quinta-feira, 12 de março de 2020

Por acaso (José de Souza Martins)

O acúmulo de gestos, atos, atitudes, palavras, palavrões, nestas últimas semanas do Brasil transfigurado, o novo Brasil surpreendente e, mesmo, assustador, provoca o temor de que algo está sendo tramado. O que pode transformá-lo em algo bem diverso do que o povo brasileiro conhece e respeita.
A alegação presidencial de que o governante se apoia em 31 milhões de pessoas com as quais se comunica pelas redes sociais e, portanto, não pelo “Diário Oficial”, mostra que o Brasil político é hoje dominado por uma fonte alternativa de legitimidade, fora do marco das instituições e da Constituição. Diversa da legitimidade procedente do voto popular que se expressa em duas fontes complementares de poder, as casas do Legislativo e o Executivo. Este mesmo, descaracterizado por um discutível presidencialismo de condomínio familiar, escorregadio em face da lei e da ordem. Os guardiões das instituições calam-se na cumplicidade do silêncio.
O apoio presidencial à convocação de manifestações contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal reforça o temor de que as instituições estão concretamente ameaçadas. Pescadores de águas turvas têm tido uma função antidemocrática na história política do Brasil e já não há como não notar que a pátria está sendo de nós todos usurpada.
Pode-se dizer que tudo isso é apenas um conjunto de acasos, expressões de imprudência, de falta de educação, de carência de civilidade dos que se aboletaram na organização do Estado a partir de 1º de janeiro de 2019. O Brasil é assim mesmo, disse-me alguém. Melhor não perder tempo com essa gente. Ora, é isso mesmo que essa gente quer, que não prestemos atenção naquilo que destoa do que deveria ser.
Tudo vai para a conta do acaso. Por acaso, o presidente é assim mesmo. Por acaso as coisas acontecem fora da pauta cívica e do que é próprio da organização e da liturgia do Estado brasileiro.
O acaso é frequente nas tradições brasileiras. Por acaso, o Brasil foi descoberto, em abril de 1500, embora não tão por acaso, pois numa das primeiras cartas enviadas ao rei de Portugal, o missivista lhe sugere que mande buscar um mapa na casa de alguém, porque ali a nova terra já estava localizada. Aqui o acaso produz consequências não casuais.
Por acaso, a independência do Brasil foi proclamada pelo príncipe Dom Pedro. Ele achava que estava proclamando uma coisa quando estava proclamando outra. Na tarde de 7 de setembro de 1822, na colina do Ipiranga, pensava estar consolidando o lugar do Brasil no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve.
À noite, na Casa da Ópera, no hoje Pátio do Colégio, ao ser inesperadamente aclamado rei do Brasil, ficou sabendo que havia proclamado a Independência e a saída do Brasil do Reino Unido de Portugal. Uma trama de jovens paulistas, ligados a José Bonifácio de Andrada e Silva, resolvera colocá-lo na situação de fato de fundador do Império.
A República foi proclamada por acaso, contra o Partido Republicano. O marechal Deodoro imaginava estar depondo o ministério quando de fato estava proclamando a República. Levou um dia inteiro para descobrir isso. Até que o imperador, aprisionado com sua família, desde cedo, decidiu propor aos carcereiros, oficiais do Exército, sua saída do país, com a família, desde que assegurados a ela os meios materiais de sobrevivência. Com isso, viabilizava a República sem derramamento de sangue. Dom Pedro II foi o verdadeiro republicano daquela hora de incerteza.
O acaso fincou pé na política brasileira, subjacente às peculiaridades de nossa estrutura política. O Brasil não é, politicamente, um único país. Mas ao menos dois, superpostos: o Brasil municipal e o Brasil nacional. O país dos municípios que, já nos primeiros tempos do período colonial, eram chamados de República e mesmo definidos como pátria, como fizeram os paulistas quando da Guerra dos Emboabas, no século XVIII. Nele nasceu nosso nativismo e nosso ímpeto de independência.
O Brasil nacional foi forjado pela metrópole, consolidou-se na unidade do Império. Na República ganhou uma cara unitária, que se tornou também uma cara autoritária ou de tendências autoritárias. Nas eleições de 2018, um traço dessa duplicidade ganhou relevo. Os municípios colocaram entre parênteses sua tradição democrática e elegeram um Congresso Nacional que abdica de seu poder e de seu dever em face da legitimidade ilegal das ruas, manipuladas pelo afã do poder absoluto.
Para votar, compreensivelmente, contra o Partido dos Trabalhadores, o eleitorado cansado e desiludido votou no autoritarismo do candidato residual do sistema político degradado. Foi um voto contra, e não um voto a favor. Por acaso, elegeu as almas penadas que sobraram do regime de 1964.
Valor Econômico/06-03-20

Apoio nas ruas definirá futuro do atrito de Bolsonaro com Congresso, diz cientista política (Argelina Figueiredo)

