quinta-feira, 29 de setembro de 2016

A Revanche de Chaucey. Ou a chantagem historiografica dos intelectuais brasileiros de esquerda (José Roberto Bonifácio)

É bastante conhecida aos estudiosos da sociologia do conhecimento a maneira como o fracasso individual gera insegurança existencial, a qual induz prontidão a engajar-se em movimentos politicos que gera aderência a ideologias inconformistas, o que retroalimenta a espiral do fracasso...
Fenômeno mundial da modernidade, assim ocorre à sociedade global mais abrangente e seus individuos desgarrados e desenraizados. O mesmo ocorre a determinados segmentos sociais que habitam meios mais ou menos estáveis e sólidos. A intelectualidade não foge a esta regra.
Muitos intelectuais brasileiros se comportam como aquele infeliz personagem do filme Knight's Tale (Coração de Cavaleiro no Brasil e em Portugal, 2001) - uma adaptação dos The Canterbury Tales (Os Contos de Cantuária), com tons post-modernistas - que dá vida (em versão parodiada e anacrônica) ao escritor inglês pré-renascentista Geoffrey Chaucer.
Viciado em jogatina a ponto de apostar as proprias vestes e perde-las na obsessao de recuperar-se, o Chaucey cinematografico sempre jura vingança aos que o depenaram, ameaçando descrevê-los das piores maneiras possiveis em suas brilhantes e eloquentes narrativas. Ao faze-lo jogava a ultima “carta” de que dispõe, põe em questão seu ultimo ativo ou riqueza, seu saber. Um recurso que, historicamente, era detido por poucos naquele contexto social. Logo a ameaça era perfeitamente crível e séria.
Ora, bem sabem os que lêem, digamos, Marx e Keynes que homens não fazem a historia do jeito que querem e que não se importam com o longo prazo. Muito pelo contrario, não temem retaliações de forças pessoais ou impessoais a menos que estas se possam consumar em seu mesmo tempo de vida biológico ou de sua descendência (talvez nem desta...).
Parodiar, caricaturar, rotular, taxar, todavia, são expedientes retóricos da politica que sempre estiveram presentes e foram relevantes, desde os antigos até os modernos. A recordar as descrições pouco elogiosas de um orador como Cícero a respeito de Cesar, ou a dos escritores cristãos a respeito de Nero, seu algoz.
Isto a que antes demos o nome de “narrativismo” ou historia caricatural não era uma estratégia sistemática ou central de denegrimento de adversários, mas simples exercício de oratória sem ambições que não a persuasão da audiência para objetivos do presente.
Pois os modernos reinventaram o “narrativismo” e o adaptaram às suas mesmas batalhas políticas visando objetivos não do presente, do curto, médio e longo prazos, contudo ainda dentro do horizonte biológico mesmo de seus protagonistas e antagonistas. A emergência dos meios de comunicação de massa, uma inovação tecnológica, talvez seja o divisor de água entre as duas eras, oferecendo aos narrativistas a chance e a aspiração de difundir e perenizar seus discursos com maior êxito e amplitude. E assim o fazem.
Ainda assim o revanchismo chauceyano não se delineava até há pouco tempo, em muitos lugares e momentos. Embora não se possa dizer tratar-se de uma jaboticaba ou invento especificamente brasileiro (haja vista o que ocorre em países como os EUA e a Russia, onde os adversários do partido no poder são retratados cruelmente e sem pudores), o “narrativismo” aparentemente triunfou no Brasil há muitas décadas e não nos abandonará tão cedo. Desde a Proclamação da República até a Revolução de 1930, desde golpe de 1964 até a redemocratização, e além, os heróis e vilões tem se alternado e se parodiado mutuamente.
Bem verdade é que as elites ou classes politicas de cada periodo hegemônico nem sempre lograram transmitir uma imagem positiva de si mesma aos pósteros, haja vista o ocorrido aos que sustentaram o Império e depois à jovem republica “de coronéis”, como também ao varguismo, em diversas encarnações, e sua também variada nêmesis.
Ora, se pudermos enumerar duma maneira sintética porem não exaustiva as condições de "sucesso" do narrativismo enquanto estratégia de vingança, digo, de "justiça histórica", seriam as seguintes:
1- Um contexto histórico futuro (30,40 anos) em que a universidade brasileira, especialmente a area de Humanidades, seja dominada integralmente por correntes de esquerda necessariamente lulopetistas, ainda mais do que tem sido em décadas passadas;
2- Um contexto futuro “neomedieval” em que a Idade Média Digital (Digital Dark Ages) tenha atingido seletivamente os formadores de opinião, apagando ou inacessibilizando escritos e material audiovisual daqueles que argumentam no presente a favor do impeachment;
3- Um contexto futuro onde o PT não tenha feito seu processo de "deslulização" à maneira como Nikita Kruschev denunciou os crimes de Stalin em seu famoso “Discurso Secreto” no XX Congresso do Partido Comunista da URSS em 1956;
4- Um contexto futuro "revisionista" em que a sociedade brasileira continue enviesada ideologicamente pelas visões revisionistas que veem 1964 como um "golpe" e o assimilam a 2016, mas olvidem do golpe civil ocorrido em 1992 contra Fernando Collor de Mello;
5- Um momento de retorno ao poder a médio prazo, reabilitando as figuras de Lula e Dilma junto à opinião pública, pacificando a sociedade e desacreditando partidos, lideranças e instituições de controle interno e externo do Estado brasileiro que cooperaram entre si para o desfecho do impeachment.
