terça-feira, 27 de junho de 2017

Mudando o time (Fernando Limongi)

Rodrigo Janot deve estar experimentando uma situação de déjà vu. O procurador-geral da República volta a se defrontar com adversários poderosos. A natureza do conflito é análoga a que viveu dois anos atrás. Naquela oportunidade, Rodrigo Janot enfrentou Eduardo Cunha. Perdeu. O adversário, hoje, é Michel Temer.
Em agosto de 2015, Janot protocolou denúncia contra o então presidente da Câmara e, a partir de então, empenhou-se em afastar o deputado da cena política. Cunha reagiu rompendo com o governo e ofereceu seus préstimos à oposição, usando o impedimento da presidente Dilma como tábua de salvação.
Entre agosto e dezembro, enquanto aguardava uma decisão do ministro Teori Zavascki, a denúncia contra o parlamentar permaneceu aberta à consulta dos cidadãos. A peça montada por Janot não deixava qualquer dúvida sobre o caráter e a integridade do parlamentar. As provas reunidas são avassaladoras. Cópias de cheques, registros de reuniões, transcrições de conversas, está tudo lá. Não faltaram elementos para formar convicções e juízos.
Teori Zavascki, contudo, deixou o tempo passar sem se manifestar. Aparentemente, o uso da ameaça contra a presidente o paralisou. O juiz não quis passar por defensor de Dilma. A crise se avolumou e ganhou ritmo frenético.
No início de dezembro, o PT rompeu negociações com Cunha e declarou que votaria por sua condenação na Comissão de Ética. Cunha mostrou que não estava blefando. No dia seguinte, acatou o pedido de impedimento da presidente, à espera da sua decisão havia meses. A pressa do deputado se evidencia na marcha forçada que impôs à tramitação do processo, atropelando prazos e procedimentos.
Em 16 de dezembro, Rodrigo Janot voltou à carga. Com base nos documentos levantados pela Operação Catilinárias, solicitou o afastamento do deputado do seu cargo. A leitura do documento é estarrecedora. Não faltam provas da sem-cerimônia com que o deputado se valia da Câmara para fazer dinheiro e barrar investigações. Um dos pontos altos da peça são as evidências da venda sistemática de emendas a medidas provisórias. Os relatos sobre o conflito com o grupo Schahin, após o rompimento da barragem de Apertadinho, vão da extorsão às repetidas ameaças de morte e são exemplares dos métodos empregados por Cunha.
As revelações contidas no pedido de afastamento foram solenemente ignoradas pela "opinião pública esclarecida". Houve quem a classificasse de insuficiente e apressada. Teori Zavascki, uma vez mais, protelou sua decisão.
Em 2015, Janot perdeu a disputa. As forças políticas relevantes já haviam definido seu lado. Livrar-se de Dilma virara a prioridade número um. Teori Zavascki agiu apenas após o desfecho do impeachment, afastando o presidente da Câmara de suas funções quando Inês já era morta.
Eduardo Cunha foi o grande líder do processo de impeachment. Quem se dispôs a marchar sob seu comando não poderia alegar desconhecimento do caráter e das intenções do líder da operação.
Não faltaram justificativas. Cunha seria o líder descartável de uma ação necessária e responsável: livrar o país do desgoverno gerado pelas seguidas administrações petistas.
Difícil saber quem acreditou e quem somente fingiu acreditar que seria assim. Seja como for, para que esta crença fosse consistente, era também necessário acreditar que Michel Temer pouco ou nada tinha a ver com Eduardo Cunha, que este fosse companhia fortuita, do qual o vice-presidente se livraria após assumir o poder.
A conversa na garagem do Palácio Jaburu mostra que estas relações não eram e não são circunstanciais. Os vínculos são profundos e duradouros. As evidências estão aí para quem quiser vê-las.
Na entrevista que concedeu à revista "Época", Joesley Batista indica que participou da operação montada por Cunha e Temer para afastar Dilma. Apostou na mudança de governo como uma forma de "abafar" rapidamente a Lava-Jato, razão pela qual a ajuda de custo à família Cunha seria breve, pois "ele estaria solto logo, logo."
A decisão de delatar, diz Joesley, não é fácil: "Um processo de delação é algo muito forte, é muito doído. Corruptos ou não, convivi com essas pessoas que denunciei. Jantaram na minha casa. Eu conheci as esposas, os maridos. Chamava todos de amigos - e era de verdade."
Amigos, vale notar, que estavam espalhados indistintamente pelos três grandes partidos: PT, PMDB e PSDB. Delatar, explica o empresário, significa que "você troca de time", que "você começa a enxergar com os olhos do outro time." Obviamente, Joesley não "trocou de time" porque se converteu em um paladino da moralidade e dos bons costumes. Traiu os velhos amigos porque se deu conta de que o investimento feito não traria os frutos esperados, que havia se tornado um eterno "refém de presidiários".
Há ainda quem veja a situação como um torcedor apaixonado, como uma disputa entre o seu time do coração e o do adversário. Não faltam os dispostos a recorrer a malabarismos para salvar os amigos de tantos anos. Sempre é possível achar um argumento, apelar à responsabilidade política e a valores elevados, como a defesa do Estado de Direito.
O novo conflito se arma, os novos times se formam. Por isto mesmo, na quinta-feira, provocado por Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso achou por bem avisar o colega: "Todos sabemos o caminho que isso vai tomar, e, portanto, já estou me posicionando antes. Sou contra o que se quer fazer aqui lá na frente. Então eu não quero que se faça lá na frente. Já estou dizendo agora que não aceito." Em outras palavras: o jogo no STF não será o mesmo jogado no TSE. E mais: Fachin não é Zavascki.
Ao soltar as gravações do diálogo entre o presidente e o empresário, Rodrigo Janot abriu nova disputa. Desta feita, o competidor é mais graúdo, mas tem menos a oferecer para segurar seu cargo. Quem sobreviver verá.
Fonte: Valor Econômico (26/06/17)

'Hegemonia de esquerda não pode ser mais do PT' (Ruy Fausto/entrevista)