O futuro do confronto entre o presidente Jair Bolsonaro e o Congresso dependerá do apoio que as manifestações convocadas para o próximo dia 15 receberão, diz a cientista política Argelina Figueiredo, professora da Universidade Estadual do Rio.
Na semana passada, Bolsonaro enviou a seguidores mensagens e vídeos que convocam a população para defendê-lo nas ruas no dia 15, data escolhida por grupos conservadores que apoiam o presidente para protestos contra o Congresso.
Para Argelina, Bolsonaro ampliou o espaço dos militares em seu governo, nomeando generais para postos chave no Palácio do Planalto, com o objetivo de intimidar adversários e inibir tentativas de esvaziar o poder do Executivo.
Argelina, 72, é autora de trabalhos acadêmicos influentes sobre a crise que levou ao golpe de 1964 e as mudanças promovidas nas relações entre o Executivo e o Legislativo pela Constituição de 1988, após o fim da ditadura militar e a redemocratização do país.
Atualmente, ela prepara um novo volume com o cientista político Fernando Limongi, da Fundação Getúlio Vargas, e outros pesquisadores, para atualizar o estudo sobre as relações entre o Executivo e o Legislativo, que completou 20 anos no ano passado.
• O presidente começou a semana incitando seguidores a participar de manifestações contra o Congresso e pareceu baixar o tom nos últimos dias. O que isso significa?
Bolsonaro é um agente provocador, como mostra desde o início do governo. Subestimamos o perigo que ele representa desde as eleições de 2018, quando muitos achávamos que não venceria. Mas há um risco grande de ele se transformar num pequeno ditador.
Como presidente, ele tenta impor ao sistema político tudo que teve de engolir quando era apenas um deputado do baixo clero. Suas ideias autoritárias e reacionárias, o desprezo pelas instituições. Tudo isso visando formar uma base de apoio popular que o ajude a confrontar o Congresso.
Ao mesmo tempo, ele se cerca de generais no Palácio do Planalto e afaga suas tropas, as polícias estaduais, os escalões inferiores do Exército. Acho que ele está fazendo isso para contar com os militares como bombeiros para defendê-lo se houver alguma iniciativa para tirá-lo do poder.
• Como os outros Poderes deveriam reagir?
Não faltariam motivos para iniciar um processo de impeachment se a maioria do Congresso quisesse, mas ele está na corda bamba. Ele precisa responder aos desatinos de Bolsonaro, mas não interessa a ninguém uma situação de confronto aberto.
Num cenário que classifico como catastrófico, mas que parece plausível, o presidente pode incitar as pessoas e provocar o caos para que os militares intervenham para manter a ordem. Acho que muitos políticos veem isso e querem evitar que algo assim ocorra.
• O que ele ganharia com isso?
A atitude conflituosa atrapalha a aprovação de medidas em que o próprio governo tem interesse. Mas os líderes do Congresso sabem que uma atitude de cautela é necessária, frente à relação de Bolsonaro com os militares e sua capacidade de manipular a situação política e social.
Por outro lado, a maioria do Legislativo é a favor da política econômica proposta pelo governo. E o mercado, que dá sustentação a essa política, que apoiou Bolsonaro na eleição e segue apoiando o governo, tem pouco apreço pela democracia, porque está mais preocupado com os resultados da política econômica.
• Na semana passada, Bolsonaro reclamou que o Congresso não aprova seu projeto que beneficia motoristas infratores, mas não disse nada sobre as reformas propostas por sua equipe econômica.
O Congresso tem demonstrado independência ao rejeitar medidas como essa e outras que levariam a retrocessos na área ambiental, na segurança pública e na política indígena.
A medida provisória que desobrigava empresas de publicar balanços na imprensa, e que era uma tentativa de asfixiar jornais, também não passou. Mas Bolsonaro pouco se importou com a reforma da Previdência. Ele estava preocupado em não mexer com os militares, e conseguiu isso.
• É sustentável essa espécie de parlamentarismo branco, em que o Congresso exerce maior protagonismo sem uma coalizão que dê sustentação ao governo?
Um governo minoritário como o de Bolsonaro, sem uma coalizão para governar, sempre terá uma relação conflituosa com o Legislativo. Bolsonaro é um presidente de extrema direita e não tem apoio para suas propostas mais radicais. No Congresso, partidos de centro dominam o plenário e são eles que fazem as coisas acontecerem.
Teremos uma instabilidade constante, e seguiremos aos trancos e barrancos. A rejeição das medidas provisórias editadas pelo presidente tem sido frequente, assim como a derrubada de vetos presidenciais. Mas o cenário catastrófico que descrevi antes seria pior.
• Bolsonaro submete as instituições a um estresse permanente. Elas aguentam?
Ele faz isso, mas não tem alternativa. Vamos supor que as manifestações convocadas para 15 de março alcancem grau de mobilização razoável. O Congresso vai iniciar um processo de impeachment, mesmo com a população contra?
Muitas pessoas acreditam nas mentiras que ele conta. Mas as pesquisas mais recentes mostram que a reprovação ao governo é alta, e o número de pessoas que não confiam nele e não gostam do seu estilo de governar são maioria. Minha torcida é para que essa manifestação fracasse.
• Por que o impeachment não lhe parece uma alternativa?
A maioria do Legislativo, ao assumir o atual protagonismo, se dispôs a aprovar reformas econômicas que têm o apoio do mercado e estão incompletas. Eles não querem prejudicar esse programa. Essa talvez seja a razão pela qual não haverá impeachment.
O Congresso nunca agiu como uma instituição irresponsável, nessas três décadas desde a redemocratização e a Constituição de 1988. Há hoje uma coincidência de interesses entre a maioria do Legislativo, os grupos econômicos e as políticas do governo, e assim o Congresso vai tocando o governo para frente.
Agora, a instabilidade política causa prejuízos à economia, e a população tem sofrido com isso. São as filas no INSS, os cortes no Bolsa Família, e tantos outros problemas. Isso tende a se refletir nos índices de reprovação do presidente.
• Bolsonaro tem limite?
A situação atual me parece mais perigosa. Ele sempre menosprezou as instituições, mas esta é a primeira vez que convoca uma mobilização popular contra elas. Não adianta dizer que estava falando num grupo de amigos, que não era bem assim. A mensagem foi clara.
Além disso, na crise das polícias estaduais, ele tem minado a autoridade dos governadores. E ao mesmo tempo que reforça o grupo militar ao seu redor. Se houver uma resposta popular à convocação do presidente, há um risco de os militares intervirem para garantir o poder de Bolsonaro.
• No início do governo, havia a expectativa de que os militares iriam conter os instintos autoritários do presidente. O que mudou?
Minha impressão é que alguns não se importam com esse comportamento de Bolsonaro. Acham que podem controlá-lo e contribuir para o governo. Há também um lado corporativo. Eles querem benefícios para a corporação e recursos para investimentos das Forças Armadas.
Mas há também quem apoie essa política de confronto com o Congresso, como o general Augusto Heleno [chefe do Gabinete de Segurança Institucional do Planalto]. Bolsonaro foi cooptando aos poucos os militares e parece ter formado um núcleo forte ao seu redor.
• Há uma disputa entre o governo e o Congresso pelo controle dos recursos disponíveis no Orçamento para investimentos, cada vez mais exíguos. Bolsonaristas tratam congressistas como chantagistas. Têm razão?
Não. Mesmo minoritário, o presidente tem poderes para formar uma coalizão que coordene a ação governamental e facilite a cooperação com os partidos que controlam o Legislativo. Ele optou por não fazer isso.
No mundo inteiro, os partidos formam coalizões para obter cargos, exercer influência sobre políticas públicas e conseguir votos. No Brasil, muitas pessoas pensam que tudo é corrupção e patronagem. Desvios podem ocorrer e ocorrem, mas não é isso que faz uma coalizão funcionar.
Se não puderem se relacionar com o público, com os eleitores, como os deputados vão obter votos? E se não puderem defender políticas e alocar recursos públicos, como vão obter votos? Os principais partidos tentam construir suas reputações em torno de políticas, no mundo inteiro.
• Muitas pessoas pensam que o Congresso busca inviabilizar o governo.
O Congresso aprovou várias reformas no processo orçamentário nos últimos anos, criando regras para distribuição dos recursos, tornando as decisões mais coletivas e aumentando sua transparência. O Legislativo aumentou seu poder para definir políticas públicas, e não há nada de errado nisso.
Como os recursos para investimentos são muito baixos hoje, o governo está brigando com o Congresso por esse dinheiro. É uma disputa entre os Poderes, e o governo não quer perder sua capacidade de manejar esses recursos.
Existe muito preconceito e incompreensão do papel do Legislativo, em parte por culpa da imprensa. Se não houvesse emendas parlamentares, qual seria a alternativa para distribuir os recursos? Uma grande equipe técnica que estudaria as carências do país inteiro e ia custar mais dinheiro do que se gasta com as emendas. Para quê? Os políticos conhecem as carências.
• Os escândalos de corrupção dos últimos anos contribuíram para esse preconceito?
Achar que todo político é corrupto é o que os corruptos mais querem, porque assim eles deixam de ser diferentes e podem continuar agindo. Só eles ganham com isso.
Note que os desvios revelados nos últimos anos não se concentraram no Congresso. Ainda assim, até colegas meus, cientistas políticos, tratam os congressistas como se só estivessem interessados em embolsar dinheiro e patronagem.
• Há alguma semelhança com a crise que levou ao golpe de 1964?
Há muitas diferenças. Não há o contexto internacional da Guerra Fria, com uma divisão ideológica muito acentuada. Também não há radicalização no Parlamento hoje. Em 1964, o centro se esvaziou e não havia negociação possível entre direita e esquerda.
O presidente era mais fraco. João Goulart não tinha poderes para submeter um projeto de reforma constitucional, só o Congresso tinha a prerrogativa. Bolsonaro pode apresentar emendas à Constituição, o que dá a ele um poder grande de influir na agenda política.
O conflito naquela época era mais ideológico. Havia grande preocupação com a desigualdade social. Hoje, o combate à desigualdade saiu da agenda do governo e há um predomínio da política econômica austera, fiscalista. Com a reforma trabalhista e o enfraquecimento dos sindicatos, ficou muito difícil qualquer ação coletiva para reinserir essa preocupação na agenda.
Você lê os jornais hoje e encontra vários articulistas criticando Bolsonaro, mas a maioria só reclama da instabilidade por causa do prejuízo que pode causar à política econômica, como se só ela importasse.
Ricardo Balthazar/Folha de S. Paulo/2 de março de 2020