Porquanto não necessariamente exclusivas entre si ou exaustivas quanto ao conjunto potencialmente infinito de alternativas históricas tais condições são extremamente dificeis de se sustentarem ou mesmo de emergirem a médio e longo prazo.
A recordar, segundo um artigo ulterior, que o Petismo e seus intelectuais tem errado sistematicamente suas previsões, a começar por aquelas que davam conta de que sua experiência de poder no Brasil teria a longevidade ora da socialdemocracia sueca (30 anos) ora do PRI mexicano (70 anos).
Se as condicionaldades 1 e 2 não soam verossímeis, a 5 nos parecem (neste momento) bastante remota senão impossivel ao passo em que as 3 e 4 tem sua efetivação dependente de evoluções ideológicas já em curso dentro dos campos da esquerda e da direita, porem com distintas chances de sucesso e de repercussão social. Como facilmente se nota todas as condicionalidades fazem referencia ao contraditório e à polifonia de vozes e discursos, ou mais propriamente ao Principio da Isegoria (igualdade de vozes ou de discursos), que era algo estranho aos medievos ainda que não aos antigos.
Por ora o que conseguiram inadvertidamente foi despertar o interesse de internautas e formadores de opinião de direita e centro-direita pela reavaliação ou reinterpretação históricas, duma maneira que fez o “narrativismo” ou história caricatural generalizar-se, difundir-se e enraizar-se no imaginário político.
Erros de cálculo e de avaliação à parte, o exagero retórico é até certo ponto perdoável e compreensível. Compõem aquilo que poderíamos chamar de Síndrome de Chaucey. Não uma disfunção cognitiva ou moral do real autor dos The Canterbury Tales, mas de seu equivalente hollywoodiano.
Vivenciamos o ápice da obsessão pela "micro narrativa" e pelos enredos que a dinamizam, bem como pela gloria ou desventura dos personagens que se intenta parodiar. O que antes fora uma rendição da grande imprensa tradicional ao lulismo na esteira das sucessivas vitorias presidenciais agora é exclusividade dos blogs de certa orientação ideológica. Dum modo simetricamente oposto, a representação coletiva do ex-presidente da República tem oscilado do caricatural ou anedótico ao sóbrio e equilibrado.
Reconhecidamente identificar Lula com o personagem cavalheiresco do finado ator Heath Ledger certamente tem sido um empreendimento febril de muitos blogueiros e acadêmicos brasileiros. Pululam em toda a parte analogias entre o embate do ex-presidente brasileiro com o “Principe dos Sociologos” (FHC), de um lado, e os torneios de justas em meio à Guerra dos Cem Anos, de outro. O “narrativismo” tem retaliado e feito suas vítimas aqui, tanto de um lado quanto do outro, a depender da repercussão do meio midiático que veicula a mensagem e dos que se dispõem a servir de audiência.
Chaucey tinha uma diferença crucial em relação ao intelectual brasileiro padrão da atualidade: se este vivencia uma realidade apartada da economia de mercado e suas vicissitudes aquele se achava sempre exposto aos altos e baixos da vida, sem perder sua propensidade a correr riscos.
Nem por isto o intelectual brasileiro deixa de experimentar frustrações e ansiedade. Seu sentimento de privação relativa tende a ser mais agudo que o estado de privação absoluta em que o Chaucey hollywoodiano é retratado.
O que os une é justamente a posse dum unico e crucial ativo, o saber literário, em meio a uma sociedade onde o dominio do vernáculo e das ciências é privilégio de poucos. Se o intelectual brasileiro não chega a apostar suas vestes in extremis, aposta constantemente sua reputação por causas politicas que tem afinidade íntima com a indigencia existencial e moral. Investe reiteradamente em prol de objetivos sem sentido que não os que ele mesmo atribui. Sistemáticamente trava batalhas quixotescas e ao perde-las entrega-se à ameaças tragicomicas, invocando a "justiça histórica" contra seus oponentes. O que dá na mesma.
Por fim, a revanche de Chaucey se consuma, entre os intelectuais brasileiros sem produzir quaisquer mudanças no jogo político. Nenhum ator do presente se deixa intimidar. Excepto por um discurso ou outro contra a pecha de “golpista” o cotidiano segue normal e planos são traçados sem maiores problemas ou complicadores que não aqueles ocasionados pela complexa macroeconomia ou pelas revelações bombásticas da Lava Jato.