É de esquerda e critica o chavismo, trotskismo, maoismo e o marxismo. Repudia todas as formas de populismo, totalitarismo e adesismo – às quais tem dado o nome de “patologias da esquerda”.
Aos 82 anos, o professor emérito de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) Ruy Fausto, radicado na França, transformou o artigo que publicou na edição da revista piauí de outubro passado no livro Caminhos da Esquerda: elementos para uma reconstrução (Companhia das Letras), a ser lançado em 3 de julho.
Em entrevista ao Estado, Fausto defende o fim da hegemonia do PT no campo da esquerda e a formação de uma frente única progressista para a eleição presidencial de 2018 com, por exemplo, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) e o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ).
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
ESTADÃO - Há uma hegemonia de direita?
No mundo, há uma ofensiva grande da direita que surgiu, principalmente, com o fim da União Soviética. Me assusta muito, particularmente, a extrema direita, que tem uma linguagem muito violenta. Tem ainda a situação brasileira, com o PT, que acabou fortalecendo a direita. A política petista trouxe maior distribuição de renda, mas também houve uma corrupção absolutamente intolerável. Ainda assim, nada justifica o impeachment (da presidente cassada Dilma Rousseff), que foi um desastre. Mas a direita se lançou nessa aventura, conseguiu e isso permitiu que eles levantassem a cabeça. A corrupção foi um discurso bem apropriado pelos movimentos de direita.
RUY FAUSTO - Como o senhor avalia as críticas ao que o PT fez enquanto ocupou o governo?
Um partido de esquerda que se pretende democrático tem de ter lisura administrativa absoluta. Há uma política de “fins justificam os meios”. A lição que se tira no PT hoje é: “nós não fomos suficientemente oportunistas”. Isso é um desastre total e tem intelectual saudando isso aí. Certamente faltou um mea-culpa. Nesse sentido, os melhores são o Tarso Genro (ex-governador do Rio Grande do Sul), o José Eduardo Cardozo (ex-ministro da Justiça no governo Dilma). O PT vai continuar a existir. Mas o caminho é de queda, para haver uma renovação.
Lula seria um bom candidato?
Acho que não. Primeiro, acho muito difícil que ele concorra, a situação jurídica é muito difícil. Eu não desejo a condenação do Lula, embora ache difícil ele conseguir evitar isso. Desejo, sim, que ele possa legalmente se candidatar, mas não acho que, nas condições atuais, ele seria um bom candidato para a esquerda. Acho que os melhores nomes podem vir do PT, do PSOL, ou mesmo da sociedade civil.
O senhor acredita que a esquerda deveria sair unificada em 2018?
Sim, é essencial que se crie uma frente única de esquerda, fazer uma espécie de fórum desses movimentos independentes. Não é para ter uma ruptura total com o PT, mas a hegemonia não pode mais ser dele, no campo da esquerda. Isso também não significa que a gente vá ganhar em 2018. A gente tem de ter uma boa campanha. E, aí, surgem possíveis nomes. O Fernando Haddad (ex-prefeito de São Paulo), por exemplo, é bom sujeito, competente, não é corrupto. Outro nome é o Marcelo Freixo, que me parece um sujeito bom. Acho que talvez o Fernando Haddad possa sair como candidato ou como vice. Às vezes, um dos melhores do PT com um dos melhores do PSOL poderia funcionar.
Mas Fernando Haddad não conseguiu se reeleger em São Paulo e Marcelo Freixo também não foi eleito prefeito no Rio na eleição do ano passado...
O Haddad, eu não estive aqui (no Brasil) durante toda a sua gestão na Prefeitura, mas tenho a impressão de que fez um bom governo. Ele teve uma péssima campanha, foi muito atacado e avaliou mal os movimentos das ruas. Já o PSOL é até meio de extrema esquerda. Há muito essa ideia de que se deve ir mais à esquerda – como se a luta política fosse uma espécie de escala. Você pode até dizer isso, mas redefina a esquerda. Enfim, o PSOL tem seu mérito por ter criticado a corrupção e as alianças sem escrúpulos do PT, mas ainda é de extrema esquerda. Alguns flertam com chavismo e castrismo. Mas, na verdade, é um partido muito variado.
Existem ainda outros nomes que surgem: o ex-governador e ex-ministro Ciro Gomes (PDT), o Guilherme Boulos, líder do MTST, e mesmo a ex-ministra Marina Silva (Rede).
A Marina, eu respeito a biografia, mas seu programa econômico não é bom e ela não se move muito bem na política. O Ciro é um sujeito que fala muitas verdades, mas fala demais. O Boulos não conheço de perto. Ele certamente faz um trabalho muito importante na periferia, mas ainda tem um discurso muito bolivariano, e acho que isso tem de mudar. Devemos priorizar um programa mais democrático.
(*) Ruy Fausto é doutor em Filosofia pela Universidade de Paris I e professor emérito da USP. Irmão do historiador Boris Fausto, escreveu livros como A esquerda difícil, em que fez rigorosas análises políticas. Aos 82 anos, lançará uma obra com possíveis saídas para a crise da esquerda no País.
Fonte: Marianna Holanda/O Estado de São Paulo (25/06/17)

Política e regeneração nacional (Ricardo Vélez Rodríguez)