Mito e política – precisamos de uma alternativa (Sergio Fausto)

A política não é lógica ou ciência exata, não quer demonstrar, e sim convencer. Mais do que argumentos, busca mobilizar certos valores e sentimentos, por oposição a outros. Visando à conquista de corações e mentes, vale-se de narrativas cognitivamente simples e emocionalmente poderosas para fixar, por contraste com outras, uma certa representação discursiva da realidade presente e projetar um futuro melhor (mesmo que a promessa seja de retorno a um passado idealizado).
Compreender que a política se dá no plano da competição simbólica é especialmente importante em momentos nos quais as sociedades se sentem ameaçadas. Nesses momentos, a racionalidade ordinária e individual do eleitor, sem desaparecer, cede terreno a vastas e polarizadas emoções coletivas de medo, rancor e intolerância. Vivemos um momento assim, que, paradoxalmente, cria possibilidades de restabelecer convergência e projetar aspirações novas em torno de valores comuns.
Em artigo recente, David Brooks, colunista do New York Times, oferece explicação convincente sobre o favoritismo de Bernie Sanders nas primárias democratas e o completo domínio de Donald Trump sobre o Partido Republicano. Foram os únicos até aqui, diz ele, que produziram narrativas de caráter mítico sobre a nação americana, formulando representações simbólicas sintéticas sobre o que são e o que devem ser os Estados Unidos da América. Que sejam representações opostas mostra que a nação não é una. Nenhuma nação.
Diante das opções que não lhe agradam, Brooks pergunta: ainda poderá surgir entre os democratas uma candidatura capaz de apresentar e encarnar um relato mítico alternativo ao “socialismo” de Sanders para se contrapor ao nacionalismo xenófobo de Trump, que ele vê como o mal maior? O colunista não arrisca uma resposta. Apenas registra que nas suas andanças pelos Estados Unidos tem notado, no nível local, que a maioria das pessoas parece disposta a cooperar para resolver problemas comuns, independentemente de raça ou preferência partidária. Ainda que a observação de Brooks esteja correta, resta o imenso desafio de dar expressão política nacional concreta ao que se verifica difusamente no nível comunitário. Doze anos atrás, Obama conseguiu.
O Brasil está em outro ponto do ciclo eleitoral, mas a questão posta por Brooks se aplica muito bem à realidade brasileira. Por ora, apenas duas forças conseguiram produzir narrativas política e eleitoralmente poderosas sobre o que é e o que deve ser o Brasil. O relato mítico da nação devotada a Deus e por isso livre do mal da corrupção e da degeneração dos costumes leva vantagem sobre o relato mítico do País socialmente justo pela luta de um partido e de um líder do povo, com o povo e pelo povo. Isso porque o primeiro relato conta com os instrumentos do poder e com um presidente onipresente e o segundo está sem poder, sem dinheiro e com seu homem-mito eleitoralmente inabilitado, por problemas com a Justiça.
Para criar uma alternativa a essa dualidade, as forças de “centro”, por ora uma geleia de contornos imprecisos, não podem cair no erro da “idiotice da objetividade”, ou seja, acreditar ser possível combater poderosos relatos mítico-políticos apenas com apelos à razão, muito menos se calcados em argumentos tecnocráticos sobre propaladas ou reais virtudes administrativas. Claro que boas propostas e competência gerencial são importantes, mas de pouco valem na conquista de corações e mentes se não forem incorporadas como elementos de uma narrativa abrangente baseada em valores e sentimentos diferenciadores das opções ora dominantes.
Parte do desafio é desconstruir o relato mítico dos adversários. O bolsonarismo revela cruel falta de empatia com o sofrimento humano, intolerância com quem não se enquadra no padrão ultraconservador da moral e dos bons costumes, desprezo pelas mais elementares regras de convívio numa sociedade democrática. O petismo faz pouco do clamor por igualdade republicana perante a lei. Prefere vê-lo como produto da manipulação política, e não como resultado da democratização substantiva de uma sociedade que se cansou da impunidade dos poderosos. Rejeitando qualquer autocrítica, fecha-se sobre si mesmo e glorifica seu líder máximo.
Para construir uma perspectiva alternativa é preciso entender e sentir que o Brasil clama por decência, por igualdade de oportunidades, proteção aos mais pobres, redução da violência, cuidado com as pessoas e com a natureza. Que começa a se cansar de um clima que azeda até mesmo as relações pessoais e tira a alegria de (con)viver. O País pede uma liderança que seja firme, mas não boçal, que respeite sinceramente a religiosidade do povo, nas suas diferentes fés, mas enfrente a manipulação política da religião como instrumento de poder e enriquecimento, que tenha crença verdadeira na democracia e nos valores da igualdade e da liberdade.
Além de um candidato, é necessário produzir uma narrativa política em torno desses valores e sentimentos. Não há muito tempo a perder.
O Estado de S. Paulo/2 de março de 2020