Se o atual presidente confessou ter se deixado incomodar pela caricatura dos seus procedimentos e ações (ocultas ou manifestas), ou se o candidato oposicionista derrotado em 2014 visivelmente franziu o cenho ao ser rotulado no discurso final de Dilma ao senado tais atitudes não produziram nenhuma mudança no estado de coisas em curso ou no desfecho do impeachment em consumação. As reiteradas alusões a um suposto “estado de exceção” ou a uma “ditadura” sucumbem imediatamente à constatação de que o PT segue disputando eleições e que se coliga a seu algoz “golpista” ou PMDB em ao menos um décimo dos municípios brasileiros. Ao contrário, como se viu, o “narrativismo” contaminou a centro-direita e a direita, como também a centro-esquerda e a esquerda não-lulistas, no sentido de se reavaliar o papel histórico do PT e de seu quixotesco líder maior.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

A cadeira de Temer (Marcos Nobre)

A decisão sobre o financiamento empresarial de campanhas foi um dos episódios decisivos na tramitação da reforma eleitoral de 2015. O projeto original patrocinado por Eduardo Cunha previa financiamento empresarial a candidatos e a partidos, com estabelecimento de um teto de valor monetário fixo. Derrotado na votação, Cunha se saiu com uma gambiarra constitucional típica dos tempos atuais para, menos de 48 horas depois, aprovar o dispositivo, só que restrito desta feita a doações de empresas a partidos. Muito pouca gente se lembra que a emenda-gambiarra foi de autoria de Celso Russomano. A característica de montanha-russa do processo incluiu a rejeição do financiamento empresarial pelo Senado em 3 de setembro de 2015, sua restauração pela Câmara em 9 de setembro e o veto presidencial de Dilma Rousseff em 29 de setembro, 12 dias depois da decisão do STF contrária ao princípio. Entender todas essas idas e vindas está longe de ser simples. Mas a sua lógica profunda explica muito do que está acontecendo nessas eleições. E, sobretudo, permite projetar qual será o significado do seu resultado para o futuro do governo Temer. Para começar, é importante lembrar que o orçamento de 2015 não foi aprovado no ano anterior, mas apenas em março do próprio ano de referência. A previsão para o fundo partidário na proposta inicial tinha sido de 289 milhões de reais. O relator do orçamento, senador Romero Jucá, arredondou o valor para 867 milhões. O triplo do valor inicial, simplesmente. O dado importa aqui não apenas pelo papel primordial que os recursos do fundo partidário têm desempenhado na eleição municipal. Só ao final será possível saber o seu peso efetivo. Mas as indicações de que se dispõe atualmente mostram que sua participação na contabilidade oficial pode chegar a algo como a metade de todos os recursos financeiros de campanha. O aumento do fundo partidário em 2015 importa sobretudo porque permite entender dois dos aspectos centrais que estavam em jogo no embate do financiamento de campanha. O primeiro aspecto diz diretamente respeito à situação da Câmara dos Deputados. O projeto original de Eduardo Cunha pretendia ser uma conciliação entre o alto e o baixo clero, entre as cúpulas congressuais e a massa desconhecida de deputados que deram a Cunha a presidência da Câmara. As cúpulas controlam as doações feitas aos partidos e o próprio fundo partidário. Cunha tinha parte do controle do fundo partidário do PMDB em seu Estado, o Rio de Janeiro. Mas, fundamentalmente, tinha se tornado um intermediário entre financiadores empresariais e deputados dos mais variados partidos excluídos dos arranjos de cúpula. Deputados do baixo clero conseguiam cargos no governo e algum recurso de emendas parlamentares, o que lhes dava vantagem em relação a desafiantes que tentavam lhes tirar os mandatos. Mas essa vantagem era muito pequena quando comparada aos parlamentares do alto clero, com acesso direto a grandes financiadores e ao fundo partidário. Cunha se colocou em posição de corrigir o desequilíbrio, suprindo os deputados com o financiamento e com a estratégia que lhes eram negados pelas cúpulas partidárias. Objetivamente, a proibição do financiamento empresarial a candidatos significou um reforço à posição das cúpulas partidárias, em um momento em que o baixo clero já tinha sido elevado à categoria de Centrão e desafiava abertamente o poder do alto clero. Restaurar pelo menos o financiamento empresarial a partidos significava para muita gente do baixo clero tentar remediar a grande derrota, uma tentativa de usar sua organização para exigir uma divisão menos desequilibrada do fundo partidário. Mas nem mesmo isso vingou. Quando Michel Temer fala em "desidratar essa coisa de Centrão", ele não se refere a preferências pessoais por tal ou qual deputado. Seu objetivo é apenas o de restaurar o poder das cúpulas partidárias, restabelecer a distinção entre alto e baixo clero congressual. Pela simples razão de que ele não é capaz de coordenar o sistema a não ser por meio de cúpulas partidárias novamente empoderadas. Livrar-se de Eduardo Cunha foi o primeiro passo nessa direção. O segundo passo depende de que o resultado das eleições municipais reflita a restauração da velha hierarquia. Depende de que esse resultado reponha o Centrão em seu lugar de baixo clero. Só que essa expectativa se choca com o segundo aspecto do embate em torno do financiamento de campanha, o da disputa entre Câmara e Senado. Tanto no aumento do fundo partidário no relatório Jucá quanto na proibição do financiamento empresarial, o Senado sinalizou não apenas que pretende tutelar o governo Temer, mas, sobretudo, que dispõe dos meios para tanto. Mesmo diante dessa ameaça, a estratégia de Temer para alcançar a governabilidade parece até agora continuar a se dividir em duas etapas. Pretende primeiro restabelecer a velha hierarquia entre alto e baixo clero na Câmara para só então se entender de fato com quem manda no Senado. Essa estratégia corresponde à sua experiência de ter ocupado por três vezes