de coadjuvantes, de paus mandados do chefe supremo, não mostra somente a baixa qualidade dos dirigentes e sua “disposição ao sacrifício”. É a prova cabal da disposição que têm de manter vivo um “mito” e uma mística regressista, que só servem para congelar o povo lulista em um estado de passividade sebastianista e exaltação religiosa.
Foi patético, durante a convenção petista, ver militantes colocando máscaras com a cara sorridente de Lula. De seu retiro forçado em Curitiba, o ex-presidente alimentou o surto místico: “sei que estou presente em cada um de vocês”.
A estratégia lulista e a insistência de Lula trouxeram desconforto a lideranças diferenciadas como Manuela e Haddad, que se rebaixaram sem resistência aos desígnios de seus partidos, numa demonstração de que o personalismo e o burocratismo engessam a esquerda de um modo que se imaginava superado.
Pior é ver Haddad, um intelectual provado e talentoso, submeter-se a um “estágio probatório” para que os olhos superiores do chefe avaliem se possui o DNA petista e a qualidade necessária para ser candidato. Reduzido à condição de estepe de uma manobra bastante farsesca, Haddad pode não mobilizar as bases partidárias, que o rejeitam, perder os espaços que conquistou e esfriar a renovação do PT, coisa que, de resto, é indispensável e para a qual ele tem o perfil adequado.
Ele aceitou o jogo, mesmo sabendo que pode sair do processo menor do que quando nele entrou. Efeito colateral cruel da vigência cega da disciplina partidária, essa máquina que tritura talentos e esmaga a criatividade.
10 de agosto de 2018