O Povo e Exército (Demétrio Magnoli)

Engana-se quem interpretou a militarização do núcleo político do governo como sinal de marginalização dos extremistas do bolsonaro-olavismo. Depois de recolher suas bravatas vazias contra a ditadura de Maduro, Jair Bolsonaro inspira-se no chavismo para ensaiar uma ruptura institucional. “O Povo e o Exército” —a fórmula chavista orienta os dois motins paralelos estimulados pelo presidente contra a democracia. A estratégia avança à sombra do temor dos líderes parlamentares e dos comandantes militares, que se curvam diante do espectro disforme das redes sociais.
O motim da PM do Ceará distingue-se de tantos tumultos policiais anteriores porque brotou no terreno da política, apenas tomando carona em reivindicações corporativas. Há meses, as redes virtuais olavistas operam nos quartéis das PMs. Um vereador-sargento de Sobral ligado às hostes de Bolsonaro insuflou os amotinados. O clã presidencial mal esconde seu apoio à baderna.
A letra da lei não assusta os arruaceiros que copiam os métodos das facções. Quando Cid Gomes avançou, irresponsavelmente, com uma escavadeira, exprimia uma justa indignação. Aceitaremos, de braços cruzados, a transmutação da PM em milícia politizada? Sim, claro, respondeu Sergio Moro: “o governo federal veio para serenar os ânimos, não para acirrar”.
No lugar de cercar os quartéis invadidos, cortar luz e água, exigir a rendição dos amotinados, as forças federais limitaram-se a substituir a polícia no patrulhamento das ruas, oferecendo aos bandidos em uniforme um tempo extra para o exercício da chantagem. “Serenar os ânimos”: o governo estadual, desarmado, deve enfrentar sozinho os milicianos armados. A novela ruma às conclusões previsíveis: negociação e, lá adiante, anistia. O crime compensa.
O 15 de março nasceu da divisão no entorno militar de Bolsonaro. A adesão de Augusto Heleno ao extremismo abriu caminho para a convocação de marchas contra o Congresso, que têm o respaldo explícito do presidente. Não se trata, ainda, de consumar a ruptura, mas de testar a espinha dorsal das instituições democráticas. A meta é acuar, intimidar. Os alvos explícitos são os parlamentares e o STF. Mas, paralelamente, investe-se na agitação da oficialidade: o Povo e o Exército.
As declarações evasivas de Hamilton Mourão evidenciam uma rendição. Protestos contra o Congresso certamente “fazem parte da democracia”, mas não uma convocação a eles oriunda do chefe do Executivo. Os paralelos apropriados são com a “marcha sobre Roma” de Mussolini ou os cercos à Assembleia Nacional promovidos por Maduro. Celso de Mello foi ao ponto quando disse que Bolsonaro “desconhece o valor da ordem constitucional” e, portanto, “não está à altura do cargo que exerce”.
No início, o cordão de generais do Planalto definia limites à retórica presidencial. Desde a demissão de Santos Cruz e o bombardeio virtual contra Mourão, os homens estrelados baixaram a cabeça. Como no caso das PMs, as redes extremistas engajam-se na cooptação de oficiais da ativa de escalão intermediário, ameaçando a disciplina militar. Santos Cruz tem razão ao alertar para o risco de “confundir o Exército com assuntos temporários de governo, partidos políticos e pessoas”.
Bolsonaro imagina que é capaz de mobilizar incontáveis milhões pois enxerga nas suas redes sociais a imagem do Povo. Os líderes do Congresso e os comandos das Forças Armadas compartilham a ilusão presidencial. Daí, o temor geral de pronunciar a palavra “Basta!”.
Os chefes militares renunciam a prestar continência à Constituição e repelir a politização dos quartéis. Os políticos vacilam diante do imperativo de deflagrar um processo de impeachment. A opção pelo apaziguamento encorajará os extremistas a avançar mais um passo, testando uma nova fronteira. Às vezes, as democracias morrem de uma enfermidade chamada medo.
Folha de S. Paulo/29 de fevereiro de 2020

Destruição das instituições como forma de governar(Fernando Abrucio)