a presidência da Câmara. E corresponde à experiência de todos os seus colaboradores mais próximos: Eliseu Padilha, Geddel Vieira Lima, Moreira Franco. Mas a prevalência do fundo partidário na atual eleição tem mostrado pelo menos duas coisas de grande relevância e contrárias à estratégia em duas etapas. A primeira é que a cúpula do Senado tem demonstrado bom controle sobre esses recursos decisivos. A segunda é que está se utilizando desses recursos também para, no vácuo deixado por Eduardo Cunha, estender seu poder para a Câmara, tentando montar uma base que possa incluir parlamentares das duas casas do Congresso, sob a liderança do Senado. Nada indica que a insatisfação social vá permitir que Temer sente confortavelmente em sua cadeira em algum momento. Mas, pelo menos do ponto de vista do sistema político, o atual presidente da República só conseguirá sentar com algum sossego em sua cadeira se deixar de confundi-la com a da presidência da Câmara dos Deputados. (*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (26/09/16)

Dois caminhos para a esquerda (Demétrio Magnoli)

A "morte do PT", essa profecia disseminada, não é um exercício de análise política, mas a expressão triunfalista de um desejo autoritário. O PT provavelmente sobreviverá. Contudo, o impeachment de Dilma e as imputações penais a Lula assinalam o ocaso da hegemonia petista sobre a esquerda brasileira. Chega ao fim uma longa era de unificação partidária quase completa das correntes de esquerda. A encruzilhada atual descortina os rumos contrastantes da substituição de hegemonia ou de uma reunificação pluralista. Batizemos o primeiro caminho como "partido-movimento" e o segundo como "Frente Ampla". O PSOL sonha construir-se como "partido-movimento", assumindo a posição hegemônica no campo da esquerda. Suas referências são o Syriza, que chegou ao poder na Grécia em 2015, e o Podemos, que naquele ano atingiu votação similar à do Partido Socialista, disputando o posto de segundo maior partido espanhol. O Syriza tem raízes no Synaspismos (Coalizão da Esquerda Progressista), um movimento de unificação de correntes radicais fundado em 1991. O Podemos nasceu das manifestações contra a austeridade promovidas pelos "Indignados" a partir de 2011. Tanto um como o outro expressaram uma dupla rejeição política: à social-democracia e ao comunismo stalinista. Os intelectuais do PSOL traçam um paralelo esquemático entre o PT e a social-democracia europeia. Na falência do Pasok grego e na decadência do PSOE espanhol, enxergam os funestos indícios do futuro próximo do PT. Assim como a crise do euro abriu a via para a ascensão dos partidos-movimento grego e espanhol, a crise do impeachment propiciaria a troca de hegemonia no Brasil. Anos atrás, um cartaz de Che Guevara adornava a porta do gabinete de Alexis Tsipras, na sede do Syriza, enquanto Pablo Iglesias, o líder do Podemos, cantava as glórias de Hugo Chávez. O PSOL repete os evangelhos do castrismo e do chavismo, mas sua execução musical está atrasada em um compasso. No governo, o Syriza experimentou uma cisão e sua facção majoritária curvou-se à ortodoxia europeia, passando a ocupar o lugar que foi do Pasok. Por seu lado, após o anticlímax das eleições de junho, o Podemos anunciou um giro pragmático à centro-esquerda, borrifando água na chama da rebeldia. O principal arauto do caminho da "Frente Ampla" é Tarso Genro, dirigente da Mensagem ao Partido, ala petista devotada à "refundação" do partido. Seu modelo é a coalizão Frente Amplio, que governa o Uruguai desde 2005, apoia-se na central sindical PIT-CNT e se estende do centro à extrema-esquerda, abrangendo democrata-cristãos, social-democratas, comunistas e tupamaros. Partindo do reconhecimento de que se esgotou a hegemonia do PT sobre a esquerda, a ideia da "mesa progressista" busca a reunificação por meio de um mínimo denominador comum. Cada um na sua, mas todos juntos na hora das eleições —eis o estandarte de Genro. A "Frente Ampla" contempla interesses diversos. De um lado, evita o isolamento de um PT declinante, açoitado pela ventania da desmoralização. De outro, oferece lugares ao sol para a CUT, o MST, o MTST, o PCdoB e a UNE, que já compraram seus bilhetes de ingresso à nau das esquerdas. Mas a estratégia fracassará se não seduzir o PSOL, deixando espaço à ascensão de um "partido-movimento". Os primeiros sinais da tensão entre as estratégias conflitantes aparecem nas campanhas municipais de São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Nesses tempos de delinquência intelectual, o discurso partidário dissimula-se sob o rótulo da ciência política. Mathias de Alencastro reproduziu o clássico ardil dos antigos partidos stalinistas ao acusar o PSOL de fazer o "jogo da direita" nas eleições paulistanas (Folha, 21/9). O intelectual-militante fantasiado de acadêmico exprime o desejo inviável de voltar no tempo, reinstaurando a hegemonia que se estilhaça.
Fonte: Folha de São Paulo (24/09/16)

A esquerda em crise (João Domingos)

Desde que se recompôs da tentativa de aniquilação total por parte da ditadura militar, primeiro em 1980, com a criação do PT, e depois em 1985, já no governo Sarney (1985-1990), com a legalização do PCB e do PCdoB, a centro-esquerda brasileira não vivia um momento tão delicado quanto o de agora. Delicado e de poucas perspectivas.
Em primeiro lugar, porque o PT, alcançado pelo escândalos do mensalão e do petrolão, apurado pela Operação Lava Jato, não tem mais a bandeira da ética para levantar. Foi com ela que o partido se enraizou na sociedade brasileira, tornou-se conhecido, conquistou parte do eleitorado e chegou ao poder. Por lá permaneceu por 13 anos, até sofrer o processo de impeachment.
Sem a possibilidade de fazer a defesa da ética, os petistas tentam, num gesto desesperado, empunhar algumas bandeiras políticas, como as do “Fora, Temer” e das “Diretas-Já”. Mas eles mesmos sabem que são bandeiras que não se sustentam por tempo longo e têm pouco apelo eleitoral.