O tema está na crista da onda. Mas não é novo. Já os positivistas, paladinos da moralidade pública, apregoavam a “regeneração da sociedade brasileira” e à luz dessa pregação foi dado o golpe de 15 de novembro de 1889, que derrubou a Monarquia. Qual seria o remédio para a desordem causada pela representação e o debate político da “metafísica liberal” no Parlamento? Resposta: a ditadura científica, apregoada em alto e bom som pelos paladinos do cientificismo, Miguel Lemos e Teixeira Mendes, dirigentes do Apostolado Positivista, que, antes do golpe de 15 de novembro, conclamavam dom Pedro II a que ousasse ser o grande herói nacional, fechando o Parlamento e se proclamando a si próprio ditador central e líder do processo regenerador, a fim de implantar o Reino da Virtude.
Quando emergiu esse modelo? O seu criador foi o general Napoleão Bonaparte, ao se coroar imperador dos franceses, em 1804, fechando a Assembleia Nacional, foco da barganha política, e transferindo para si a representação da nação, que delegou a seus representantes no Senado, a fim de moralizar o país de acordo com os ensinamentos de Rousseau. Napoleão I substituiu o Congresso pelo Conselho de Estado, integrado por sábios e homens de prol, escolhidos por ele mesmo, com a finalidade de buscar as saídas necessárias ao bem da nação, à luz da ciência. O imperador chamou a si a magna tarefa de reorganizar a sociedade, esgarçada pela Revolução e pelo Terror jacobino. Tudo seria recriado de cima para baixo, como outorga salvadora do imperador, a começar pelo Código Civil. Por intermédio dos seus intendentes, Napoleão I tornava-se presente em todos os cantos do vasto império, com o auxílio da Grande Armée.
A filosofia, que, como dizia Hegel, “levanta voo quando as sombras da noite se aproximam”, registrou essa conquista das luzes napoleônicas na obra de dois pensadores, Saint-Simon e Comte. O primeiro ficou literalmente extasiado diante das conquistas do general Bonaparte e passou a cultuar a instauração da Sociedade Racional, na trilha da obra civilizadora do autocrata dos franceses. O conde Saint-Simon percebeu a índole messiânica do bonapartismo, atribuindo-lhe caráter redentor.
Comte, secretário de Saint-Simon, partiu para idêntica louvação da obra do imperador francês, enaltecendo seu caráter regenerador, na medida em que punha pra escanteio o debate político e o substituía por indústrias e comércio, organizados conforme os ditames das luzes à luz do Código Napoleônico. Era a “ditadura científica” que se firmava.
As duas tradições cientificistas, a prevalecente na França pós-Revolução e a proveniente das reformas pombalinas em Portugal, se juntaram na revivescência da tendência cientificista com que se viu às voltas o Segundo Reinado. Os “clubes republicanos” pipocaram por todos os cantos do Brasil ao longo da segunda metade do século 19, pregando uma República ilustrada que substituísse a velha retórica da “metafísica liberal”. Foi assim que esse difuso cientificismo cobrou forma definida no projeto de República autocrática que foi pensada no Rio Grande do Sul por Júlio de Castilhos e posta em prática por ele no longo ciclo que, iniciado em 1891, se prolongou até 1930, tendo consolidado o modelo de “ditadura científica” que Getúlio tomou como roteiro de viagem para a sua tomada do poder na Revolução de 30.
O próprio Getúlio expressou o seu propósito cientificista em discurso pronunciado em 4 de maio de 1931: “A época é das assembleias especializadas, dos conselhos técnicos integrados à administração. O Estado puramente político, no sentido antigo do termo, podemos considerá-lo, atualmente, entidade amorfa que aos poucos vai perdendo o valor e a significação. Creio azado o ensejo para o cancelamento de antigos códigos e elaboração de novos. A velha fórmula política, patrocinadora dos direitos do homem, parece estar decadente. Em vez do individualismo, sinônimo de excesso de liberdade, e do comunismo, nova modalidade de escravidão, deve prevalecer a coordenação perfeita de todas as iniciativas, circunscritas à órbita do Estado, e o reconhecimento das organizações de classe, como colaboradores da administração pública”.
Firmou-se, assim, a versão contemporânea da “ditadura científica”. O debate político foi substituído pelos conselhos técnicos do Estado. Esse foi o modelo assumido pelos militares, sintetizado na expressão “engenharia política”, cunhada pelo general Golbery.
Ora, nas atuais ondas de choque da Operação Lava Jato, tal saída tecnocrática parece ter ficado em evidência quando os procuradores do Ministério Público, congregados na Procuradoria-Geral da República, exorcizam os males da política despolitizando o debate e tornando-o questão “técnica”, a fim de implantar o Reino da Virtude Republicana. É o processo purificador que o professor Werneck Vianna atribui à nova elite dos “tenentes de toga”.
A reação da sociedade brasileira contra os desmandos lulopetistas, potencializados pelo cientificismo marxista, não pode cair nesse beco sem saída que nos leva direto ao passado da ditadura positivista. É necessário restabelecer o jogo político, respeitando a tripartição de Poderes e o funcionamento deles dentro dos limites fixados pela Constituição. Que a Justiça exerça o seu papel, julgando os que agiram fora da lei. Mas sem artifícios estranhos à ordem constitucional, com suspeitas delações e afoitos indiciamentos que provocam instabilidade, com uma promessa vaporosa de “regeneração moral” que somente pode beneficiar os arquitetos do caos. A Procuradoria-Geral da República, o Ministério Público e a Polícia Federal são partes de uma engrenagem regida pela lei.
Fonte: O Estado de São Paulo (25/06/17)

Jornalismo, política e interesses materiais (Marco Aurélio Nogueira)

A questão da corrupção entrou em nova fase nos últimos meses, em decorrência do impacto das delações da JBS e da explicitação das divergências entre Executivo e Judiciário, STF e PGR, juízes e procuradores, defensores e críticos da Lava Jato. A grande imprensa dividiu-se e abriu-se uma espécie de disputa entre os principais jornais e revistas. Alguns órgãos passaram a atacar o governo Temer e a figura do presidente, outros saíram em sua defesa, ainda que sem necessariamente deixarem de criticá-lo.
Rapidamente proliferaram explicações associando a atitude dos jornais e das redes de televisão aos interesses do mundo empresarial, que estaria tomando posição diante da crise política, do “reformismo” do governo Temer e da sua maior ou menor serventia para os planos do “grande capital”.
Sempre há “interesses materiais” na base dos conflitos sociais ou das posições políticas. Partidos de esquerda defendem os interesses dos trabalhadores, partidos liberais fazem o mesmo com os empresários, partidos de extrema direita tentam explorar interesses da “classe média”. Não são alinhamentos automáticos ou seguros, especialmente quando se lembra que há distinções poderosas entre as camadas burguesas, entre trabalhadores manuais e intelectuais, operários e prestadores de serviços, e assim por diante.
Cada fração de classe, em tese, busca se representar no plano político. Os partidos, por sua vez, vocalizam essa multidão de interesses. Mas, e quando o foco recai sobre jornais, revistas e redes de TV? Seriam eles meras extensões dos interesses dos donos das empresas ou do “capital”? Será que suas divergências devem ser entendidas por esse prisma?
Não há dados cabais que comprovem conexões do tipo. O que há, em profusão, são ilações, muitas vezes precipitadas.
Não é que os “interesses materiais” não tenham relevância. Em boa medida, tudo na vida passa por eles: todos são “interessados”, têm raízes na estrutura material e se agregam de algum modo em blocos particulares, ou classes sociais.
Tal ênfase, porém, não resolve tudo. Muitas vezes dificulta a compreensão dos problemas, sobrecarregando-os de uma “materialidade” excessiva.
Quando órgãos de imprensa tomam posição, não estão em jogo somente os interesses das classes de que fazem parte seus proprietários. Entram em cena outros aspectos, importantes e eventualmente decisivos.
Antes de tudo, há patrões e há jornalistas, e jornalistas não costumam ser ventríloquos dos patrões. Há a reportagem, os artigos de opinião, a cobertura cotidiana e os editoriais, que são autônomos entre si, por mais que exista uma “linha” costurando tudo.
Jornais e revistas são organismos político-financeiros. Tudo o que fazem passa por cálculos voltados para receita e faturamento. Mesmo os pequenos jornais, de partido ou puramente de opinião, precisam dar atenção a isso. Ou seja, precisam vender.
Os grandes órgãos de imprensa desempenham múltiplas funções. Praticam o “jornalismo integral”, que não só “pretende satisfazer todas as necessidades de seu público, mas também criar e desenvolver estas necessidades e, em certo sentido, gerar seu público e ampliar progressivamente sua área” (Gramsci). São, pois, de opinião, de informação e de entretenimento. Podem ser mais populares ou menos. Seguem regras de mercado, competem entre si por furos de reportagem e manchetes, com os quais almejam marcar posição e ampliar as tiragens.
São, também, agregados ideológicos e doutrinários, que seguem ideias filosóficas, princípios teóricos e escolas de pensamento, com os quais constroem um modo de ver o mundo.
Podem ser mais “governamentais”, mais “mercantis” ou mais “estatais”. Podem atacar governos para defender o Estado ou para fazer o jogo do mercado. Podem também ser mais coesos, ou menos, funcionando em maior ou menor medida como difusores de uma cultura homogênea. Os mais democráticos abrem espaços generosos para articulistas que pensam de modo diverso e para criações culturais de vanguarda, “subversivas”. Nada disso remete imediatamente a “interesses materiais”, que de certo modo permanecem ao largo, estáveis, pesando como antes.
Quando um jornal ataca ou defende um governo, um partido político ou uma ação policial, não é a voz do “interesse material” a soar com exclusividade. Inúmeras e complicadas mediações interferem.
Pode-se, por exemplo, fazer isso para defender a estabilidade institucional e a recuperação da economia. Ou para valorizar a convicção de que a corrupção necessita do respeito a certas cláusulas do Direito para ser enfrentada. Ou para exigir que todos os crimes sejam apurados com o devido rigor, doa a quem doer. Ou para proclamar aos quatro ventos que há exageros de conduta aqui e ali, que é necessário preservar a política e não jogar fora a criança com a água suja do banho. Pode-se radicalizar a tomada de posição por amor a um princípio, para ganhar mercado ou para agradar a um setor do governo, aos leitores fiéis ou ao mundo político.
Jornais também podem seguir a cartilha clássica, que reza que a função da imprensa é revelar fatos e fornecer leituras equilibradas a respeito deles. O que não impede que tomem posição. Nenhum órgão de imprensa, por exemplo, no Brasil de hoje precisa ser contra as políticas de Temer para atacá-lo. E eles não falam pelo “capital” quando se manifestam a favor da continuidade governamental.
Que os grandes órgãos de imprensa funcionam como “partidos políticos” é uma ideia óbvia. Formam opinião, educam, orientam. Fazem circular ideias, investigam e podem revelar fatos comprometedores. Têm, por isso, importante poder político, para o bem e para o mal.
Como a consideração desse quadro é complexa, privilegia-se o que parece mais evidente, os “interesses materiais”. A compreensão da realidade, com isso, fica solta no ar.
Fonte: O Estado de São Paulo (24/06/17)