O bolsonarimo é uma ideologia baseada no combate constante às instituições políticas e políticas públicas construídas pela democracia brasileira desde 1988. O então candidato Bolsonaro e sua entourage não enganaram ninguém: xingaram na campanha a grande mídia, a “velha política”, o modelo “paternalista” de programas sociais e até mesmo propuseram uma “invasão do STF” para controlá-lo. O maior temor de todos os democratas era que esse ideário produzisse uma quebra democrática, seja no sentido clássico, com o apoio dos militares, seja reduzindo o poder das instituições ou alterando drasticamente suas regras, como nos casos recentes da Hungria e da Venezuela.
O caminho escolhido pelos bolsonaristas, aparentemente, é outro. Trata-se fundamentalmente de destruir, mais do que construir. E tal destruição está mais para a maneira de agir das traças, que comem as roupas de forma paulatina e desorganizada, por vezes traçando cotidianamente pequenas partes que ninguém percebe, por vezes puxando inesperadamente fios grandes que geram uma enorme comoção política. Não é o método de uma retroescavadeira, para lembrar o objeto do momento. É algo muito mais caótico, que traz perigos para a democracia porque corrói seu suporte, mas não diz que vai substituir o regime político, dando a impressão de que estamos em tempos de normalidade democrática.
O que explica a adoção desse método das traças vai além da adoção de valores autoritários, ou pelo menos da ausência de crenças democráticas dentro do atual grupo dominante. Essa estratégia foi escolhida porque falta a Bolsonaro um modelo de como governar o Brasil, diferentemente, por exemplo, de Putin na Rússia, cujo projeto autoritário é construído com a frieza racional do jogo de xadrez. Por vezes, o presidente até sonha com o retorno a algo mais parecido com a ditadura militar, mas, mesmo assim, ele e seus apoiadores não saberiam como reproduzir essa (terrível) experiência histórica no momento atual brasileiro e mundial.
Assim, mesmo que defenda um ideário conservador do ponto de vista cultural e proponha ambiguamente e sem muita convicção uma visão ultraliberal para a economia, o bolsonarismo não tem clareza de como isso se materializaria em termos de políticas públicas e, principalmente, de organização institucional. As evidências desse fenômeno de ausência de um projeto estruturado de governo estão no grande número de mudanças em cargos estratégicos do governo federal, nos recorrentes zigue-zagues das propostas de políticas públicas, no recorde presidencial de derrotas legislativas e na enorme concentração de poder na figura pessoal (mais do que institucional) de Bolsonaro, que só confia de fato em seus filhos e faz questão de mostrar que nenhum de seus auxiliares mais próximos está seguro em sua posição. Em poucas palavras, o presidente quer que todos o obedeçam como em uma seita, mas não sabe como organizar sua “igreja” para chegar aos fins desejados.
Essa aparente fragilidade no campo estratégico, no entanto, não reduz a força e os riscos presentes no bolsonarismo. O ponto central aqui é que embora não tenha um projeto de governo, Bolsonaro tem um projeto de poder, estruturado principalmente na destruição das instituições e políticas públicas construídas desde 1988 e na construção de “inimigos” que estariam por trás delas. No fundo, há nessa lógica uma proposta eleitoral clara: se todos os outros só erram e atrapalham o “povo”, só sobra a escolher a continuidade do atual presidente, que esconde seu desgoverno por meio da batalha contínua para destruir e desmoralizar os demais.
O jogo bolsonarista de destruição paulatina da institucionalidade e das práticas democráticas passa por cinco fronts. O primeiro é o da relação com o Congresso Nacional. É preciso mostrar que ele não é legítimo e, de tempos em tempos, criar um episódio para colocar a sociedade contra os congressistas. Como a parte majoritária do Legislativo tem aceitado aprovar medidas que evitam a ingovernabilidade do país - bem diferente do que ocorreu no segundo governo Dilma, quando Eduardo Cunha comandava o processo legislativo -, Bolsonaro tem podido, por ora, ser um revolucionário incendiário sem sofrer impeachment. É provável que após as eleições municipais esse equilíbrio político não seja mais possível.
O segundo front dessa estratégia destrutiva reside na relação com o Supremo Tribunal Federal. Novamente, após períodos de calmaria, bolsonaristas precisam inventar algum fato para desmoralizar o STF. Neste caso, a ação tem ocorrido mais nas redes sociais, porém, isso não é menos perigoso institucionalmente, porque é um processo subterrâneo e molecular de deslegitimação paulatina de vários dos ministros. A ideia de que novos indicados deveriam ser “terrivelmente” vinculados aos valores cristãos é uma forma de dizer que o atual quadro do STF não segue os padrões morais da sociedade brasileira. Há aqui o risco enorme de alimentar a ação voluntarista de algum ativista mais radical contra membros da Corte.
O método das traças foi muito usado nas últimas semanas num terceiro front, o federativo. Bolsonaro entrou neste embate com a Federação por três razões, embora continue citando falsamente o mantra “Mais Brasil, menos Brasília”. O primeiro é que é possível dividir as culpas pelos fracassos e incompetências do governo federal com os Estados e munícipios. Se a gasolina aumenta, óbvio que a culpa é dos Estados, gritaria um daqueles seguidores que ficam esperando o presidente dizer qual é a ordem do dia. Se a educação não melhora, claro que a culpa é dos municípios, e se propõe então a criação de um novo modelo de alfabetização que foi feito escondido do grande público, mas que se sabe que não será executado porque os responsáveis por sua implementação - os prefeitos, basicamente - foram completamente ignorados durante o processo. E se há problemas de segurança pública, os culpados são os governadores, mesmo quando a culpa disso esteja no fato de que o bolsonarismo esteja incitando a rebelião das Polícias Militares, com táticas que, aliás, lembram a ação das milícias.
A luta contra os governadores tem uma segunda razão de ser, de acordo com o projeto de poder bolsonarista. Ao longo da história brasileira, os Estados sempre tiveram um papel importante como contrapeso democrático frente ao governo federal. No momento, os chefes dos Executivos estaduais são capazes de apresentar discordâncias e críticas ao presidente Bolsonaro com maior legitimidade e influência do que os líderes partidários, pois representam um amplo espectro ideológico, inclusive com membros da oposição mais à esquerda.
A Federação é uma pedra no sapato de Bolsonaro, por fim, porque alguns governadores podem ser candidatos a presidente ou importantes lideranças no processo de sucessão presidencial. Dificilmente haverá harmonia entre o governo federal e os governos estaduais de São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Bahia e Maranhão, porque seus governantes estão no caminho do projeto de reeleição bolsonarista. Claro que isso atrapalhará o país e os cidadãos desses Estados, bem como terá efeitos negativos sobre a própria gestão presidencial, uma vez que quando as políticas fracassam ao longo do território nacional, o presidente também é responsabilizado.
Mas o que importa se o governo não funciona quando está em jogo um projeto de poder maior?
Entre os cinco fronts, aquele mais visado pelo bolsonarismo, e o que dá mais prazer ao líder e liderados desse movimento, é aquele contra o PT e o lulismo. O antipetismo foi o grande eleitor em 2018 e Bolsonaro planeja que isso continue em 2022, sendo ele o portador da salvação contra essa “praga”. Para manter essa narrativa, vale até dizer, mentirosamente, que os petistas estariam mais interessados em proteger os milicianos do que a família Bolsonaro, como o séquito bolsonarista tem espalhado pelas redes sociais.
Interessante notar que manter a polarização com o PT é a melhor forma de o bolsonarismo evitar que outras forças políticas surjam contra o atual projeto de poder. Na verdade, Bolsonaro, e agora Moro, insistem na briga contra Lula porque querem mostrar que só eles podem ganhar essa batalha. Só que, tal como as traças, essa estratégia comeria não só os fios petistas, mas também outras partes do sistema que poderiam surgir como alternativa. Dessa maneira, os bolsonaristas pretendem reduzir o tamanho da pluralidade política brasileira e enfraquecer a institucionalidade democrática.
A logica da destruição bolsonarista tem seu capítulo mais triste na tentativa de desmoralizar parcelas da sociedade que se colocam contrárias às ações governamentais. Aqui, ONGs e imprensa são os principais inimigos. Para o bolsonarismo, deslegitimizar atores sociais relevantes é uma parte essencial de seu projeto de desinstitucionalizaçao do país. Mesmo que alguns cientistas políticos só olhem para a estrutura formal do Estado e digam que está tudo normal, o fato é que a democracia se enfraquece muito, e pode até morrer comida pela traças, quando a sociedade não é livre para cobrar as instituições. Eis aqui o maior perigo da estratégia de poder do presidente Bolsonaro.
Valor Econômico/28 de fevereiro de 2020

