sexta-feira, 28 de junho de 2019

De Viktor Orban a rainha da Inglaterra? (Fernando Schüler)

Dias atrás, Bolsonaro reclamou que estava sendo transformado em uma rainha da Inglaterra. Quando li aquilo, achei exagerado. Geralmente acho tudo meio exagerado, em política. Mas depois fiquei pensando e comecei a achar que o presidente tem alguma razão.
Desde a posse, pautas de interesse direto do governo vêm sistematicamente caindo. Assistimos agora ao fim melancólico do decreto das armas e o envio resignado de um projeto de lei ao Congresso (como deveria ter sido feito desde o início). Vimos atentativa frustrada de transferir a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura. Mesmo coisas esquisitas, como a ida da embaixada para Jerusalém, com toda a corte feita por Netanyahu, deu com os burros n’água.
Ainda nesta semana, o presidente vetou o item que prevê a lista tríplice para as agencias reguladoras. Aposto que o veto seja derrubado. Não apenas porque o governo não tem base, mas porque a lista tríplice é uma boa ideia. Despolitiza as agências. Restringe um poder do qual o presidente não precisa e que é bom que não tenha. E não estou falando de Bolsonaro, mas de qualquer presidente que venha pela frente.
Como tapa de luva, o presidente teve que assistir à inclusão, na Constituição, da execução obrigatória das emendas de bancada, retirando mais um naco de poder do Executivo. E precisa escutar todo dia que a reforma da Previdência anda sozinha no Congresso, à moda de um parlamentarismo branco (a expressão, muito boa, é do Fábio Giambiagi).
Enquanto isso, Rodrigo Maia conduz a aprovação da reforma com os partidos e governadores, encomenda uma agenda econômica própria e diz já ter definido instalar a comissão especial da reforma tributária (também nascida dentro do Congresso) ainda antes do recesso parlamentar.
Rodrigo Maia não é, mas parece agir como o primeiro-ministro em nosso parlamentarismo de coalizão. Ou, se quiserem, nosso presidencialismo de consensos provisórios. Tudo muito democrático, com freios e contrapesos funcionando à exaustão, em uma lógica estranha, aqui nos trópicos, que chamei de modelo de corresponsabilidade.
Tudo, aliás, inteiramente diferente do que o cenário desenhado, não faz muito, pela nossa crônica política, que insistia em apresentar Bolsonaro como uma espécie de Viktor Orbán dos trópicos ou, para os mais delirantes, como o novo Hugo Chávez.
A maldita realidade vem mostrando outra coisa. O país parece estar efetivamente fazendo uma experiência de parlamentarismo branco. Com o incômodo detalhe de que esse sistema não existe. Decorre daí nosso maior problema. Ele não vem da ameaça autoritária ou plebiscitária. Quem ainda estiver pensando nisso não está entendendo nada do que se passa por aqui.
O problema é a falta de direção. Nos tornamos um sistema presidencialista funcionando à moda parlamentar. Um sistema a meio caminho: presidencialista na forma, parlamentar no jeito. É possível enxergar alguma virtude aí. A ideia de um país funcionando à base de consensos progressivos e repartição do poder. Já escrevi tentando enxergar o lado positivo disso tudo.
Mas é possível perceber as sombras. A maior delas é a paralisia, a incerteza, a desconfiança crescente da sociedade e do mercado sobre a capacidade do sistema tocar adiante, de fato, alguma agenda relevante, para além da reforma da Previdência.
O país tem diante de si um amplo programa de micro e macro reformas estruturais, bem como um plano audacioso de desestatização. A percepção de que não há um arranjo político e pulso para fazer isso andar é hoje o principal inibidor do investimento a longo prazo no país.
Arriscamos cair na síndrome da democracia que não governa. Algo próximo à vetocracia, de Francis Fukuyama. A situação em que muitos compartilham do poder, mas o sistema como um todo caminha para não sei onde. Na expressão de Andrew Rawnsley, a democracia que se tornou “mais venenosa, ainda que mais desdentada”.
Confesso não ter ideia de como sair dessa zona de sombra. Não se trata de uma tragédia, mas de uma sistema que anda devagar, à base de consensos frágeis, quando deveria envolver a sociedade em um grande projeto de mudança. Se dependesse de mim, apostaria todas as fichas em uma reforma estrutural do sistema político, mas ninguém parece dar bola para essas coisas.
(*) Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Folha de S. Paulo/27 de junho de 2019

Presidencialismo sem coalizão (Christopher Garman e Rosangela Batista Cavalcanti)

Boa parte da cobertura política do governo do presidente Jair Bolsonaro tem focado na questão de como, e quando, ele poderá construir uma base de apoio no Congresso. Mas está ficando cada vez mais claro que esse dia nunca chegará.
O presidente foi eleito com um discurso de campanha contra a classe política e o chamado “toma lá, dá cá”. Ele compôs uma equipe ministerial sem consultar lideranças partidárias e negociações abertas pelo Palácio do Planalto para indicações políticas nos segundo e terceiro escalões nunca prosperaram. Bolsonaro reluta em abrir espaço para indicações políticas para evitar o custo de ser visto como traidor de sua promessa de não ceder à “velha política”. De forma igualmente importante, ele já demonstrou que tende a recorrer à retórica contra a classe política sempre que entra em dificuldades. Adicione-se a queda dos índices de aprovação do presidente nesse início de mandato e fica fácil apostar que Bolsonaro jamais construirá uma base aliada majoritária.
A grande pergunta para o restante do mandato do presidente, portanto, é a seguinte: como ficarão a governabilidade e a agenda de reformas com um governo que dificilmente terá maioria no Congresso? Duas respostas, com narrativas diferentes, em geral, são dadas a essa pergunta, e ambas, acreditamos, estão erradas.
A primeira, e mais pessimista, se baseia no conceito de presidencialismo de coalizão. De acordo com esse raciocínio, em um sistema presidencialista multipartidário como o brasileiro, presidentes precisam construir uma base parlamentar por meio do compartilhamento do poder. Se ignorarem essa lógica, teremos paralisia de reformas e/ou crise política. Os governos de Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff servem como exemplos do que pode ocorrer.
Esse conceito não consegue explicar, porém, como o Congresso está prestes a aprovar uma reforma da Previdência e já aprovou medidas como cadastro positivo, abertura do setor aéreo a linhas aéreas estrangeiras e medidas provisórias de interesse do governo que estavam prestes a expirar. O modelo de presidencialismo de coalizão peca por presumir que, num governo sem maioria, o interesse do Legislador é provocar uma crise, e não aprovar reformas.
Existem referências internacionais para explicar por que não estamos vendo isso no Brasil. Quase 35% dos governos parlamentaristas pós-Segunda Guerra Mundial na Europa eram governos minoritários – sem maiorias no Parlamento. A literatura em ciência política mostra que há condições para reformas serem aprovadas e governos sem crise mesmo sendo minoritários. O interesse do Parlamento, ao não participar de um governo, nem sempre é gerar crise e paralisia.
Uma narrativa alternativa, que tem encontrado mais adeptos recentemente, vai ao outro extremo: afirma que o protagonismo das reformas caberá às lideranças de Rodrigo Maia na Câmara dos Deputados e de Davi Alcolumbre no Senado, que estão coordenando uma agenda positiva no Congresso. Será que estamos perante um parlamentarismo branco?
Essa narrativa peca por não entender o poder de Maia e Alcolumbre. Eles não lideram uma coalizão tradicional porque não têm instrumentos para manter lealdade nas votações. Eles não têm cargos para distribuir nem têm um projeto eleitoral de poder para aglutinar uma base. O real poder deles provém da coordenação das preferências das lideranças no Congresso. Controlam a pauta na Câmara e no Senado, mas, se os desejos das maiorias da Casas não estiverem alinhados, eles não têm como costurar uma votação.
Nessas circunstâncias, o essencial, portanto, é entender os incentivos e as preferências dos legisladores em um governo presidencialista minoritário. Com relação à reforma da Previdência, o grande motivador do voto está sendo o medo: todos querem evitar uma crise econômica maior, que certamente virá sem a aprovação de uma reforma. A fúria do eleitor contra a classe política é o grande pano de fundo das decisões do Congresso. E o temor de uma crise econômica vem aumentando em Brasília, com os sinais de uma economia que não cresce. A reforma da Previdência deve ser aprovada porque o Congresso reconhece que todos perderão sem sua aprovação.
Mas e depois de aprovar a Previdência? Esse medo deverá diminuir. A partir daí, as preferências no Congresso talvez não fiquem tão alinhadas a favor de uma agenda reformista. O atual Parlamento é muito mais sensível à opinião pública do que a última legislatura e, portanto, mais sensível também à frustração do eleitor com a precariedade dos serviços públicos em áreas como segurança pública, saúde e educação. Em alguns casos, isso deverá se traduzir em projetos de mais gastos. Em outros casos, deverá haver avanço em reformas que estimulam investimentos privados.
Reformas que venham a reduzir o poder do Executivo, como a PEC do Orçamento Impositivo, também devem prosperar. Se o Executivo não está disposto a compartilhar o poder, o jogo do Congresso será transferir para si maior influência sobre as políticas públicas. Num presidencialismo sem coalizão, o mais provável é, portanto, um cenário misto para a agenda de reformas, e talvez um Executivo que saia mais fraco do ponto de vista institucional. Está bem claro, porém, que, daqui para a frente, o crucial será entender melhor as motivações dos congressistas que não mais condicionarão seus votos ao recebimento de benesses do Executivo.
(*) Diretor executivo do Eurasia group e cientista política
O Estado de S.Paulo/24 de junho de 2019