O Termidor da Lava Jato (Demétrio Magnoli)

O Reino do Terror terminou no 9 do Termidor, 27 de julho de 1794, dia da queda de Robespierre e do início da repressão contra os jacobinos. Treze meses depois, instalou-se a ditadura do Diretório, que abriu caminho ao 18 do Brumário, 9 de novembro de 1799, elevação de Napoleão Bonaparte a Primeiro Cônsul.
A Lava Jato perecerá, desgastada por uma reação termidoriana, se não for contido o espírito jacobino que anima uma parcela do Ministério Público. Deploravelmente, o STF hesita em mostrar o caminho da lei, abortando o embrião de um Terror policial e judiciário.
Até há pouco, o jacobinismo circunscrevia-se às esferas do discurso e de atos judiciais periféricos. O juiz Sergio Moro ordena conduções coercitivas abusivas, como notoriamente a de Lula, de olho em seus impactos na opinião pública.
Jovens procuradores bradam, em tons messiânicos, sobre a "falência do sistema político", embalados pela fantasia de que corporificam um Comitê de Salvação Pública. Nada disso, porém, atinge irreparavelmente as garantias constitucionais.
A operação Joesley assinala a ruptura. Ela expôs, certamente, as fétidas cavalariças de Temer e Aécio, mas ao preço de brutais violações legais. O Robespierre da história escreveu que "o Terror é nada mais que justiça imediata, severa, inflexível".
Janot, nosso Robespierre carnavalesco, subscreveu o enunciado ao associar-se com o corruptor geral da República numa trama politicamente motivada. Já o STF, ao validar o prêmio escandaloso concedido ao delator, desperdiçou a primeira oportunidade para dissociar a palavra "justiça" da palavra "Terror".
Dois fatos são indisputáveis: 1) Antes de delatar oficialmente, Joesley foi instruído por um procurador e um delegado da PF; 2) Como prêmio pela entrega das gravações, obteve imunidade judicial absoluta. Nas suas argumentações, os ministros do STF esconderam-se atrás do biombo dos sofismas para não enfrentar tais flagrantes ilegalidades.
Celso de Mello disse que Janot não poderia ser surpreendido por um "gesto desleal" do Judiciário –como se o STF devesse lealdade ao procurador-geral, não à Constituição. Roberto Barroso insistiu na tese demagógica de que a impugnação do acordo com Joesley abalaria todo o edifício de delações da Lava Jato –como se a solidez de uma curva dependesse do ponto fora da curva.
Prevaleceu o espírito de corpo: os juízes resolveram não desautorizar Fachin, assim como antes não desautorizaram Lewandowski, que jogou a Constituição pela janela para preservar os direitos políticos de Dilma. Nesse passo, em nome do mais estreito corporativismo, criam um precedente para novas operações jacobinas.
Logo mais, na decisão sobre o mandato de Aécio, o STF terá uma segunda oportunidade. A Constituição não admite a cassação judicial de mandatos parlamentares: só os eleitos podem cassar os eleitos. O princípio foi violado no caso de Eduardo Cunha, por meio da manobra da "suspensão" do mandato.
Na ocasião, Teori Zavascki, autor da sentença, justificou-a como uma "excepcionalidade", admitindo implicitamente que cometia uma ilegalidade. Fachin, que age como despachante de Janot, apoiou-se no precedente para determinar a suspensão do mandato de Aécio. Se, uma vez mais, o STF colocar o espírito de corpo acima da letra da lei, a exceção se converterá em norma, destruindo a independência dos Poderes.
Temer é uma desgraça e Aécio vale menos que a tinta desse texto, mas ambos não passam de notas de pé de página na nossa história. O jacobinismo, por outro lado, ameaça valores preciosos –e, inclusive, a própria Lava Jato. Os fins e os meios estão ligados por um fio inquebrável.
Procuradores e juízes devem implodir as máfias político-empresariais incrustadas no Estado brasileiro seguindo, escrupulosamente, as tábuas da lei. A alternativa é o Terror –e, depois, o Termidor.
Fonte: Folha de São Paulo (24/06/17)

domingo, 25 de junho de 2017

O domínio da narrativa e a democracia tutelada (José Augusto Guilhon Albuquerque)