Em segundo lugar, o momento é delicado e de poucas perspectivas porque a esquerda dita mais moderna, como o PSB e o PPS, enfrentam o dilema do adesismo ao governo Temer. E aderir à política do Palácio do Planalto significa apoiar o arrocho fiscal representado pelo projeto que estabelece um teto de gastos para o poder público, as reformas da Previdência e trabalhista.
No mundo, as esquerdas enfrentam dificuldades de todo tipo, principalmente depois do fim da União Soviética, que fez surgir a chamada crise paradigmática entre elas. Logo em seguida, o Partido Socialista Italiano (PSI) foi pego pela Operação Mãos Limpas. O desgaste foi tão grande que teve até de mudar de nome.
No Brasil, os problemas são especialmente dramáticos porque o PT, num deslize semelhante ao do PSI, afundou-se nas suspeitas de envolvimento em corrupção. Hegemônico entre as esquerdas, o PT comprometeu outras legendas com a imagem ruim que criou para si, pois muitas vezes são todas colocadas no mesmo balaio pelo eleitor, ou pela propaganda da extrema direita.
Quando o PT foi criado, em 1980, o dualismo da força de trabalho versus burguesia capitalista já começava a ficar no passado. Mesmo assim, a nova legenda, idealizada por parte do clero progressista, comunistas arrependidos, intelectuais de esquerda e elite sindical, recebeu o nome de Partido dos Trabalhadores.
Como a maioria esmagadora dos fundadores do PT não abraçava a doutrina comunista da luta de classes, optou-se por um programa mais moderno, sem enfrentamentos, baseado na ética. Como já dito aqui, essa bandeira caiu. Mas o PT tinha ainda uma segunda opção a explorar. Esta de forte apelo eleitoral, a da ajuda aos mais pobres.
Desde o escândalo do mensalão, em 2005, houve uma guinada no discurso do governo petista. Durou até a saída de Dilma Rousseff, no dia 31 de agosto. Trata-se do que se convencionou chamar de “discurso do ódio”. Segundo esse discurso, o governo petista era atacado pelas elites porque fazia distribuição de renda, aumentava os ganhos do trabalhador, dava oportunidade de todos andarem de avião. Esse discurso ainda é usado para justificar o impeachment de Dilma. Mas não passa de um chavão populista.
Por causa da crise que atingiu o PT, alguns líderes importantes do partido, como o ex-governador Tarso Genro e o ex-presidente da Câmara Arlindo Chinaglia, têm trocado ideia com parlamentares de outros partidos, principalmente do PSB, do PPS e da Rede, sobre a possibilidade de criar uma nova legenda. A bandeira da ética seria novamente levantada.
Proposta nova, mesmo, não há. O que é mais um indício de que a esquerda continua em crise e não consegue apontar uma saída para ela mesma.
Fonte: O Estado de S. Paulo (24/09/16)

terça-feira, 27 de setembro de 2016

O golpe e a corrupção (Maria Clara R. M. do Prado)

A palavra golpe entrou na conversa do dia a dia no país. Golpe ou não golpe? Há os que a difundem nas manifestações de rua, nas plataformas digitais ou nas rodas de botequim. São os que repudiam a destituição da ex-presidente Dilma Rousseff, convencidos de que ela foi vítima de uma decisão que afronta à Constituição. Há os que, defensores do afastamento, alimentam a estranha crença de que, proibindo o uso da palavra golpe - como ocorreu durante os Jogos Olímpicos - ou valendo-se da coerção física contra quem a usa, a farão desaparecer da boca dos brasileiros, como em passe de mágica.
Estranha e conflitante crença que, ao defender preceitos constitucionais afetos à substância e ao rito do "impeachment", confronta a própria Constituição que nos artigos 1º, 5º e 220º garante a liberdade de pensamento e de expressão e veda toda e qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística. Além de anticonstitucional, é inócua, pois ao insistir-se em abafar os ecos da expressão golpe, está-se apenas contribuindo para difundi-la ainda mais.
O termo não tem frequentado apenas as conversas corriqueiras dos brasileiros. Está na mídia internacional que, além da expressão golpe, tem associado o Brasil a outra palavra, menos controversa, mas altamente comprometedora, a corrupção. Há uma relação entre elas. Não seria uma tentativa de golpe as artimanhas invocadas sucessivamente na tentativa de evitar a cassação do deputado Eduardo Cunha, envolvido em inúmeros casos indicativos de corrupção, sendo ele mesmo já réu junto ao Supremo Tribunal Federal (STF)?
A corrupção, da forma como foi alastrada no Brasil do século XXI, como se corruptos e corruptores estivessem acima da lei, representa um grande golpe contra os brasileiros que pagam impostos, que seguem à risca os deveres legais e constitucionais, que almejam alcançar uma vida melhor, que esperam educar os filhos, ter saúde, investir, enfim... cidadãos que procuram exercer a sua cidadania e serem respeitados por isso.
É impossível quantificar os valores desviados pela corrupção no Brasil. As estimativas são variáveis. Mesmo na esfera das investigações da Lava-Jato, só se terá uma noção mais clara quando todo o processo tiver terminado. Mas é certo que o desvio de bilhões de reais teve como contrapartida a precariedade dos serviços públicos, em quantidade e em qualidade, a ineficiência e a carência dos investimentos públicos, o desleixo dos políticos com a causa pública, a insegurança e uma sociedade menos inclusiva.