Onde nos perdemos? (Zander Navarro)

Vivemos tempos convulsionados. Quando começaram? Impossível determinar um ponto de partida que obtenha concordância sequer entre a nata dos estudiosos. Sobretudo se o olhar for global e recorrermos às ocorrências típicas de vários países. E não apenas os sempre decisivos fatos econômicos, mas também tendências sociais, culturais ou institucionais que se espraiaram em distintos ambientes societários. Algumas mudanças, de fina sutileza, se insinuaram nas frestas da interação humana e, quando assomaram, já eram comportamentos sociais estabelecidos com alguma rigidez.
Exemplifico. Na década de 1990, após a queda do Muro de Berlim e o anúncio da “vitória final do capitalismo”, liquidando a dicotomia da guerra fria, os adoradores incondicionais do mercado se viram sem freios e, assim, conseguiram fixar o seu credo ortodoxo. Nascia o neoliberalismo, que passou a orientar a vida humana sem restrições. Propagou o discurso de redução do Estado e a descentralização governamental, sob a justificativa da desconcentração do poder. Em diversos países, inúmeras responsabilidades que eram antes dos governos centrais foram transferidas aos entes subnacionais (municípios, no Brasil), quase sempre sem a equivalência financeira. Aos poucos, gerou a corrosão tanto da oferta como da qualidade dos serviços, notadamente nos campos da assistência médica e da educação.
Contudo, sob as ondas democráticas da mesma época, esses fenômenos políticos fomentaram a narrativa da inclusão social e, dessa forma, aquela década evidenciou um curioso paradoxo. De um lado, aprofundou o neoliberalismo, uma ótica essencialmente conservadora. Mas, de outro, reforçou os ventos da primavera democrática, simbolizada pelo aumento da participação social – esta uma faceta típica de renovação progressista das sociedades.
Essa dualidade produziu leituras contrastantes entre os analistas, alguns reiterando euforicamente que a crescente presença do povo nos processos decisórios estaria antecipando grandes transformações na natureza dos próprios regimes políticos. Nasceram os orçamentos participativos, a via para “outro mundo (que seria) possível”. Outros, observando a crueza dos processos econômicos que dispararam sob a globalização naqueles anos, perceberam que o “fim da História” poderia estar sendo antevisto e, pelo contrário, as portas de alguma mudança significativa estariam se fechando.
É uma ilustração das crescentes confusões explicativas inauguradas com a espetacular derrocada do mundo socialista e as visões históricas acalentadas, desde a Revolução Francesa, sobre um mundo diferente daquele que foi sendo estruturado com o advento das modernas variedades do capitalismo. Não surpreende que nos últimos 20 a 30 anos a literatura especializada espelhe uma enorme incerteza sobre o futuro, ainda que, ao mesmo tempo, a magnitude das informações e o conhecimento tenham se ampliado de forma quase infinita.
E se o foco for somente o Brasil, poderíamos identificar algum momento (e suas razões) em que processos e tendências desencadearam uma infindável anomia social? Os mais conservadores insistirão nos efeitos da Constituição dita cidadã, porque esta teria consagrado direitos de custos inviáveis. Seria uma Carta para países ricos, longe da permanente confusão que nos caracteriza. Portanto, uma diretriz constitucional irrealizável. Esse diagnóstico é correto? Nosso maior obstáculo seria, de fato, um documento assinado há pouco mais de 30 anos?
Não parece plausível essa conclusão, particularmente se considerarmos o tempo já passado e seus desdobramentos. O País funcionou razoavelmente nas três décadas seguintes e experimentou momentos até gloriosos, como a fúria inflacionária que foi domada e a relativa estabilidade macroeconômica que se instalou. Tudo parecia indicar que finalmente descobríramos os trilhos futuros da prosperidade.
Então, onde tropeçamos? A resposta parece ser evidente, caso nos afastemos das disputas ideológicas que têm envenenado muitas análises. Pois as raízes do crescente desassossego coletivo devem ter sido lançadas a partir de dois momentos principais: as revelações assombrosas e inacreditáveis da Operação Lava Jato e, logo depois, a ruína econômica desencadeada no terceiro mandato petista. Foram os anos nos quais brotaram o desalento, a inquietação e, particularmente, as sementes da raiva social, sentimentos que não nos deixaram mais e que explicam, inclusive, o caricato e surpreendente (embora legítimo) resultado das eleições. Pouco antes, com o mensalão, o cotidiano dos brasileiros já havia sido abalado por revelações escandalosas, que parecem nunca ter fim. Assim evaporaram os sonhos de prosperidade econômica e alguma estabilidade social.
Há alguma luz promissora no horizonte? Claro que não, sejamos realistas, pois o contexto atual é kafkiano. Não se trata de uma fábrica de crises, mas uma usina de desvarios. É preciso abandonar o autoengano e as esperanças que acalentaram os eleitores. Talvez uma previsão prematura, mas precisaremos esperar o fim da atual administração, torcendo para que o estrago já em marcha seja o menor possível. Num país segmentado por interesses corporativos, a maior parte deles sacramentada em preceitos legais, um acordo nacional amplo é inviável e nada relevante ocorrerá. Sobretudo sob uma administração como esta, encabeçada por um presidente inequivocamente despreparado para a função. E a sorte e a oportunidade somente favorecem os espíritos preparados, como enfatizou Pasteur.
Caso consigamos sobreviver até o próximo pleito presidencial, quem sabe uma nova maioria não repetirá apostas delirantes. É assim que funciona a democracia. Não estamos gostando? Precisaremos, então, restituir a razão como o norte principal das escolhas eleitorais, não existe outro caminho.
O Estado de S.Paulo/24 de junho de 2019