Desde que a maré mudou para os lados do PT, seus seguidores se vêm queixando da implantação de um Estado de exceção. Estado de exceção é geralmente invocado por aqueles que se julgam vítimas de uma violação sistemática de seus interesses, sejam tais queixas legal ou moralmente fundadas ou não.
O que pretendo discutir neste artigo não é a validade ou não da narrativa lulista, mas o que chamarei de Estado de exceções, condição sine qua non dos regimes autoritários. E das democracias em risco. Democracia em risco é aquela em que o Estado Democrático de Direito se encontra perfurado por um número tão grande e tão disseminado de exceções que estas já não servem para confirmar, mas, sim, para se contraporem à regra.
Existe um limite, entretanto, para que a democracia representativa, que adotamos em todas as Constituições, desde a origem da República, sobreviva a esse risco. O limite é ultrapassado quando o arbítrio vai além das instituições republicanas e atinge a vida privada dos cidadãos, sua liberdade, seus bens e sua honra.
Recentemente a empresa de um amigo foi acusada de ação criminosa por um membro de uma dessas grandes empresas globais, chefiadas por famílias de criminosos confessos, cevados e elevados à grandeza com o dinheiro dos nossos impostos. Seu advogado o alertou que, se estivéssemos num Estado de Direito, a documentação que reunira evitaria que qualquer ação contra a empresa prosperasse, mas, nas atuais circunstâncias, nada pode ser garantido.
Pois bem, no Estado de Direito a Constituição se cumpre e se faz cumprir pelo Executivo, sendo resguardada pelo Judiciário. Grandes ou pequenas, as exceções à regra constitucional desferem outros tantos grandes e pequenos golpes contra a teia de direitos e deveres que garante a convivência pacífica nas sociedades políticas organizadas. Quando ocorrem ao acaso das paixões humanas, esses golpes podem ser corrigidos, mas não sem custos, difíceis de “precificar”.
Quando, a exemplo da “loucura” de Hamlet, esses golpes têm método, isto é, seguem uma linha sistemática, o risco de colapso do Estado de Direito sofre um “salto qualitativo” e passa de uma democracia representativa para uma democracia tutelada. Creio ser possível demonstrar o método que orienta essas brechas abertas no devido processo legal e comprovar como a nossa democracia representativa está correndo o risco de se tornar uma democracia tutelada.
Quanto ao método, está estampado nos ataques sistemáticos à letra e ao espírito da Constituição, que ora deve ser alterada a bel-prazer, ora deve ser simplesmente esquecida. Ataques também são feitos contra o governo representativo enquanto forma de governo e à política em geral como ação organizada legítima nas sociedades livres. A ideia, repetida à exaustão, de que a letra da lei deve ser distorcida ao sabor do desejo de supostas maiorias e de que a “hermenêutica” dos magistrados não pode ser limitada pela literalidade da lei. A ideia de que os “políticos” são todos iguais e igualmente criminosos e que, portanto, a ação política é inerentemente delituosa. A ideia de que o Legislativo é ilegítimo e, portanto, não tem o direito de legislar contra a opinião douta da magistratura ou das corporações investigativas.
Tudo indica que o meticuloso desmonte das instituições da democracia representativa movido por Lula, quando tratou o Legislativo como um bando de picaretas, o Judiciário como uma corporação corrupta e inimiga do progresso, o Executivo como uma ação entre amigos e a imprensa como inimiga do povo, deu certo e corrompeu o próprio sentimento democrático da maioria da sociedade.
Quanto à tutela, ela ocorre quando uma instância não eleita – geralmente uma casta – tem a última palavra, acima da representação eleita e, portanto, acima da Constituição. Os casos mais evidentes de democracia tutelada são as democracias com qualificativo, como, por exemplo, as democracias “populares”. As eleições permanecem, as instituições tradicionais existem e funcionam, porém sob a tutela da instância revolucionária, partidária ou religiosa. A tutela consiste em que, toda vez que as instituições funcionam a contrapelo da narrativa correta, ainda que com o suporte da ordem legal, a instância tutelar revoga as dissonâncias e repõe tudo nos eixos.
No Brasil, vivemos décadas sob a tutela da espada. A Constituição tornou-se, então, um mero apêndice outorgado pelo governo militar. Na República Islâmica do Irã, a democracia também funciona, desde a revolução dos aiatolás, consagrada na Constituição de 1979, mas é tutelada, não pela espada, mas pela toga. O “guia supremo” tem sempre a última palavra, acima de todo o sistema político, porque tem o domínio da narrativa, a exemplo dos irmãos Castro, dos dirigentes supremos do partido/Estado chinês. Ele, e apenas ele, interpreta, em última instância, alguma palavra sagrada, seja da revolução, seja da profecia, seja da revelação.
A casta que detém o segredo da “hermenêutica”, a única interpretação autorizada da lei, tem o “domínio da narrativa”. Quem domina a narrativa prescinde de fatos e argumentos e se coloca acima dos direitos constitucionais básicos de todos os cidadãos. Mesmo que se mantenham eleições, e que representantes sejam eleitos para governar e legislar, a tutela prevalece sempre que, com apenas uma canetada, guias iluminados possam revogar ou ignorar os atos e decisões dos representantes eleitos.
Se quisermos evitar que nossa democracia representativa bascule definitivamente para uma democracia tutelada, é preciso resistir. E resistir, em primeiro lugar, a qualquer solução rápida e fácil que contrarie a letra da lei.
Fonte: O Estado de São Paulo (23/06/17)

A cultura das cartas de leitores (José de Souza Martins)

Há alguns anos, na periferia de São Paulo, participei de uma conversa com Noam Chomsky organizada pelo MST. Linguista de grande reputação, tem uma visão otimista do que representam os movimentos populares no Brasil, que o faz condescendente nas interpretações a respeito, privando-as do componente crítico que toda análise deve conter e que os ajudaria a fortalecer as causas que defendem.
Num certo momento, destacou a importância da internet como meio de criação do que definiu como jornais pessoais, que libertariam os leitores do suposto poder de controle de opinião por parte dos meios de comunicação convencionais. Cada qual poderia criar seu próprio jornal e difundi-lo como mídia alternativa, supunha ele. Chomsky não mencionou que, nos milhares de sites, blogs, páginas e periódicos artesanais que nos chegam, queiramos ou não, há poder, embora o dono do poder seja de outro tipo, político-partidário e ideológico ou religioso. Gente que quer mandar na nossa consciência.
Um intelectual solitário pode, sim, criar a informação cultural alternativa e difundi-la em proveito da democratização da sociedade e da emancipação de todos. Mas hoje a opinião desinformada de uma pessoa de escolaridade precária e de interesses não necessariamente sociais, pode difundir, graças à internet, informações falsas e danosas, como a que resultou no linchamento de uma inocente mãe de família no Guarujá por uma turba enfurecida.
Há na cultura popular e no senso comum uma lógica peculiar e pendular que define o que é falso e o que é verdadeiro, o que é crível e o que não o é. O senso comum é autodefensivo e necessariamente carente da objetividade que se supõe necessária ao alternativo da informação. Não é surpresa que nessa opinião se manifestem objeções às ciências, em particular às ciências sociais, notoriamente consideradas concorrentes ilegítimas da "sabedoria popular", os intelectuais tratados pelos leitores como ignorantes membros da elite, que não viajam de ônibus, ganham o que não merecem e não tem os padecimentos dos pobres. Quando um governante ou político de renome deprecia publicamente a universidade e os acadêmicos, como já vimos, expressa essa indigência ideológica.
Em 47 mensagens de reação a uma entrevista sobre a tatuagem infamante na testa de um jovem como castigo por roubo, que não cometeu, temos uma boa amostra dos conteúdos dessa modalidade de correspondência. Podem ser sintetizados na carta de uma mulher que escreveu duas vezes.
Sataniza a mãe do garoto. Questiona-lhe o direito de ter filhos. Conta sua própria história. Ficou viúva ainda jovem, criou quatro filhos no dever do trabalho, fazia pães para vender na rua e sustentar a família. Representa o trabalhador sofrido e pobre como modelo virtuoso de pessoa que não merece indiferença, mas admiração e apreço. Está tudo errado porque heroínas da ordem, como ela, não tem reconhecimento, enquanto bandidos como o garoto são cercados de compaixão e inocentados da culpa que lhes cabe. Trata-se da lógica do bem limitado, identificada na América Latina pelo antropólogo George Foster. Tudo existe em quantidades finitas: o dinheiro, a comida, o sexo, os próprios sentimentos. Portanto, se injustamente sobra compaixão para o garoto, mais injustamente ainda, falta para ela. Se há direitos humanos para ele, bandido, por que não há para ela, trabalhadora?
Dependendo do assunto, há nessas cartas de leitores fortes indicações de corporativismo, intolerância e autoritarismo que sugerem uma preocupante tendência. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e no período imediato a ela, o sociólogo alemão Theodor Adorno e uma equipe de especialistas em ciências sociais realizaram, na Universidade da Califórnia, Berkeley, ampla pesquisa sobre o tema na sociedade americana, que culminaria com a publicação de uma obra coletiva robusta e referencial, em 1950, "The Authoritarian Personality".
Os Estados Unidos envolveram-se na guerra contra o nazismo e o fascismo em outros países, mas havia fortes indícios de mentalidade e propensão fascistas entre os próprios americanos. A pesquisa procurou determinar e medir essa propensão. Os pesquisadores criaram a escala F, que mede a tendência e a vulnerabilidade de cada pessoa à propaganda nazifascista em decorrência de sua própria personalidade autoritária.
Nas seções de cartas de leitores dos periódicos brasileiros é possível encontrar fortes e agressivas indicações de intolerância, autoritarismo e fascismo com base nos nove indicadores da escala F. Se uma pesquisa similar fosse feita no Brasil, provavelmente descobriríamos que estamos mais próximos do abismo da inviabilidade da democracia do que imaginamos.
Fonte: Valor Econômico (23/06/17)