A esquerda perdida (Guilherme Amado )

Semanas depois de deixar a cadeia, Lula marcou uma conversa com um cientista político, alguém que durante anos aconselhou não só o PT, mas também boa parte dos quadros da política tradicional. Aturdido pelo cenário adverso para seu partido, Lula perguntou ao interlocutor: “Onde foi que erramos?”. Incrédulo, o cientista político não levou o papo muito além. O episódio é mais um a mostrar como Lula, o PT e a esquerda estão perdidos.
Quando estava preso, o comentário no partido era que todos estavam de certa maneira presos com o ex-presidente. Solto, tem demorado a entender o que se passa no país, o que se passa no PT e, o mais importante, como dar a volta por cima. Principal partido de oposição, a sigla completou 40 anos com sinais de cansaço.
Não conseguiu até hoje sair do fosso da Lava Jato, erra no Congresso e não consegue colocar candidaturas competitivas de pé para outubro. O barata-voa tem sido uma constante também em outras legendas da esquerda — a retroescavadeira de Cid Gomes (PDT) foi o símbolo mais forte —, que parecem incapazes de formular uma proposta alternativa e sólida a ponto de voltar a inspirar confiança. Na corrida para 2022, a esquerda já larga algumas posições atrás.
Perto de completar quatro meses solto, Lula mostra a cada manifestação pública que não aprendeu a ser humilde nem na cadeia. Diz que fazer uma autocrítica seria dar munição ao inimigo, como se os processos contra ele, os números da economia e sua surpreendente inabilidade política não tenham sido por si só mais eficazes que qualquer disparo adversário. Suas entrevistas são uma mistura de rancor com pitadas de populismo à esquerda, que desanimam quem esperava ver nele a mesma postura do líder que em 2002 uniu classes e conseguiu fazer um pacto contra a desigualdade social.
Não aceita que outras siglas, a exemplo do PDT e do PSB, não se engajem na causa. Perguntado outro dia se toparia fazer como Cristina Kirchner e disputar a Presidência como vice de outro candidato, em nome de uma vitória, só riu.
Enquanto o partido segue centrado em seu líder máximo, a condução da escolha dos candidatos a prefeito vai mal. Apesar dos esforços de Lula, Fernando Haddad não quer ser candidato em São Paulo, porque sabe que, ganhando ou perdendo, deixaria a corrida presidencial. As outras opções para a cidade perigam relegar ao partido um quarto ou quinto lugar na disputa.
A capital — única das regiões Sul e Sudeste em que o PT, se o candidato for Haddad, tem força para ir para o segundo turno — ou não terá candidato ou terá somente para ocupar espaço, sem chance concreta. Nas demais praças expressivas, o quadro não é muito diferente. Em Recife, por exemplo, Lula segue usando a possibilidade de uma candidatura de Marília Arraes, prima de Eduardo Campos, para pressionar o PSB. Em troca de o PT apoiar a candidatura de João Campos, filho de Eduardo, a prefeito da capital pernambucana, o PSB teria de fazer o paulista Márcio França apoiar o partido na disputa pela prefeitura de São Paulo. Mas o diretório de Pernambuco não tem essa força, e há o risco de o PSB ir sem o PT, que ficaria isolado em uma das principais capitais nordestinas.
No Congresso, o partido também segue errando. Está prestes a passar a perna no PDT para tentar manter o domínio da liderança da minoria na Câmara, como foi em 2019, quando Jandira Feghali foi a líder e manteve boa parte dos nomeados do PT. Pelo acordo feito no ano passado, desta vez seria o PDT. O mais grave, entretanto, vem ocorrendo na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News.
O partido não tem se concentrado na investigação sobre os disparos maciços e ilegais de mensagens na campanha de 2018, mas sim no jogo político. Tentam convocar, por exemplo, o secretário de Comunicação de Bolsonaro, Fabio Wajngarten, por causa de outro escândalo que nada tem a ver com o objeto da CPMI. Em depoimentos importantes, seus parlamentares não têm tido o preparo mínimo. Quando as sessões são deliberativas e há o risco de que sejam votados requerimentos convocando Lula e Dilma Rousseff — o que, de fato, não tem cabimento diante do tema da CPMI — eles simplesmente faltam, para que não haja quorum. E assim nada avança.
O uso de desinformação e a incitação ao ódio, aliás, têm sido uma estratégia que só faz igualar parte da esquerda à direita extremista. Recentemente, ao falar para o UOL, Lula concordou com os ataques de Jair Bolsonaro a jornalistas, deturpando fatos da cobertura política e, bem ao gosto dos populistas, evocando o nazismo para se referir ao trabalho de um veículo jornalístico.
Em outro partido, o PCdoB, Orlando Silva, deputado federal e pré-candidato à prefeitura de São Paulo, compartilhou no domingo 16 um vídeo de 2017, em que Bolsonaro era vaiado, como se fosse daquele dia, no Estádio Mané Garrincha, em Brasília. Alertado sobre as imagens serem antigas, ignorou e só foi apagá-las uma semana depois, sem retratação. Já havia centenas de compartilhamentos.
Não é só nessa seara que outras siglas da esquerda têm tido movimentos erráticos. No ano em que completa 15 anos de registro definitivo na Justiça Eleitoral, o PSOL, nascido de uma costela do PT, parece estar voltando ao corpo original. Colou sua atuação na do partido que lhe deu origem e perdeu a criticidade sobre os erros do governo petista, que combateu durante todos os anos de Lula e Dilma Rousseff. O ex-presidente se tornou vítima e a Lava Jato não passou de um arroubo jurídico para dizimar a legenda. No Rio de Janeiro, Benedita da Silva, descrita até outro dia por psolistas como uma das maiores entusiastas do “Partido da Boquinha”, como a legenda é chamada por seus críticos no estado, será vice de Marcelo Freixo.
O PSB vai tentando construir um caminho próprio para 2022, ainda na expectativa de que Joaquim Barbosa ou outro outsider tope disputar pelo partido. Entretanto, à medida que não consegue, a legenda de Miguel Arraes vem aos poucos perdendo densidade e voltando ao tamanho que tinha antes de Eduardo Campos, um conjunto de agremiações regionais, sem alavancagem nacional.
Na semana que começa no domingo 1º, os partidos de esquerda vão se reunir em Brasília para debater um eventual caminho que possa punir ou ao menos constranger Jair Bolsonaro por ter compartilhado um vídeo convocando protestos contra o Congresso. Vai ser difícil conseguir algo mais forte além de mais alguns repúdios públicos. Quatro anos depois de o PT deixar o poder, a esquerda, tragada pelos erros do partido, ainda não fez o dever de casa para voltar a ter a voz de outros tempos.
Revista Época/28 de fevereiro de 2020