A era digital de risco (Marco Aurélio Nogueira)

O mundo político e a opinião pública estão há duas semanas às voltas com o vazamento de conversas telefônicas envolvendo o ministro Sergio Moro e procuradores da Lava Jato. São conversas constrangedoras e inadequadas quando se levam em conta as expectativas do sistema de justiça em que vivemos. As revelações, além do mais, deixam patente algo que todos sabem, mas nem todos levam suficientemente a sério: hoje não há ser vivo que se possa considerar imune a invasões de privacidade. A era digital, com seus recursos e instrumentos, fez com que os dados se tornassem moeda preciosa e facilmente manipulável.
Em entrevista publicada recentemente, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Velloso observou que “hoje, o exercício da função pública é cada vez mais uma profissão de risco. A cada ano a privacidade vai se tornando mais vulnerável”. Para ele, “o que foi feito para facilitar e proteger reverte-se à condição de pesadelo”.
O cenário é sombrio quando se trata de segurança informacional. A revolução digital facilitou muita coisa, ampliou acessos e transparência, mas permitiu também que a vulnerabilidade se expandisse. Na velocidade de um clique, qualquer um pode perder dados valiosos e ter sua identidade virtual sequestrada.
Segundo dados governamentais, em 2018 ocorreram 20,5 mil notificações de incidentes computacionais em órgãos do governo, dos quais 9,9 mil foram confirmados. Desde 2014 o número não fica abaixo de 9 mil. No levantamento feito, 26% do total dos casos são de adulteração de sites públicos por hackers. Em segundo lugar estão os vazamentos de dados, com 20%.
A situação estrutural em que estamos remete ao que o sociólogo alemão Ulrich Beck (1944-2015) chamou de “sociedade de risco”, expressão de uma fase histórica de transições aceleradas e reconfigurações. Em sua formulação, a “sociedade de risco” se tornaria progressivamente o casulo em que habitariam todos os humanos. Um casulo instável, marcado pela incerteza, por ameaças recorrentes e pela dificuldade de planejamento, no qual a vida transcorreria impulsionada pela inovação tecnológica, sem fornecer muitos espaços para a intervenção política. O risco não cairia do céu como uma fatalidade: viria por decisões humanas, “incertezas fabricadas”, rotinas, descuidos.
Quando Beck publicou Sociedade de risco (1986), a vida ainda não estava saturada de tecnologia de comunicação e informação, os celulares mal haviam sido projetados, os computadores e a internet engatinhavam, a própria globalização não havia se aprofundado tanto. Mas Beck antevia que o risco se converteria em companheiro de viagem da humanidade. Ganhos conseguidos como progresso iriam se mostrar carregados de perigo. Chernobyl aconteceria pouco depois da publicação do livro. A paisagem ficaria tingida por tragédias ambientais, crises econômicas sucessivas, tsunamis inesperados, aquecimento global.
A intensificação das relações de troca, de comunicação e de circulação de pessoas para além das fronteiras nacionais fez com que as sociedades nacionais, com seus respectivos governos, passassem a viver sob pressão. Muitos espaços e atores “transnacionais” condicionam as operações estatais. Os Estados não são mais os únicos sujeitos a determinar as leis e o Direito Internacional. Perderam soberania e, com isso, não conseguem mais prover segurança ou proteção para seus cidadãos, nem para seus próprios órgãos e servidores públicos. A vulnerabilidade digital é parte desse quadro.
O caso Moro associa-se à vulnerabilidade, mas não tem que ver somente com isso. O vazamento sugere que o então juiz não teria mantido a devida equidistância entre as partes, um tema controvertido, sobre o qual não há consenso. É evidente que ele não saiu bem na foto e foi forçado a descer do pedestal em que estava, ao mesmo tempo que ficou mais dependente do apoio de Bolsonaro.
A Lava Jato também sai desgastada do episódio e poderá enfrentar dificuldades, caso se tenha uma sucessão arrasadora de novas revelações. Ocorre, porém, que a operação conta com grande apoio popular, que valoriza o que ela trouxe de avanço no combate à grande corrupção. Isso ajuda a blindá-la.
As conversas ora reveladas mostram que a Lava Jato adotou procedimentos estranhos às práticas forenses estabelecidas. Nada que não se soubesse, pois a operação sempre se vangloriou de estar assentada numa colaboração explícita entre juiz, Ministério Público Federal e Polícia Federal. Foi assim que conseguiu seus trunfos principais e conquistou o apoio de que desfruta.
O ministro da Justiça sai menor do episódio, que poderá manchar sua imagem e sua biografia. Na esfera política, porém, o jogo continua em aberto, até para o próprio Moro.
A polarização voltou a se intensificar, com as torcidas se organizando em claques para apoiar Lula ou a Lava Jato. É uma situação que leva água para o moinho do bolsonarismo, que faz da hostilidade maniqueísta seu procedimento principal. Não beneficia quem a ele se opõe, não desintoxica o ambiente.
Houve, porém, alguns ganhos. Ao menos um dos personagens desceu do pedestal. Demos de cara, também, com o lado sombrio da era digital. A gravidade das mensagens trocadas entre integrantes da Lava Jato tem seu reverso no vazamento de dados conseguidos graças a procedimentos criminosos. A privacidade evaporou, relativizando o que possa ter havido de delito nas articulações entre Moro, procuradores e policiais federais. Aprendemos a importância de ficar atentos.
Agora, podemos avaliar se as opções da Lava Jato foram acertadas. “Promotores de justiça” (como são os procuradores) e juízes estão ou não do mesmo lado, o lado da Justiça, podendo por isso interagir com liberdade? Ou tudo dependeria do crime cometido e do status do criminoso? São questões complexas, por cuja adequada resolução passa parte importante do futuro da democracia entre nós.
O Estado de S.Paulo/22 de junho de 2019

O avanço da direita radical (Carlos Rydlewski)