Não se pode entender de outra forma, por exemplo, o fato do Brasil gastar 5,6% do PIB com educação pública (segundo dados da OCDE, referentes a 2012), bem acima da média de 4,7% do PIB entre todos os países membros, sendo o quinto maior orçamento para a educação computado pela organização, e ter resultados tão precários nos exames de matemática e de gramática nos níveis primário e secundário.
É verdade que dentro daqueles gastos com educação pesa substancialmente a verba que a União e os Estados destinam à educação terciária gratuita - nível universitário - para boa parte de alunos com alto poder aquisitivo. Ainda assim, não se justifica que tanto dinheiro alocado resulte em tão baixo padrão educacional nas escolas públicas, a não ser pela prática do desvio.
O mesmo exemplo vale para a saúde, com equipamentos de última geração apodrecendo em hospitais públicos por pura displicência com a população, sem falar no sistema de segurança pública, de transporte e outros tipos de serviço, alguns sob investigação, com fortes indícios de corrupção envolvendo inclusive empresas multinacionais.
Não à toa a classificação do Brasil piorou em 2015 no ranking da percepção da corrupção compilado pela Transparência Internacional. Do nível de 42 a 43 pontos registrado nos anos de 2012, 2013 e 2014, o país caiu no ano passado para 38 pontos. Estava ao lado da Itália, da Grécia e da Bulgária em matéria de corrupção percebida. Agora está na companhia de Burkina Faso, Tunísia, Zâmbia, Índia e Tailândia. Para se ter uma ideia do que isso significa, basta saber que a menor percepção de corrupção cabe à Dinamarca, com 91 pontos em 2015. No fim da lista aparecem a Somália e a Coreia do Norte, com oito pontos cada.
Com altos salários e um generoso esquema de aposentadoria, não deixa de ser um golpe contra a sociedade cada vez que o Executivo e Legislativo se entendem para aumentar ainda mais as regalias e a remuneração dos servidores governamentais, civis e militares, como o caso recente dos ministros do STF. Isso é especialmente grave em anos de recessão e de altos déficits fiscais.
O Brasil tem sido associado à corrupção no âmbito internacional, mas não está sozinho nisso. O FMI, em um trabalho publicado em maio deste ano - "Corruption: Costs and Mitigating Strategies" (Corrupção: Custos e Estratégias para a Redução) - avalia entre US$ 1,5 trilhão e US$ 2 trilhões, cerca de 2% do PIB global, o custo anual da corrupção, apenas na forma de suborno, em países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Segundo a Transparência Internacional, 68% de todos os países no mundo têm um sério problema de corrupção, mas o caso brasileiro deixa a todos espantados pelo tamanho e os valores envolvidos. Pesam a favor os processos como o mensalão, a Lava-Jato e tantos outros que buscam investigar e punir corruptos e corruptores. Em boa hora, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, prorrogou para setembro do ano que vem as investigações do esquema de corrupção na Petrobrás. As expressões golpe e corrupção tendem a conviver em analogia ainda por algum tempo em assuntos relacionados ao Brasil, dentro e fora do país.
Fonte: Valor Econômico (08/09/16)

sábado, 24 de setembro de 2016

O nevoeiro persiste e as bolas de ferro nos pés nos mantêm no mesmo lugar (Luiz Werneck Vianna)

A análise da conjuntura brasileira, acompanhada de um entendimento da história do país, dos elementos constitutivos do Estado brasileiro e das escolhas políticas feitas nos últimos 80 anos, fornecem os subsídios para o sociólogo Luiz Werneck Vianna apresentar alguns diagnósticos sobre o atual momento brasileiro. O primeiro deles, frisa, é o de que a crise não passou após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. O segundo é de que essa crise tem “raízes muito poderosas na história brasileira” tanto à direita, com a sustentação do patrimonialismo e das oligarquias, quanto à esquerda, “pelo seu colossal abismo diante da cena contemporânea”...
Essa constatação leva a uma terceira, a de que a história do Brasil está permeada por uma “estadolatria” que nasceu como oposição ao “capitalismo imperialista dos EUA”, o qual nos “levou a isto que se vê por aí: a perda de distinção entre o público e o privado, como aparece nas políticas exercitadas pelos fundos de pensão. Isso trouxe uma riqueza para quem? Criou uma sociedade mais igual ou desigual?”, questiona. E acrescenta: “O capitalismo de Estado no Brasil nunca esteve interessado no tema da igualdade de oportunidades, mas na expansão da lucratividade, das forças produtivas materiais”, e a consequência é que “hoje somos, sem o menor orgulho, uma das sociedades mais desiguais do mundo”. E adverte: “O nacional-estatismo já deu o que tinha que dar”.
O quarto diagnóstico é de que, apesar dos protestos que pedem a saída do presidente Michel Temer, não se propõe uma “alternativa moderna” para o país. “Se sai o Temer, põe quem no lugar dele? A volta de Dilma e do nacional-desenvolvimentismo recessivo e anacrônico que nos trouxe ao longo do exercício do seu mandato nos leva aonde? (...) Qual é a alternativa moderna que está se pondo para a sociedade brasileira? Não se tem nada à vista”. “O movimento saudável”, argumenta, “seria procurar, nesses dois anos, caminhos, alternativas a partir de conflitos, e lá por 2018 apresentarmos à sociedade projetos consistentes, mas isso não é o que se pratica”. Ao contrário, lamenta, “os corações estão desconectados da cabeça; estão batendo ao ritmo do passado e não querem bater ao ritmo da hora presente e da hora futura”.