Samba da cartilha (Fernando Schüler)

O Cacique de Ramos teve que se explicar. O bloco desfila com fantasias de índio desde 1960, mas agora a coisa complicou. “Os pioneiros do bloco tinham nomes indígenas e eram ligados à umbanda.” Não entendi a relação com a umbanda. Possivelmente era um salvo-conduto.
Alessandra Negrini também não escapou. Teve que se explicar e se saiu bastante bem. “A luta indígena é de todos nós, por isso tive a ousadia de me vestir assim.” Bingo. Em vez de pedir desculpas, um pouco de retórica política. Contra-ataque perfeito.
Curiosa essa invasão da retórica politica sobre a indisciplina e a irreverência que sempre marcou (ao menos é isso que imaginávamos), nosso Carnaval. Não se trata da sátira política (sempre bem-vinda, aliás), mas o seu contrário: o disciplinamento da sátira pela correção política.
O melhor disso foi a cartilha editada por um conselho da Prefeitura de Belo Horizonte com orientações sobre o que os foliões deveriam evitar. Fantasias de índio, enfermeira sexy, a marchinha clássica de Lamartine Babo, touca com tranças, homem vestido de mulher. Esse último item com um requinte: nem de “noiva”.
Talvez tenha sido nosso primeiro Carnaval de cartilha, mas presumo que seja o primeiro de muitos.
Nessas coisas todas, o que me surpreende é o excesso de convicção. A certeza de que alguém tem o direito de mandar na vida dos outros. Antônio Risério chamou isso de “fascismo identitário” em seu livro recente. Fascismo, aqui, é o culto do dogma, a negação do diálogo, a sede de controle. Se o termo é adequado cada um pode julgar.
Vai aí uma marca do nosso tempo: a hiperpolitização do cotidiano. Jonathan Haidt trata do tema em seu “The Coddling of the American Mind”. A vigilância coletiva nos campi universitários, os safe spaces, a supressão da divergência e proteção a qualquer coisa que caiba sob o rótulo de ofensivo.
Parece evidente que as redes sociais têm muito a ver com isso. A conexão digital fez com que, subitamente, passássemos a viver juntos. Da multiplicidade que marca as grandes sociedades abertas, passamos a funcionar como uma comunidade. Comunidade de bisbilhoteiros e “reguladores da vida dos outros”, como escutei de um amigo professor tempos atrás.
Sobre a atual histeria identitária, Risério toca na questão central: como é possível que movimentos que iniciaram “como luta pelo reconhecimento do outro tenham terminado como uma luta que rejeita o outro, a diferença, a outridade”?
Não vejo resposta simples a essa pergunta. Mas ela deve ser feita. De um movimento múltiplo e generoso, afirmativo de direitos, migramos a uma guerra mesquinha pelo disciplinamento do humor, pela correção da literatura, supressão de marchinhas, regulação de fantasias e festas populares.
Talvez tudo tenha saído um pouco de controle quando as guerras culturais invadiram o mundo da política e qualquer alegação de fragilidade tenha se tornado um caminho fácil para a virtude. Tudo feito à moda banal da radicalização e do exagero que marca a democracia atual.
Há muitos riscos aí. Um deles é a descredibilização dos temas de fato pertinentes à exclusão e o preconceito. Submeter a luta antirracista ao julgamento seletivo e à politização barata é perder de vista a seriedade dos temas que ela de fato envolve no dia a dia.
Há um elemento político: só quem tem ganhado, com a histeria identitária, é um certo direitismo conservador que declara guerra ao politicamente correto e passa a ser visto, por irônico que pareça, como libertador. Há muitos bons trabalhos de sociologia mostrando isso, infelizmente não aqui pelos trópicos.
No mais, arriscamos terminar convertendo o país da transgressão e da antropofagia em uma nação puritana. Depois do ódio político, a chatice cultural. Acabaríamos cantando hinos gospel no Carnaval.
Nesse dia bateria uma saudade, não tenho dúvidas, de algumas velhas marchinhas que deixamos para trás.
Folha de S. Paulo/27 de fevereiro de 2020