As birutas estão em polvorosa. Afinal, não tem sido tarefa simples indicar para que lado sopram os ventos da política global. Prova disso, foram as recentes eleições para o Parlamento Europeu, realizadas no fim de maio. Se a votação para a escolha dos 751 eurodeputados confirmou algumas tendências, ela também esboçou um rearranjo de forças na região. Os partidos de centro seguiram perdendo espaço. A direita radical encorpou. Até aqui, nada de novo - seguiu-se o figurino esperado. A grande novidade foi um crescimento surpreendente de liberais pró-União Europeia e "verdes".
Para a quase totalidade dos analistas, o avanço desses dois grupos atuou como uma barreira para conter a evolução dos "eurocéticos", populistas e nacionalistas, que prometia ser acachapante. Essa turma (com ideias anti-imigrantes, antiestablishment, antiglobalismo, anti-LGBTQ, anti-China, anti-Francisco, o papa...) ocupava perto de 20% dos assentos da câmara europeia em 2014. Agora, detém 25%. Havia a sólida expectativa, contudo, de que poderia alcançar 30%. Previsões fantasiosas chegaram a especular 50%. A questão que fica é óbvia: será que o ímpeto dos extremistas arrefeceu? Mais uma: será que essa eventual perda de tração pode atingir outras regiões?
É cedo, e nem sequer existem elementos, para responder a essas questões. O primeiro indício de mudança, contudo, está na mesa. E essa virada dos ventos, ainda que incipiente, tem sido atribuída a uma participação excepcional dos eleitores no pleito. Compareceram às urnas 51% dos 512 milhões de europeus com direito a voto, a maior cota registrada em 20 anos. A lógica por trás dessa tese indica que, quanto maior o envolvimento da população, menor o radicalismo. Pode ser. De qualquer forma, como anotou o cientista político búlgaro Ivan Krastev, em artigo publicado no "New York Times", as mesmas eleições também demonstram que a onda nacional-populista não passará tão cedo. Ao contrário. Hoje, boa parte dos líderes e ideólogos desses grupos tenta se reorganizar em um bloco. Na prática, eles querem formar uma espécie de "Internacional Populista". O sucesso dessa estratégia só será conhecido a partir de julho, quando o novo Parlamento iniciará seus trabalhos.
Soa um tanto dissonante atribuir à direita o termo "internacional", profundamente enraizado no marxismo clássico e nas ambições socialistas do início do século passado, ainda que remonte à Revolução Francesa. Mas as bases desse movimento, mesmo que às avessas, foram lançadas. Entre seus protagonistas, estão políticos que se fortaleceram nas eleições na Europa. Matteo Salvini, o ministro do Interior e vice-premiê da Itália, ocupa o topo dessa lista - lugar, aliás, no qual faz questão de se colocar.
Seu partido, a Liga Norte, dominou amplamente as urnas entre os italianos, com um discurso contra os imigrantes e a União Europeia. Ele passou de 6% dos votos obtidos em 2014, para nada menos do que 34% neste ano. Outro destaque foi Marine Le Pen, do Agrupamento Nacional (RN, na sigla em francês) - a nova marca da Frente Nacional. Com base na mesma retórica, ela conquistou 24% dos votos franceses e derrotou o presidente Emmanuel Macron, cujos candidatos atingiram 22%.
Essa frente nacional-populista europeia tem outros adeptos em potencial, ainda que não sejam aliados naturais de Salvini e Marine Le Pen. Nesse time joga, por exemplo, o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, tido como o mais "distópico" dos representantes da direita radical. Seu partido, o Fidesz, arrasou. Ficou com 52% da preferência do eleitorado e terá 13 das 21 cadeiras húngaras na Eurocâmara. Não menos demolidora foi a atuação do inglês Nigel Farage. Ele criou o Partido do Brexit (o nome diz tudo) seis semanas antes das eleições europeias. Ainda assim, abocanhou 31% dos votos britânicos. Para dar uma ideia do que isso significa basta indicar que o Partido Trabalhista ficou com 14% e o Conservador, com 9%. Hoje, no Reino Unido, já não se discute como os conservadores sairão da atual crise em que se enfiaram, mas, sim, se vão sobreviver a ela.
Uma semana antes das eleições, Salvini e Marine Le Pen promoveram o primeiro teste de rua da nova internacional. O líder italiano organizou uma manifestação de partidários do nacional-populismo, na praça em frente ao Duomo de Milão, a imensa catedral em estilo gótico da cidade italiana. O objetivo do encontro era dar visibilidade para o grupo parlamentar Europa das Nações e das Liberdades, que reúne nacionalistas, "eurocéticos" e populistas da direita radical. Os discursos, como sempre, focalizaram os "burocratas" de Bruxelas. Não faltaram ataques contra "símbolos do establishment" como o francês Macron, a chanceler alemã, Angela Merkel, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, e o papa Francisco.
A audiência entre os líderes da direita radical foi altíssima. Quase todos os convidados compareceram, o que incluiu Geert Wilders, o político xenófobo holandês, líder do Partido pela Liberdade, além de representantes de dez partidos similares da Áustria, Bélgica, Alemanha, Dinamarca, República Tcheca, Eslováquia, Bulgária, Estônia e Finlândia. "Na verdade, não falta demanda para o tipo de discurso que essas pessoas oferecem", diz o cientista político Fernando Abrucio, da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas (FGV-EASP). "Mas o problema é sempre o que eles conseguem entregar quando assumem o poder."
Daí outra dúvida: será que essa frente única nacional-populista vai dar certo? Muitos especialistas duvidam. Os políticos que compõem tais grupos nunca primaram pela cooperação. Além do mais, arestas agudas os mantém distantes. A maior delas chama-se Vladimir Putin. Ele é elogiado pela verve nacionalista e pelos "valores tradicionais" que defende e adota, embora alguns integrantes da direita radical afirmem abertamente que ele lidera uma "cleptocracia". Mesmo assim, os países do Leste Europeu mantêm um sem-número de rusgas com o líder russo, e esse nó não deve se desfazer tão cedo.
Esse, porém, é o lado militante da nova Internacional Populista, nas mãos de Salvini, Marine Le Pen e Geert Wilders. Mas o projeto da "internacional" tem um dono. Trata-se de Steve Bannon, o arauto do movimento nacional-populista no planeta. "A história está do nosso lado", bradou, seguidas vezes, nos últimos anos. Ele é uma figura conhecida, ainda que suas ambições globais não sejam tão difundidas. Foi estrategista-chefe da campanha de Donald Trump e conselheiro do presidente americano (chamado de o "Rasputin" da Casa Branca, numa referência ao mentor do czar Nicolau II, da Rússia). Dirigiu ainda o site conservador de notícias Breitbart News e atuou na Cambridge Analytica, a empresa responsável pelo escândalo da manipulação de dados de 87 milhões de usuários do Facebook, em 2016, às portas das eleições presidenciais americanas. Ele também é o ideólogo do "think tank" conhecido como The Movement.
"O Movimento", de Bannon, é uma espécie de resposta direitista à Open Society Foundations, a instituição sem fins lucrativos criada pelo magnata húngaro-americano George Soros, voltada para a promoção direitos humanos e de ações que fomentem a democracia em mais de cem países. Bannon chegou a definir a iniciativa de Soros como "um mal, mas brilhante".
O objetivo da entidade criada pelo ex-Rasputin de Trump, em 2017, segundo ele mesmo definiu, era oferecer aos partidos nacionalistas e populistas da Europa o know-how americano em pesquisa, mensagens e estratégias de "salas de guerra" para responder imediatamente a ataques políticos.
No último ano, porém, Bannon voltou-se para as eleições do Parlamento Europeu. Não deve ter saído satisfeito do processo. Empolgado, ele afirmou que a direita radical poderia ocupar 50% dos assentos da câmara europeia. Ficou com 25%. Como foi dito, trata-se de um resultado parrudo, mas em muito distante das expectativas do consultor americano. Na prática, "O Movimento" não decolou entre os europeus. Registrada em Bruxelas, em 2017, por Mischaël Modrikamen, líder do conservador Partido do Povo Belga, com a bênção de Salvini e Orbán, a entidade e seu ideólogo têm ambições que ultrapassam as fronteiras da Europa.
Em janeiro, por exemplo, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) foi apresentado como o líder do The Movement na América do Sul. Na ocasião, o filho do presidente Jair Bolsonaro (PSL), que não quis dar entrevista para esta reportagem, fez declarações protocolares a respeito da escolha. "Restauraremos a dignidade, a liberdade e as oportunidades econômicas na nossa grande nação e vizinhos", observou o parlamentar brasileiro. "A atuação de Bannon na Europa é vital, e apoiamos seus esforços contra o perigoso pacto global de migração."
As ações "globalistas" de Steve Bannon (na verdade, ele odeia esse termo) não se restringiram ao The Movement nos últimos anos. O consultor político também enveredou pelo campo religioso. Mesmo porque um dos seus temas - e alvos - diletos é o papa Francisco. O Santo Padre é criticado por boa parte da direita radical por defender imigrantes, pobres, gays, além de "não saber administrar" os escândalos recorrentes de abusos sexuais na Igreja Católica. Para atuar nessa seara, Bannon tentou criar outro "think tank" no ano passado - na Itália, em parceria com o Instituto Dignitatis Humanae (IDH), uma entidade católica conservadora, ligada ao cardeal Raymond Burke, líder da direita religiosa americana.
O projeto foi batizado pela mídia europeia de "templo do populismo". Ele funcionaria no mosteiro cartusiano de Trisulti, erguido em 1204, nas montanhas de Collepardo, a 130 km de Roma. A ideia era estabelecer um polo de formação de "gladiadores culturais", movidos pelos princípios do Ocidente judaico-cristão (parte crucial da retórica nacional-populista). Ali, seriam oferecidos cursos de mestrado em áreas como filosofia, teologia, história e economia.