Reencarnações do ademarismo (Eugênio Bucci)

À custa de golfadas de mau gosto, a República do Brasil se repete não como farsa, mas como paródia. Bordões de antigamente ressurgem, regurgitados, com um sentido ainda mais cínico. É o que se dá com a máxima ademarista do “rouba, mas faz”, um dos mitos fundadores da política pátria.
Dia sim, dia não, a velha máxima vem abduzir a agenda nacional. Não faz uma semana, houve até a necessidade de que alguém esclarecesse que a doutrina do “rouba, mas faz” não foi o Maluf que fez. Embora a mística ademarista pareça, por vezes, viajar de carona em hostes malufistas, a autoria da receita “rouba, mas faz” é anterior ao condenado de Paris. Talvez seja anterior ao próprio Ademar de Barros, que apenas teria encarnado, com seu discurso e sua prática inconfundível, um princípio já enraizado na malandragem que nutria desejo pelo fraque e pelo voto.
Em governos mais recentes, que acenavam do palanque com a mão esquerda e contavam as cédulas com a direita (não apenas cédulas eleitorais), o “rouba, mas faz” ganhou nova acepção: “rouba, mas faz obra social”. Como supostamente faziam “obras sociais”, os adeptos desse ademarismo reciclado teriam autorização tácita para financiar de modo, digamos, “não contabilizado” a subsistência luxuosa dos agentes e operadores das alegadas realizações “progressistas”. Forjou-se assim o “ademarismo canhoto”, cuja eficácia eleitoral se mostrou poderosa, embora tenha sido institucionalmente corrosivo.
Outra variante surge agora, no desembalo do governo Michel Temer. Os protagonistas da gestão que aí está não se esforçam quase nada em denotar lisura e conduta ilibada. Em compensação, declaram-se integralmente empenhados em fazer aprovar as tais reformas. Estaríamos vivendo, então, como já foi apontado, sob a égide do “rouba, mas faz reforma”.
Podemos fazer um adendo. Como as reformas são de perfil ultraliberal – ou mesmo “neoliberal”, como vem sendo dito –, o ideário político que se vai delineando no interregno Temer poderia ser apelidado de “neoliberademarismo” (com o perdão da brutalidade vocabular). O “neoleberademarismo” funciona. No mínimo, funcionou para segurar até aqui o governo de Michel Temer, o que, convenhamos, é uma proeza.
Aliás, o próprio significado da palavra “reforma” passou por uma reforma radical. Até há bem pouco tempo o substantivo “reforma” servia como contraponto ao substantivo revolução – e era um termo de esquerda. Os “reformistas” eram socialistas sinceros, apenas não apostavam no uso da violência para, como gostavam de dizer, “transformar a sociedade”. Os reformistas eram ex-revolucionários adaptados a novos tempos. Os reformistas tinham rompido com o leninismo, não acreditavam mais em organizar o levante armado das massas e duvidavam da estratégia de “pegar em armas”. Preferiam investir na via eleitoral, dentro da legalidade burguesa, e disputar a “hegemonia”, mais ou menos como propôs Antonio Gramsci.
Agora, a palavra “reforma”, que antes integrava o léxico da esquerda, migrou para a direita. Defender a reforma (ou “as reformas”) no Brasil atual é alinhar-se com Michel Temer, o reformista mais aguerrido. De direita.
O dicionário político contemporâneo vem dando uma pirueta atrás da outra. A palavra revolução virou slogan de propaganda de automóvel na TV – e na lembrança de uns poucos é uma saudade remota. Nos anos 1980, que já vão longe, Daniel Cohn-Bendit, o “Dany le Rouge”, líder das ruas revoltosas de Paris em maio de 68, escreveu um livro para celebrar essa saudade: Nous l’avons tant aimée, la révolution. No Brasil, na mesma época, Fernando Gabeira lançou um livro em que ele e Cohn-Bendit dialogavam sobre a mesma nostalgia: Nós que amávamos tanto a revolução.
Pobre esquerda. Sem o monopólio sobre a palavra reforma, e sem ilusões na palavra revolução, bifurcou-se: uma corrente ama a reforma socializante, que anda em baixa; a outra é essa que está aí a nos dever um novo livro: Nós que roubávamos tanto a revolução. E como roubaram.
Chegamos aqui a uma variante mais complexa. Os chupins da utopia alheia configuraram uma categoria política não mais canhota, mas canhestra: o ademarismo-leninismo. Em meio a tantas e tamanhas reviravoltas semântico-políticas, fragmentos ressequidos do pensamento instrumental de Vladimir Ilitch Ulianov Lenin comparecem hoje ao submundo de ademaristas que acham que são leninistas. Haja comédia de mau gosto.
Francamente, Lenin não merecia isso. Sabemos que ele jamais cultivou virtudes burguesas e não dava a mínima para os limites da legalidade. Sabemos que seus métodos sanguinários só produziram o desastre. Mesmo assim, Lenin foi moralmente superior aos ademaristas que o veneram secretamente. Nunca lhe ocorreu transformar o partido bolchevique em máquina de assaltar o erário.
Em seu Esquerdismo, doença infantil do comunismo, publicado em 1920, Lenin admitiu expressamente que os comunistas deveriam conjugar a atividade legal (pública) e a atividade ilegal (clandestina), mas, para ele, a política definia-se pelas ações legais, públicas, e não pelas ações clandestinas. Ao comentar o caso do agente policial Roman Malinovski, que se infiltrou no partido e chegou a fazer parte do comitê central, ele reafirma que o que vale é a política implementada publicamente. Por isso, ele diz, até mesmo Malinovski, um espião inimigo, “se viu obrigado a contribuir para a educação de dezenas e dezenas de milhares de novos bolcheviques, através da imprensa legal (do partido)”.
Para Lenin, deixemos claro, a finalidade mais alta do partido era a política aberta, pública. Para o ademarismo-leninismo, ao contrário, a atividade pública do partido não passa de um atalho para a efetivação do roubo continuado. O que importa é privatizar o que é público, mesmo que para isso seja preciso fazer uma coisinha ou outra.
À direita e à esquerda, quem diria, o ademarismo virou uma unanimidade nacional.
Fonte: O Estado de São Paulo (22/06/17)