quarta-feira, 4 de março de 2020

O gabinete fardado (Marco Aurélio Nogueira)

E eis que, sem maior alvoroço, os militares voltaram a ter importante peso político no Brasil. Passaram a dominar o Palácio do Planalto, onde fica o presidente, ele também um ex-militar. Vários generais e um almirante ocupam da Casa Civil à Vice-Presidência da República.
O gabinete fardado está sendo analisado como um freio ao extremismo histriônico da ala ideológica do governo, formatada pelo olavismo. O fato poderia ser visto como uma oportunidade para que se imprima um novo estilo de atuação ao governo, reduzindo seu sectarismo e sua visão obnubilada da realidade. Um estilo mais frio não daria trela às baixarias dos ideólogos.
Nessa avaliação, o novo gabinete poderia funcionar como um freio de arrumação, que acomodaria as melancias que o governo deixa chacoalhar na carroceria. Ajudaria a reduzir o destempero presidencial. Formar-se-ia um colegiado decisório que, apoiado na hierarquia militar e na cultura da caserna, faria um contraponto às manifestações bélicas do bolsonarismo. Afinal, em tempos de paz é mais importante saber guardar e reforçar posições do que atacar, sobretudo se os inimigos são imaginários.
Tudo isso a se ver. Antes de tudo será preciso descobrir se os oficiais têm um plano para recuperar a imagem do governo, se atuarão como fator de equilíbrio ou se darão um cheque em branco ao presidente Jair Bolsonaro, estimulando suas intervenções desqualificadas. Aconteceu algo assim com o general Heleno, no início visto como “moderador”, mas que logo se revelou um ativista do bolsonarismo, um “incendiário”.
A Casa Civil está com o general Braga Netto, militar experiente. Órgão estratégico, dele depende a coordenação governamental e a organização de um ambiente favorável no Congresso. Militares são, como todos os cidadãos, seres políticos qualificados para pensar o Estado, a comunidade política. Fazem isso, porém, com uma sólida ideia de lealdade e uma forte carga corporativa, que os impulsiona a verem a si próprios como diferentes dos demais e com interesses que precisariam ser defendidos a ferro e fogo. São treinados para “desconfiar” dos políticos, não para fazer política.
Se não tiver jogo de cintura, um general na Casa Civil pode dificultar ainda mais as relações entre o Executivo e o Legislativo. Pode, também, aprofundar a inserção das Forças Armadas no governo, com o risco de que terminem por trocar o perfil técnico e a missão institucional de proteger o Estado pela gestão dos negócios governamentais e pelos conflitos políticos a eles inerentes. Militares num governo autoritário, como é o de Bolsonaro, não beneficiam a imagem de isenção democrática das Forças Armadas. É algo que as lança no olho do furacão, ainda que sejam apenas alguns oficiais a assumir o encargo.
Um governo com uma ala militar ativa pode transitar em campo minado. Como observou o sociólogo Rodrigo Prando, em caso de rompimento com os militares o governo poderia ver-se numa crise de desfecho imprevisível. Militares sabem ocupar territórios, mas não necessariamente estão preparados para dialogar, mover-se entre ideias plurais e pressões típicas do mundo político.
No Brasil as Forças Armadas são vistas como patrióticas, disciplinadas e “desinteressadas”. Mas carregam o fardo do golpismo e do autoritarismo. Acreditam que os militares existem para salvar o País. É provável que os oficiais mais jovens não compartilhem esse fardo. A caserna, porém, é mais ampla. Seja como for, já estão dadas as condições para que as Forças Armadas contenham os seus impulsos históricos e atuem democraticamente.
A presença militar tenderá a incentivar uma postura focada em resultados estruturais, alheios ao jogo eleitoral. É onde repousa o risco de atrito com a política. Também terá de se haver com as resistências do núcleo civil do governo. A “militarização” coincide com o comportamento autoritário e debochado do presidente, com seu familismo exacerbado. É difícil imaginar que Bolsonaro adote uma conduta mais digna e educada, mais criteriosa com as políticas estratégicas e os interesses nacionais. A questão não é de espaço e poder de pressão, mas de biografia, estilo e modo de pensar.
Deveria ser constrangedor, para a ética militar, que as grosserias, ofensas e aberrações do presidente estejam a ser cometidas nas barbas dos oficiais que integram o núcleo principal do governo. Militares costumam ser discretos, falam pouco, cuidam da linguagem. Não deveriam lavar as mãos diante dos descalabros que jogam a Presidência da República num poço sujo e sem fundo.
O gabinete fardado dará força à tecnocracia? Vai depender, também, da capacidade que tiverem os políticos de equilibrar a balança. O Congresso tem contrastado a falta de iniciativa do Executivo no que tange às reformas e à formulação de políticas públicas. Se calibrar bem a sua atuação e reunir as forças democráticas de oposição, o Congresso poderá ajudar a que se organize uma agenda nacional e se modifique a orientação de uma população que acredita que a saída está fora da política e longe do Parlamento.
O Estado de S.Paulo/ 22 de fevereiro de 2020