O Ministério da Cultura da Itália chegou a conceder o uso do monastério por US$ 110 mil anuais, ao longo de 19 anos. Mas o processo foi barrado no mês passado. O jornal italiano "La Repubblica" informou que um documento de endosso do plano de negócios do IDH, fornecido pelo Jyske Bank, instituição financeira dinamarquesa, era fajuto. Um funcionário do banco confirmou a fraude à revista britânica "The Economist".
Bannon, por sua vez, disse que estava tudo certo. Atribuiu a confusão a uma celeuma provocada pela esquerda. O problema adicional foi que, à semelhança do que ocorreu com o The Movement, a tentativa do ex-assessor de Trump de se instalar entre italianos gerou protestos de toda a sorte. As críticas apontavam até para problemas com o turismo a partir da montagem de um polêmico QG conservador, em uma área conhecida por abrigar eremitas e místicos, entre labirintos de topiaria, abadias e conventos.
Mas o questionamento da atividade de entidades americanas na Europa foi além do mosteiro italiano. Em abril, um relatório produzido pelo site de notícias OpenDemocracy, com sede em Londres, apontou a existência de fluxos de dinheiro que cruzam o Atlântico para impulsionar agendas ultraconservadoras entre grupos europeus. De acordo com o informe, uma dúzia de organizações "fundamentalistas da direita cristã" dos Estados Unidos haviam despejado ali pelo menos US$ 50 milhões em recursos sem fonte identificada na última década.
Os recursos foram empregados no apoio de advogados e ativistas políticos, bem como em campanhas de "valores familiares" contra os direitos LGBTQ, a educação sexual e o aborto. Várias entidades beneficiadas estariam ligadas ao Congresso Mundial das Famílias, uma rede com conexões com políticos e movimentos da direita radical em países como a Itália, a Hungria, a Espanha, a Sérvia e a Polônia, onde o nacional-populismo e alguma dessas questões vêm ganhando uma dimensão alucinante.
O líder polonês Jaroslaw Kaczynski e os integrantes do seu partido, o Lei e Justiça (PiS), por exemplo, querem transformar o país em uma "zona livre de LGBTs". Pawel Adamowicz, então prefeito de Gdansk, morreu ao ser esfaqueado durante um evento de caridade, em janeiro. Ele era um importante defensor dos direitos da comunidade gay e da acolhida de refugiados.
Segundo relatório, o Centro Americano de Direito e Justiça está entre as entidades que realizaram os maiores gastos na Europa. Ele distribuiu US$ 12,4 milhões entre 2008 e 2017. A organização apresenta como conselheiro-chefe Jay Sekulow, um dos advogados pessoais de Trump. O Instituto Acton para o Estudo da Religião e Liberdade, que combina uma visão cristã conservadora com uma abordagem econômica de livre mercado, gastou US$ 1,7 milhão na Europa, entre 2008 e 2017. Na Itália, colaborou com o Instituto Dignitatis Humanae (IDH), o mesmo que recentemente se associou a Steve Bannon.
O trabalho do site britânico foi divulgado perto das eleições para o Parlamento Europeu. Os responsáveis pela produção do material observaram que os líderes do bloco estavam concentrados em prevenir e neutralizar uma possível interferência russa na votação, mas haviam fechado os olhos para outros tipos de influência. A divulgação dos dados teve ampla repercussão. "Mais de 40 deputados europeus escreveram para o presidente do Parlamento, da Comissão e do Conselho pedindo uma 'ação urgente' para proteger as eleições que estavam prestes a acontecer", diz Mary Fitzgerald, editora-chefe do OpenDemocracy. "O nosso texto foi publicado em 20 idiomas e 50 meios de comunicação."
Mary observa que, na Europa, existem leis de financiamento de campanhas que deveriam dar transparência ao processo eleitoral. "Mas, na realidade, há tantas lacunas e o apoio tanto logístico como tático 'em espécie' pode ser dado com pouca supervisão", afirma. "Enquanto isso, plataformas sociais não estão conseguindo rastrear adequadamente e divulgar quem está financiando anúncios de políticos direcionais aos eleitores on-line. Atualmente, é muito fácil tirar proveito de tudo isso."
Já no Brasil, com ou sem The Movement, a direita, recém-reerguida, vive uma divisão. O racha deu-se durante a preparação para os protestos do domingo, 26 de maio, que ocorreram em mais de cem cidades brasileiras. O evento foi convocado pelo time do chamado "bolsonarismo-raiz", que defende um confronto franco com o que chama de "velha política". Os principais alvos das manifestações, por isso mesmo, eram congressistas, notadamente o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF).
A ala moderada da direita, entretanto, questionou até que ponto a convocação ultrapassava a linha divisória entre a democracia do arbítrio. "O que estava se armando não eram manifestações propositivas", diz Hélio Beltrão, presidente do Instituto Mises do Brasil, um "think tank" de viés ultraliberal com sede em São Paulo. "O objetivo daquela ação era apenas demonizar os políticos, além de amordaçar o Congresso e o Supremo. O tom era o seguinte: 'Nós preparamos uma pauta. Agora, vocês a aprovem e ponto'. O que se pretendia era emparedar poderes, com apoio da multidão impulsiva, mobilizada por um discurso simplista. O nome disso é olocracia."
O analista político Alexandre Borges, ex-diretor do Instituto Liberal, outro "think tank", fundado em 1983, e um dos mais antigos centros de difusão de ideias liberais do Brasil, diz acreditar que essa divisão era inevitável. "O que se convencionou a chamar de 'nova direita' brasileira é um grupo para lá de heterogêneo", diz. "Em determinado momento, essas pessoas se uniram por um ideal comum. No caso, ficaram contra o PT, em particular, e contra a esquerda, em geral. Mas discordavam totalmente sobre um número imenso de questões, como fica cada vez mais evidente."
Assim, de um lado da banda da direita, ficaram os moderados, na maioria oriundos de "think tanks" criados no Brasil desde os anos 80. A outra ponta foi preenchida pelo núcleo duro do bolsonarismo. No governo, eles incluem os filhos do presidente, alguns ministros como Abraham Weintraub (Educação), Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Ricardo Salles (Ambiente), além de jovens que ocupam cargos no segundo. Nesse caso, um dos destaques é Filipe Martins, o assessor para assuntos internacionais do presidente. Trata-se de um jovem natural de Sorocaba, ex-aluno de Olavo de Carvalho, o guru da turma toda, e admirador de Bannon.
Essa ala radical é complementada por uma militância on-line tão ativa quanto agressiva. Nesse sentido, lembra o modelo de ativistas da alt-right (a direita alternativa), nos Estados Unidos. Como definiu George Hawley, professor de ciência política na Universidade do Alabama, em artigo publicado na revista "Foreign Affairs" ("The European Roots of the Alt-Right"), são grupos movidos por uma multidão de trolls nacionalistas.
O problema é que essa ruptura da direita se espraia pelo dia a dia do governo sob a forma de contradições e conflitos. Olavistas (e o próprio Olavo de Carvalho) criticam uma vasta lista de pessoas e grupos, o que inclui os militares, considerados como inimigos íntimos (eles lhes atribuem, na verdade, "um perfil tucano"). Os parlamentares bolsonaristas também não se fazem de rogados. O deputado federal Alexandre Frota (PSL-SP) recomendou recentemente que o governador do Rio, Wilson Witzel, despachasse um míssil contra a Virgínia, nos Estados Unidos, onde mora Carvalho, para "resolver 50% dos problemas do Brasil". Witzel, também da base bolsonarista, já havia dito que lançaria uma bomba desse tipo para acabar com o tráfico e com os "bandidos" da comunidade carioca de Cidade de Deus.
A operação do governo também patina com essas divisões. Um exemplo inequívoco desse tipo de problema foi a produção da Medida Provisória 881, editada em 30 de abril, e conhecida como "MP da Liberdade Econômica". O objetivo da proposta deveria ser criar normas gerais para balizar a atividade regulatória da administração pública. Com isso, seriam eliminados eventuais arbítrios e incertezas que recaem sobre a atividade privada. Um texto nesse sentido foi produzido por um conjunto de juristas, organizados em torno do Ministério da Economia. Ocorre que, quando tudo já estava encaminhado, esse grupo foi atropelado. Da ala radical, surgiu a MP, cujo sentido é, em muitos aspectos, oposto ao que se deveria esperar de uma lei de liberdade econômica. A 881, por exemplo, consagra exceções a partir das quais o Estado, em todas as esferas, pode intervir arbitrariamente na atividade econômica, o que inclui definir preços praticados pelo mercado.
Outros entraves, apontam fontes do governo, têm surgido com a falta de interlocução com os parlamentares. Como a administração federal não tem base no Congresso, os técnicos dos ministérios se encarregam do diálogo com os políticos. Essa conversa, entretanto, raramente dá-se no mesmo tom. Com isso, os projetos correm o risco de ficar pelo caminho. O fato, observa o cientista político Fernando Abrucio, da FGV-Easp, é que a direita radical representa cerca de um quarto, no máximo um quinto, do eleitorado nas mais importantes democracias do mundo. Não é maioria à exceção de lugares como a Hungria, de Orbán. Não raro, ela se elege no embalo de situações conjunturais, como o antipetismo no Brasil.
"O problema é que os líderes desses movimentos muitas vezes não se preocupam com políticas públicas e, sim, com valores", afirma Abrucio. "Esse é um elemento que unifica os políticos ligados ao nacional-populismo. A questão é como se governa com esse discurso, muitas vezes movido pelo ressentimento." Pois é justamente isso que anda difícil de entender. Isso em todo o mundo.
Valor Econômico/21 de junho de 2019