Reformar o quê, como, para quê? (Bolívar Lamounier)

O debate sobre a reforma política arrasta-se desde a Constituinte (1987-1988) e do plebiscito de 1993 sobre o sistema de governo, com resultados práticos assaz limitados. Todo ano, aí por volta de abril, o Congresso Nacional ressuscita a questão, para gáudio do jornalismo político e dos cultores acadêmicos da matéria.
Esquematicamente, creio poder afirmar que esse ciclo anual se repete com uma notável falta de clareza quanto ao que precisa ser reformado e aos objetivos mais amplos, direi mesmo estratégicos, de uma eventual reforma. Ao longo do tempo, essas duas carências foram agravadas por um retrocesso na discussão do modus faciendi – ao “como” da reforma.
Em nome do realismo, convencionou-se que a reforma haveria de ser “fatiada”, minimalista, conceito válido enquanto referência às dificuldades de aprovação no Congresso, mas que obviamente prejudica a reflexão de substância quanto ao “quê” e ao “para quê” reformar. Sem esquecer que mesmo as finas fatias que começaram a ser cogitadas desde a segunda metade dos anos 1990 não percorreram com a suavidade esperada o trato digestivo dos senhores senadores e deputados.
Neste ano da graça de 2017, a discussão retorna envolta em espessas nuvens escuras. Seu objeto já não é a uma conjuntura de instabilidade institucional considerada em abstrato, mas uma instabilidade real batendo às nossas portas. Tampouco se trata de uma situação de ineficácia governamental crônica – de “ingovernabilidade”, no jargão dos cientistas políticos –, considerada em tese, mas dos graves danos infligidos ao País pelo governo da senhora Dilma Rousseff, da inacreditável perda de tempo exigida pelo impeachment e dos riscos que se perpetuam em razão da debilidade do governo Temer. Quase três anos de recessão e o assustador aumento do número de desempregados parece ainda insuficiente para os dirigentes políticos e os quadros formadores da opinião nacional encararem com seriedade a questão da reforma.
Reformar o quê? Depois da tragicomédia do impeachment de Dilma Rousseff e do mero fato de se haver cogitado da antecipação das eleições de 2018, parece-me fora de dúvida que o cerne da questão é o sistema presidencialista de governo. O traço essencial desse sistema é, como sabemos, a rigidez. Do ponto de vista institucional, o Legislativo e o Executivo, eleitos em separado, com base em princípios distintos, nada devem um ao outro. Salvo o amargo remédio do impeachment, que inevitavelmente envolve o processo político num cipoal jurídico apenas acessível aos especialistas, um Poder não tem como influir sobre o outro. Inexiste base constitucional para tanto. Assim, seja qual for o tamanho do desastre causado por qualquer dos dois, ou por ambos, eventuais crises só podem ser superadas pela passagem do tempo. Não por ações e negociações políticas, mas pelo estrito formalismo do calendário nacional. O resto é golpe.

Essa, exatamente, é a situação em que o Brasil se encontra e que, a rigor, teve início já nas primeiras semanas do segundo mandato da senhora Rousseff. No sistema parlamentarista, o chefe de governo (primeiro-ministro) que não disponha de apoio congressual para governar pode ser afastado a qualquer tempo, tenha ou não cometido crime de responsabilidade. E a recíproca é verdadeira. Uma legislatura que se recuse a colaborar com o Executivo, aprovando em tempo razoável medidas de alta relevância para a sociedade, pode ser dissolvida, com a convocação de eleições parlamentares antecipadas. O Executivo dispõe, portanto, de uma alavanca poderosa para resolver impasses, evitando que os congressistas transformem diferenças razoáveis de avaliação num jogo estéril, num desperdício de tempo que o país não pode tolerar.
Deixei propositalmente de lado o problema do chamado “presidencialismo de coalizão”. Num quadro como o nosso, de proliferação partidária desordenada, é praticamente nula a chance de o Executivo formar uma base de apoio com duas ou três agremiações; se o maior partido dispõe de apenas cerca de 20% das cadeiras legislativas, o presidencialismo será inevitavelmente “de coalizão”. Os absurdos que tal condição implica aí estão, à vista de todos. Idealmente, portanto, a eventual adoção do parlamentarismo deve associar-se a uma freada enérgica na proliferação. Mas não concordo com a afirmação de que o conserto da estrutura partidária seja uma precondição para a mudança do sistema de governo. De fato, é comum ouvir que o parlamentarismo não pode ser implantado “com esse Congresso”, ou “com essa estrutura partidária fragmentada”. Ora, nas condições brasileiras, o que torna as alavancas parlamentaristas necessárias e urgentes é justamente o fato de termos “esse Congresso” e “esses partidos”, travas que o sistema presidencialista não tem como romper.
Reformar para quê? Aventuro-me a afirmar que a instabilidade do regime constitucional, risco intensamente considerado pelos constituintes de 1987-1988, já não é uma ameaça grave no Brasil. Muito mais séria é a ineficácia ou baixa eficiência do processo decisório (o risco da “ingovernabilidade”) – como o evidencia o sofrido andamento das reformas trabalhista e previdenciária no Congresso. Nunca é demais lembrar que o Brasil é um dos países aprisionados no que os economistas chamam de “armadilha da renda média”. Refiro-me aqui a países que chegaram até com certa facilidade ao patamar de 10 mil ou 12 mil dólares de renda anual por habitante, mas não conseguem pular para os 20 ou 25 mil, nível ainda modesto, característico dos países mais pobres da Europa, como Grécia e Portugal.
Fonte: O Estado de São Paulo (21/06/17)

Estamos sem pontes e sem projeto (Marco Aurélio Nogueira)