Para ele, se há uma alternativa para sair da crise e modernizar o país, “nós não a tentamos”. E a esquerda, que “classicamente”, “desde Marx”, busca a “autonomia, a criação de novas instituições estatais a partir de baixo” e tem a “utopia” da “remoção do Estado”, “num passe de mágica” se tornou “estatizada” e “isso foi uma abdicação”, de tal modo que hoje o “país tem medo de andar para frente, de romper com as suas tradições mais fundas, e a tradição mais funda que temos aqui é a de Estado”, critica. Romper com o Estado, explica, não significa apostar apenas no livre mercado, mas defender a ideia de que o Estado “não pode ocupar esse papel determinante e monopólico”.
Sobre uma possível Reforma Trabalhista que será iniciada no governo Temer, Werneck disse que as notícias sobre o tema ainda estão na “região dos boatos”, mas foi categórico ao afirmar que neste momento de crise o trabalhador tem que garantir a “sua empregabilidade”, e para isso “trabalhadores e empresários precisam encontrar formas de negociação”.
Ele pontuou ainda que “é consensual a necessidade de um ajuste fiscal”, e entre as questões a serem respondidas neste momento, estão: “Vale ou não vale ampliar o mercado de trabalho? Vale ou não vale ampliar a logística e a malha de ferrovias ou hidrovias? Dispomos de recursos para isso ou não? É o Estado que deve satisfazer a essas necessidades? Mas o Estado está falido. (...) Como vamos conseguir recursos para enfrentar a tarefa mais nobre que este país requer, que é a da educação?” E responde: “A saída nós temos que ir tateando na parede, procurando onde ela está. Não vai ser agarrados às velhas opiniões que vamos encontrá-las. (...) Diria que apostar na livre associação é um belo remédio. É claro que sozinho isso não leva a nada; é preciso uma orientação política, a qual, dirigida para o Estado, é sua democratização”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Recentemente o senhor publicou um artigo afirmando que o “denso nevoeiro” começa “a desanuviar”. Como está vendo este momento político do país, pós-impeachment? Ainda há nevoeiro?
Werneck Vianna – É errado dizer que a crise passou. Ela é muito profunda e suas causas têm raízes muito poderosas na história brasileira, à direita e à esquerda. À direita com o patrimonialismo que persiste, com a preservação de estruturas oligárquicas que ainda detêm algumas rédeas políticas no país. À esquerda, pelo seu colossal abismo diante da cena contemporânea. A esquerda brasileira não nasceu com o feitio, o perfil, com as concepções de mundo que hoje ela porta; ela nasceu do mundo sindical.
A fundação do Partido Comunista é de 1922. Ele foi instituído como um partido operário voltado para as questões do mundo do trabalho e com uma agenda muito determinada no sentido de produzir uma legislação social que ampara o trabalhador e de institucionalização da vida sindical até então à margem da lei, em nome do princípio da Carta Constitucional de 1891, a primeira Carta republicana, que dizia que nada podia obstar a liberdade no mercado de trabalho; a ação sindical obstaria e, nesse sentido, aos sindicatos deveria ser recusada a vida institucional e legal.
Como se sabe, a Revolução de 1930 é resultado de uma combinação muito heterogênea de forças políticas e sociais. Esses são tempos em que o país se modernizou profundamente quando ali se iniciou o grande movimento migratório no sentido Norte-Sul, que alterou significativamente o mundo da política e o mundo social, ele próprio. Nessa circunstância de retorno à centralização política e administrativa que, a partir da Revolução de 30, se sedimenta cada vez mais entre nós, uma série de instituições foram criadas e as velhas inquietações e demandas do movimento sindical dos anos 20 foram incorporadas via uma progressiva legislação sindical e trabalhista que faz da esquerda - que era uma esquerda operária - uma região da política que passou a atuar sob a vigilância e, em alguns casos e mais à frente, tutelada pelo Estado.
Essa esquerda, que era autonomista quanto ao Estado, saiu de cena e ameaçou voltar com a redemocratização de 1945 e a partir da Constituição de 1946. O autonomismo foi uma marca dos movimentos sindicais e operários no começo dos anos 1950, à época do Manifesto de Agosto do Partido Comunista, que era orientado para uma política de classe contra classe. A partir de 1953, no entanto, se inicia uma virada do mundo sindical e operário no sentido de se encontrar com a estrutura corporativa sindical, e com isso os sindicatos e os movimentos operários aderem às estruturas deixadas pelo Estado Novo de Vargas, de 1937.
• A velha tradição brasileira com a qual o Brasil nasceu, a da prevalência do Estado sobre a sociedade, foi ao seu ápice: criou-se aqui uma “estadolatria”
Mas não estávamos nem éramos uma ilha perdida no mundo. Lá fora o ambiente dos anos do pós-guerra logo se definiu por uma polarização entre a União Soviética de um lado e o mundo capitalista de outro, no período da chamada Guerra Fria. Então, como a Guerra Fria era vista como uma disputa entre a União Soviética e os EUA – potência hegemônica do mundo capitalista -, essa circunstância internacional favoreceu a que o tema do Estado e a emancipação do Estado, a denúncia do imperialismo americano em particular, fosse cada vez mais definida.