quarta-feira, 19 de junho de 2019

O governo faz inimigos de graça nas vacas gordas (Alon Feuerwerker)

Semana estranha, prenunciando tempos estranhos. Estava tudo dando certo para o governo, então a imprudência nascida da euforia vai produzindo as condições para começar a dar errado. A semana trouxe a impressão de que o governo não quer só ganhar. Quer ganhar sozinho e, de preferência, tripudiando. Daí para alguém voltar com as clássicas teorias sobre “projeto de poder” será só um passo.
A semana registrou uma vitória-chave da política econômica: o relatório da reforma da previdência. É um sintoma de que o modelo de articulação, surpresa!, funciona. Mesmo sem participar do Executivo, as bancadas votam a economia que o governo quer, com algum desconto. Mas o ministro da Fazenda lato sensu fez questão de transformar a vitória em derrota. Pois retiraram a capitalização.
O presidente decidiu demitir por diferenças político-ideológicas, e de maneira humilhante, um general respeitado. E anunciou pela imprensa a demissão de outro. Pareceu um movimento na linha do quem manda sou eu, erradamente interpretado aqui e ali como enfraquecimento da ala militar. Mas há jeitos mais inteligentes e produtivos de praticar o manda quem pode, obedece quem tem juízo.
O Supremo Tribunal Federal deu outra vitória importante ao Planalto na semana, ao chancelar na essência o decreto que extinguiu os conselhos sociais. Mas o governo preferiu atacar o STF por decidir que homofobia é crime comparável ao racismo. Isso quando o comando do STF enfrenta resmungos internos e externos por topar um pacto de governabilidade com o governo que o ataca.
E o Senado? Estava convenientemente fora do noticiário, só esperando para votar a previdência no segundo semestre. Aí resolveu apreciar a derrubada do decreto das armas. A chance de isso ser referendado na Câmara era próxima de zero. O governo tinha ampla margem para renegociar. Aí as milícias virtuais começaram a ameaçar os senadores. O que obrigou o presidente do Senado a reagir.
O Planalto andava infeliz com o presidente do BNDES, por não oferecer denúncias de corrupção nas gestões petistas. No governo Temer fizeram uma devassa e não acharam nada. O “Livro verde: um balanço da atuação do BNDES entre 2001 e 2016” está na rede. Foi produzido na gestão Paulo Rabello de Castro, que depois virou vice de Álvaro Dias, o candidato presidencial mais defensor da Lava-Jato.
Então o presidente da República decide fritar o presidente do BNDES pela imprensa, e o pretexto é ter nomeado um petista. Bem, mas o próprio Joaquim Levy havia participado do último governo do PT. A exemplo de um punhado de oficiais-generais, e que nem por isso estão na lista negra do Planalto. Pelo menos parece que não estão. Quem sabe tenhamos surpresas aí também?
É a tal usina de crises, do desabafo (programado) do presidente da Câmara dos Deputados. Usina que leva jeito de ser abastecida pelo deslumbramento com o brinquedo novo do poder, manejado como um joystick que faz as coisas acontecerem em tempo real. Até outro dia a turma da Lava-Jato também tinha seu próprio joystick, e parecia se divertir às pampas com ele. Mas, como se diz, uma hora pode dar ruim.
Um segredo do poder é mandar sem fazer mais inimigos que o necessário. Outro segredo é cultivar amizades no período das vacas gordas, para ter, pelo menos, canais de diálogo abertos quando chegarem as magras. E elas virão quando as reformas não produzirem instantaneamente o espetáculo do crescimento, e quando se fechar a rota de fuga de culpar os outros pelos próprios infortúnios.
Os sinais das vacas magras vêm todos aí. A economia não dá sinal de reação, a Lava-Jato está na berlinda. Esse detalhe, aliás, reduz bastante a capacidade de pressão do Executivo sobre o Legislativo. E aqui vale lembrar uma regra que não admite exceção. Ninguém tem certeza de como vai ser o futuro. A única certeza absoluta é que ele vai chegar um dia. E não levar isso em conta é burrice.
Blog do Noblat/ Veja/17 de junho de 2019