Houve uma época, na virada dos anos 1970 para os anos 1980, que a política brasileira era pura animação e esperança. Havia crise econômica, a inflação era alta, o desemprego estava presente, a ditadura ainda mostrava seus dentes, mas se fazia política com entusiasmo e confiança. A anistia era recente, a “abertura lenta, gradual e segura” dos militares era contrastada por um processo objetivo de democratização e em boa medida era ultrapassada por ele. Era preciso lutar e os espaços de atuação ainda eram restritos. Mas cada corrente, cada grupo, cada indivíduo buscava fazer sua parte e contribuir para que se avançasse.
Partidos até então clandestinos voltavam a se projetar. Jornais alternativos davam vazão ao que se buscava construir como opção política, mais à esquerda ou menos. O Opinião havia perecido pelo caminho (1977), assim como Nós, mulheres e Mulherio (entre outros), Movimento deixaria de circular em 81, mas surgiam novos, como a Voz da Unidade. Revistas, editoras e iniciativas culturais se multiplicavam. O PMDB, com suas virtudes e seus limites, funcionava como abrigo e referência, e ajudava a fazer com que a expectativa que germinava na sociedade civil chegasse ao Congresso. Eram anos de Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro, Mario Covas, Orestes Quércia, Alberto Goldman, Leonel Brizola e Fernando Henrique Cardoso, cada qual com seu estilo e sua tribo.
Naqueles anos, fixou-se uma estratégia de democratização, que se tornou vitoriosa em 1985, e ela possibilitou a constituição de um poderoso bloco de pessoas afinadas entre si, diferenças respeitadas. Políticos, ativistas, intelectuais, sindicalistas, militantes vários, que foram isolando os extremos, costurando alianças, diluindo vetos, erguendo pontes com dissidentes do regime e abrindo caminho para o carro da democracia, que progressivamente empolgava e anunciava novos tempos.
Penso nisso ao olhar para os dias atuais. Andamos para trás. Quanto desperdiçamos de talento e energia!
Hoje, os que estiveram unidos décadas atrás se desuniram. Muitos se tornaram inimigos entre si. Amizades foram desfeitas como se nada tivessem significado, biografias foram reescritas, focos se alteraram. Os campos políticos se desorganizaram e a dissonância cresceu sem limite. Houve quem se entregou cegamente ao Estado, quem cedeu ao mercado e quem se deixou levar por promessas messiânicas e lideranças carismáticas, largando pela estrada a aposta na força das instituições democráticas e na sociedade civil. A opção foi, majoritariamente, pelo acirramento da competição e da polarização, com o que gradativamente deixou de haver lugar para a cooperação.
O bloco que se consolidou na primeira metade dos anos 1980 foi-se inviabilizando aos poucos. Já no governo FHC ele apresentava fissuras e rachaduras, impulsionadas pela competição eleitoral, pela complexificação sociocultural trazida pela globalização e pela revolução tecnológica e, sobretudo, pela avidez com que se passou a disputar o poder. A luta contra a ditadura, que unia, foi substituída pela luta contra o neoliberalismo, que desunia. Perdeu-se o que havia de estratégia de democratização, substituída em parte pelo afã de um “novo desenvolvimento” e em parte pelo assistencialismo, tudo devidamente financiado a fundo perdido pelo Estado e sem conseguir suportes claros na sociedade civil. Em vez de estratégias, passou-se a ter táticas de conquista e conservação do poder político.
Ao longo dos anos 2000 essa inflexão se cristalizou.
Os políticos foram ficando sem referências, movendo-se tão somente pelo imediato. A intelectualidade democrática e progressista de antes — na qual se incluíam combativos liberais, socialistas e comunistas de diversas famílias, reformistas, nacionalistas, trabalhistas e esquerdistas – foi-se entregando ao culto da eficiência e da “produtividade”, trancando-se nos departamentos acadêmicos, nos negócios privados, nos nichos culturais. Continuou-se a produzir ciência e cultura, mas os produtos ficaram represados, deixaram de chegar aos destinatários. Esmaeceram os intelectuais públicos. O processo se completou com o empobrecimento do debate público democrático e a desqualificação das lideranças políticas, que foram se rebaixando e perdendo o eixo. O mundo da cultura e o mundo da política se afastaram.
Foi uma verdadeira obra de demolição. Empreendida não por ditadores, nem pelo “sistema”, mas pelos próprios protagonistas, que atiraram em si mesmos.
O resultado está aí para quem quiser ver. Tornamo-nos uma sociedade sem rumo, sem consciência de si, que não sabe o que esperar do dia de amanhã, enrolado em suas próprias contradições políticas, vagando de crise em crise. Na qual a indignação e a retórica maximalista ocupam o lugar reservado para a política.
Hoje, a esperança esfarelou. Um patrimônio político, ético, cultural, associativo e intelectual foi perdido, e será preciso em boa medida começar de novo, como escreveu Luiz Sérgio Henriques no belo artigo que publicou em O Estado de S. Paulo de 18/06/2017, cuja leitura me serviu de referência para escrever estas linhas.
Está lá, nesse texto vigoroso e certeiro, a constatação de que estamos todos “atônitos”, vendo “as agonias que se acumulam, as hipóteses de saída que surgem e se desfazem como bolhas de sabão, os políticos que de uma hora para outra abandonam a ação parlamentar e passam a integrar tramas judiciárias cujo fim não parece próximo”. No tumulto dos dias, a impressão que se firma é a de “um enredo mambembe em que os personagens procuram, em vão, uma direção e um sentido para o que fazem”. A sensação, observa, “é de que os fatos caminham por si sós, assumindo aos trancos e barrancos um protagonismo além da capacidade dos atores, cujos movimentos se esgotam na busca da sobrevivência pura e simples”.
É um artigo que faz pensar: “Sabemos que o que nos trouxe até aqui não é ponte que nos conduzirá ao futuro. O PMDB já não parece ter quadros ou ser portador de ideias-força para sustentar um governo de reformas. A classe política que o viu nascer e lhe insuflou alma não existe mais. O antagonismo entre PSDB e PT, que nas quatro últimas eleições presidenciais favoreceu amplamente este último, mas assinalou afinal o fracasso histórico do petismo, não poderá mais ser a principal linha de clivagem do sistema partidário, a não ser que nossa sociedade se aniquile nas malhas da repetição neurótica”.
Henriques conclui com um alerta: “Sabemos que o presente cenário de terra arrasada é o mais favorável para aventuras extremadas. Refazer os cacos e ordenar razoavelmente a arena pública requer o emprego da arte da competição e da cooperação, da qual nos temos dissociado. Arte a ser exercida sob o império da Carta de 1988, longe dos fundamentalismos de mercado ou das utopias autoritárias do esquerdismo”.
Outro dia, FHC falou que “é preciso dar uma trégua ao Brasil”. Ele está certo. Parar um pouco para pensar, guardar o ódio e o ressentimento acumulados, buscar um foco mais interessante do que esta briga entre partidos mortos-vivos. O país está efetivamente estressado. Na política, sobretudo. Mas a vida não para e os humanos conseguem sempre sair de situações difíceis. Basta que consigam definir quais os seus grandes problemas e tenham tempo e determinação para modelar soluções e construir saídas. Com um sentimento de urgência, mas sem correria.
É muito, é custoso, é difícil, mas é o que temos.
Fonte: O Estado de São Paulo (20/06/17)