Atlas da Violência revela nação em funeral (José de Souza Martins)

O Atlas da Violência no Brasil, do Ipea, relativo a 2019, com dados de 2017, nos põe diante da ocorrência de homicídios, que prosperaram enquanto o país se atrasou. Sabemos matar, mas não sabemos viver.
É um alívio saber que nos últimos anos a taxa da violência letal foi atenuada no Sudeste, no Centro-Oeste e no Meio-Norte. Prosperaram as ações em favor dos direitos humanos e a eficácia das instituições que zelam por eles.
Os números, índices e análises apresentados no Atlas não nos tranquilizam necessariamente, mas nos ajudam a compreender aspectos muito problemáticos da criminalidade letal no Brasil e da desagregação da sociedade brasileira, que persistem. O Atlas mostra que 5,9% do PIB brasileiro é gasto com questões de segurança, não só pelos governos, mas também e sobretudo pelos particulares. Praticamente o mesmo que se gasta com educação, que é 6,0% do PIB. A violência rouba do país o mesmo que o país despende na sala de aula. O suficiente para duplicar o sistema escolar ou para duplicar sua qualidade e competência. Uma disputa sem escolha e desmoralizadora para todos nós.
Ainda no capítulo do preço da vida, as maiores vítimas da violência letal está na faixa etária dos jovens entre 15 e 29 anos, próxima ou acima de 50%. E a taxa dessa violência contra adolescentes de 10 a 14 anos, que é de 14,1%, é tão alta quanto a contra o total de todos os homens, 14,7 %. Um jeito brutal de se tornarem adultos na morte antes do tempo.
O Brasil começa a matar cedo suas novas gerações, antes de dar-lhes uma oportunidade de viver e de saber o que é a vida. São pessoas que nasceram e cresceram à espera da morte, e não para viver.
A maior ocorrência de homicídios nos sábados, tanto de homens quanto de mulheres, mostra que perdemos o sentido da festa. Expressão de que a desumanização que se tornou característica de nossa sociedade em decorrência dos vários mecanismos de alienação e de descarte social, como o desemprego, que atinge especialmente os jovens, fez da festa o mero e sumário ardil da morte. É tal a proporção de vítimas fatais da violência e sua regularidade que se pode dizer que nasceram para ser cobaias de um genocídio.
Um capítulo obrigatório, na ocorrência de homicídios por 100 mil habitantes, é o da cor da pele para compreendermos a incidência diferencial da violência letal. Classificando as vítimas em negros e não negros, como faz o Ipea, é possível ter indicações indiretas significativas de uma modalidade de preconceito que é histórica entre nós e que chegou mais intensamente à consciência dos brasileiros nas últimas décadas. Já não se trata apenas de estigmatizar e discriminar pela cor, mas de agregar-lhe o ódio que se consuma no homicídio.
É tema difícil de avaliar no Brasil. O Ipea juntou os pardos aos negros para definir a categoria "negro". No Brasil, historicamente, pardo não é negro nem sofre a mesma modalidade de estigmatização e discriminação que o negro. O que não quer dizer que, em algumas regiões, mulatos (descendentes de negros e brancos) e pardos (descendentes de índios) não sejam confundidos entre si, mais entre os brancos do que entre os próprios negros.
Se os negros estão reivindicando identidade específica para ter direitos compensatórios, os pardos também o fazem em nome de outras compensações. Há algum tempo, quando o Supremo Tribunal Federal examinou a questão da eventual inconstitucionalidade das cotas raciais temporárias na Universidade de Brasília, apresentou-se à corte, como "amicus curiae" uma representante de um movimento dos pardos do Norte do Brasil para reivindicar que não fossem incluídos no grupo dos negros. Seu estigma é peculiar e sua identidade, também. Os pardos têm uma história social propriamente sua. Na escravidão não foi raro vê-los empregados como feitores de escravos.
Não obstante essas diferenças, pardos e negros são vítimas de incidência de violência letal maior do que a dos não negros e essa violência vem aumentando muito em relação a eles. No Pará, onde é mais significativo o grupo dos pardos, a taxa de homicídios nesse grupo subiu de 35,1 por 100 mil para 61,7, entre 2007 e 2017. Enquanto entre os não negros, subiu de 11,2 para 20,4.
Em São Paulo, a dos negros caiu de 21,3 para 12,6 entre os dois períodos. E a dos não negros caiu de 12,7 para 8,7, entre os mesmos períodos. O fato de ser região com maior diversidade de origem étnica e racial do que outras regiões brasileiras e ser região mais urbanizada pode explicar esse fato positivo. Explica-o, também, a maior vigilância dos grupos discriminados quanto a seus direitos e quanto às iniquidades que os vitimam. Mesmo assim, a violência letal aumentou em relação aos negros.
(*) José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
Valor Econômico/14 de junho de 2019

O que está em jogo é a noção de Justiça (Fernando Abrucio)

O debate sobre a trajetória da Operação Lava-Jato deve ir além da disputa entre seus defensores e detratores. O que está em jogo é a forma como os brasileiros interpretam a noção de justiça. Para a visão liberal-democrata predominante na maior parte do mundo desenvolvido, a concepção do que é justo no espaço público tem a ver com a igualdade de tratamento que o Estado deve dar aos cidadãos. O país avançou nos últimos anos em prol desse modelo, mas ainda há um longo caminho para evitar tanto o reino dos privilégios como o império do arbítrio.
A concretização do princípio igualitário de tratamento dos cidadãos depende fundamentalmente de três aspectos. O primeiro diz respeito à consolidação de instituições democráticas, como voto universal e livre, a independência e controle mútuo entre os Poderes, além da criação de políticas públicas, como a educação e o acesso à Justiça, que garantam a igualdade de oportunidades a todos. As regras do jogo e seu pleno funcionamento são peças-chave de sociedades mais justas.
O Brasil teve importantes avanços no plano político-institucional, que geraram maior democratização do país. Não obstante, é necessário ainda realizar aperfeiçoamentos, que podem ser exemplificados por temas como o aumento da articulação dos partidos com a sociedade e a garantia de serviços públicos de melhor qualidade, especialmente para os grupos sociais mais vulneráveis.
O papel exercido pelas lideranças políticas e sociais é outro fator decisivo para garantir a qualidade da Justiça. No caso brasileiro, a longa tradição escravocrata e patrimonialista produziu elites ávidas por privilégios assegurados pela lei e pela ação estatal. Foi assim que nasceram os institutos da prisão especial, do fórum privilegiado e de todo um conjunto de regras do código penal e de funcionamento do sistema de Justiça, os quais, no mais das vezes, favoreceram os ricos em detrimentos dos mais pobres. O mesmo elitismo assegurou subsídios e empréstimos estatais a preços módicos para poucos.
A democratização do país afetou boa parte dos privilégios adquiridos pelas elites ao longo da história. A transparência maior dos atos públicos, a pressão da imprensa, de ONGs e dos órgãos de controle, bem como a disputa política pelos votos dos mais pobres, são fatores que reduziram as distinções de tratamento entre os cidadãos. Porém, a desigualdade de oportunidades e perante a lei ainda são muito grandes no Brasil, e em parte explicam as outras iniquidades sociais nos campos da renda, escolaridade e de raça.
A interpretação sobre a noção de justiça vincula-se, por fim, à percepção sociocultural que a população tem sobre a ideia de igualdade e como o Estado trata seu conjunto de cidadãos.
Dada a tradição elitista do país, a maior parte da população buscou, ao longo da história, duas saídas: ou não se acreditava nas instituições públicas e se procurava meios informais, como o famoso "jeitinho brasileiro", para se obter direitos e serviços; ou então se apostava em meios autoritários, messiânicos e personalistas para se alcançar algum grau de justiça. Na verdade, tais caminhos podem ser - e geralmente o são - adotados ao mesmo tempo, de modo que a grande informalidade social convive com formas hierárquicas e autoritárias de poder.
Da mesma maneira que no campo institucional e no plano das lideranças políticas e sociais, houve transformações da sociedade brasileira no terreno dos valores nos últimos trinta anos. O aumento da organização de diversos setores sociais, o maior acesso à informação, a elevação da escolaridade, a conquista plena do voto e o surgimento de novas alternativas políticas são fatores que agregaram consciência coletiva e cívica a mais parcelas da população.
Essa mudança em relação ao passado, no entanto, não alterou a visão de muita gente no país, seja porque persistem certas mazelas do Estado brasileiro, seja porque a combinação de conservadorismo cultural com desigualdade social favorece uma visão salvacionista, baseada na busca de heróis e de soluções jacobinas.
Esse quadro geral é fundamental para entender a forma como a Lava-Jato se construiu, sua aceitação social, seus avanços e sua formas perversas de atuação. As suas origens encontram-se numa combinação de fatores. Como ponto propulsor, o fortalecimento institucional dos órgãos de controle, especialmente o Ministério Público e a Polícia Federal, fato este derivado de demandas de democratização do país, vindas tanto dos partidos mais à esquerda como da classe média.
Essas organizações, ademais, foram profissionalizadas, com seleção de quadros muito preparados e com altos salários, e seus membros constituíram, ao longo do tempo, um "esprit de corps" vinculado à ideia de que seriam uma elite predestinada a regenerar o país.
A força institucional desses órgãos de controle e a visão salvacionista de seus integrantes não teriam sido suficientes se não tivesse havido uma aliança com colegas da magistratura. Embora haja muito mais heterogeneidade no Judiciário, o fato é que nos últimos anos, principalmente depois do mensalão, aumentou muito o número de juízes de primeira e segunda instâncias que se comportam, ao fim e ao cabo, como promotores. As conversas obtidas pelo The Intercept mostram que Sergio Moro já não fazia mais a separação entre acusador e árbitro, distinção chave para garantir o Estado de direito em qualquer democracia. Mas sinto informar que ele não é o único juiz que se comporta assim hoje no Brasil.
A tabelinha entre promotores e juízes, entretanto, também não bastaria para produzir um fenômeno tão amplo e profundo quanto a Lava-Jato. Além do fortalecimento de outros órgãos de controle, como a Polícia Federal, e o aprendizado com os erros de operações anteriores contra a corrupção, dois outros fatos foram decisivos neste processo. Um deles é a construção de um enorme mecanismo de patronagem, financiamento ilegal de campanha e formas variadas de corrupção, da institucionalizada à personalizada.
Esse modelo não se iniciou agora no país, afinal as empreiteiras nasceram e cresceram (muito) entre Juscelino e o regime militar. Mas tal engrenagem ganhou uma amplitude maior ao longo da trajetória da Nova República, por causa da combinação entre, de um lado, um Estado que cresceu sem ter se tornado completamente republicano, com, de outro, o aumento da competição eleitoral dentro de um sistema viciado de financiamento e com partidos oligarquizados. Desse modo, esse fenômeno perpassou quase todos os partidos, tendo seu auge na ampla aliança partidária que governou junto com o PT.
O último elemento da Lava-Jato está na percepção de grande parte da população em relação à política, bem como sobre o funcionamento do Estado. As crises de corrupção colocaram os políticos na berlinda, desde o período Collor, num crescente que levou muitos grupos sociais a buscarem outro canal para levar suas insatisfações e esperanças - no caso, a parceria entre MP, Polícia Federal e Sergio Moro. Além disso, como no dia a dia os serviços públicos não funcionam a contento, exacerbou-se o comportamento salvacionista dos brasileiros, que querem soluções rápidas, simples (ou simplórias) e jacobinas para seus problemas.
Inegavelmente, o patrimonialismo agigantado do sistema político e as carências e desesperanças da população em relação ao Estado e aos políticos são fatos reais que geram demandas legítimas de republicanização do país. Foi nesta fonte que a Lava-Jato bebeu, usando a força institucional dos órgãos de controle e sua profissionalização para levar adiante a maior operação de combate à corrupção da história brasileira. Esquemas de corrupção foram descobertos, privilégios foram combatidos e, o mais importante no longo prazo, criou-se um consenso de que era preciso reformas as instituições públicas, em casos como o financiamento de campanha, a nomeação em estatais e a transparência das contas públicas.
Mas a concepção de Justiça que alimentou o fenômeno da Lava-Jato também está impregnada de arbítrio jacobino, salvacionismo messiânico, autoritarismo e, como elemento central, de uma concepção de Justiça que se coloca acima das leis. Eis aqui o ponto mais preocupante de todo esse processo desvendado pela "Vaza-Jato": a aliança entre a força-tarefa do MP e a simbiose de promotor com juiz que se transformou Sergio Moro teve um resultado antirrepublicano - em outras palavras, os desígnios privados dos "paladinos da Justiça" prevaleceram sobre a ordem pública.
O que está em jogo é mais do que o tratamento parcial e arbitrário que foi dado ao caso do ex-presidente Lula. Se vencer o lado jacobino e salvacionista da Lava-Jato, os cidadãos vão achar que é melhor substituir a engrenagem lenta e incremental da democracia liberal por outras formas mais rápidas de justiça, como o linchamento, o armamento generalizado da população e, quem sabe, a delegação do poder popular a alguém ou alguns que possam governar sem os obstáculos trazidos pela imprensa, pelo controle dos Poderes e pela oposição.
Em vez desse caminho jacobino da Lava-Jato, a Justiça só se estabelecerá no país se houver a garantia do primado da lei e sua aplicação igualitária a todos. Buscar atalhos e heróis não nos levará a uma sociedade mais justa.
(*) Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
Valor Econômico/14 de junho de 2019