Na esteira dessa política, o processo de modernização burguesa que o país vivia desde os anos 30, capitaneado pelo Estado – não se pode entender Volta Redonda, nem a montagem da infraestrutura industrial, ou a industrialização que veio depois, sem a ação interventora e indutora do Estado -, era visto como naturalmente oposto ao capitalismo, ao imperialismo, particularmente o americano. Nesse sentido, a velha tradição brasileira com a qual o Brasil nasceu, a da prevalência do Estado sobre a sociedade, foi ao seu ápice: criou-se aqui uma “estadolatria”, inclusive, com um sindicalismo potente e ligado às empresas estatais e não às empresas de mercado. O sindicalismo da Petrobras de Volta Redonda, das estatais em geral, dos estaleiros, era um sindicalismo dominado pelos comunistas e, quando não dominado, sob forte influência deles e frequentemente em aliança com os setores do PTB.
Com isso, o sindicato e o sindicalismo em geral passaram a orbitar no interior do Estado. Ao lado disso, a modernização do parque industrial gerou uma nova categoria e uma nova fundação do movimento sindical e operário, particularmente no ABC, de onde provirá o Lula e posteriormente o PT, que são claramente contra – dito e proclamado – a consolidação das leis do trabalho, que seria o AI-5 do trabalhador. Isso foi dito pelo ex-presidente Lula numa manifestação pública e está registrado em vários lugares. Para o PT, o movimento sindical deveria seguir uma linha de autonomia em relação ao Estado e às suas instituições, e o lugar do movimento sindical seria o da disputa direta no mercado, na sociedade, entre capital e trabalho. Vale dizer, é como se tivéssemos voltado aos anos 20, época da fundação do Partido Comunista Brasileiro.
Esse movimento de retorno à autonomia dos trabalhadores, que é dos anos 70, e de exercício do sindicalismo petista na região do ABC, teve um enorme fastígio, através do qual esse movimento conseguiu superar os limites do mundo operário e sindical e se tornar cada vez mais influente na vida social. Com que agenda conseguiram isso? Uma agenda de autonomia, de confronto de classe contra classe no mundo do trabalho, de conquista de direitos extraídos a partir de greves e não de outorgas advindas do Estado. Isso levou a que uma grande franja da intelectualidade viesse a se solidarizar e apoiar o PT.
Cito alguns dos grandes intelectuais que fizeram esse movimento em função dessa nova agenda: Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, entre tantos outros, dando uma legitimidade imensa a esse movimento social que logo se constituiria em partido político. Essa agenda fez também com que setores progressistas da igreja católica viessem a legitimar a emergência desse novo ator da sociedade brasileira, isto é, de um partido com extração do movimento sindical dos trabalhadores em geral.
O movimento sindical e operário também não está solto no mundo. Na medida em que esse partido novo ingressa no mundo da política e começa a competir em eleições, principalmente na sucessão presidencial, ele se vê diante da seguinte alternativa: ou seguir fiel a si mesmo, à sua origem, que é fundamentalmente ligada à sociedade civil e não ao Estado, tentando adquirir ao longo do tempo mais musculatura política, sem privilegiar o objetivo da imediata conquista pela via eleitoral, ou fazer o jogo e se integrar ao jogo da política tradicional. Como se sabe, aos poucos quase sem sentir, esse partido tão alvissareiro, com essa origem tão particular, qual seja, sociedade civil e mundo do trabalho, vai assimilando e introjetando práticas objetivas que eram próprias da tradição burguesa brasileira. Dessa forma, por uma verdadeira mutação, esse partido vai se tornando, por força das novas circunstâncias, um partido de Estado e, com isso, recuperando e dando nova vida à cultura de Estado predominantemente entre nós.
As lutas contra a privatização em que o PT se envolveu ao longo do governo FHC estavam claramente fincadas no objetivo de defender a presença do Estado na vida econômica e na modernização do país. Cria-se em então – para ficar na metáfora com que você me provoca – um nevoeiro imenso em que os interesses e as classes sociais se tornam indistintos. O que importava era a preservação do Estado, e mais do que a sua preservação, a sua expansão, como se o avanço do capitalismo de Estado fosse uma câmara, uma antessala para uma transição futura ao socialismo.
• Este país tem medo de andar para frente, de romper com as suas tradições mais fundas, e a tradição mais funda que temos aqui é a de Estado
Quais são os interesses dos trabalhadores nesse jogo? São interesses próprios, autônomos ou os interesses dessa política que precisava se manter e se sustentar? Com essa movimentação, iniciou um movimento que, longe de ser uma força de descontinuidade com a tradição, se tornou uma força legitimadora da tradição. Basta ver, por exemplo, como o PT passou a valorizar a Era Vargas, como passou a valorizar, inclusive, a Era Geisel, do Regime Militar. Em nome de quê? De demandas de autonomia da sociedade, em defesa dos trabalhadores, ou em defesa do reforço do Estado e de uma industrialização comandada pelo Estado?
A meu ver essa perda de distintividade fez com que o que havia de potente na sociedade emergente perdesse virilidade, vigor, aliás, como teria ocorrido com o sindicalismo dos anos 50, que teria abdicado da sua autonomia em função do projeto nacional-desenvolvimentista. É uma volta. Este país tem medo de andar para frente, de romper com as suas tradições mais fundas, e a tradição mais funda que temos aqui é a de Estado.
IHU On-Line - Essa “estadolatria” foi negativa para o país?
Werneck Vianna – Sem dúvida.
IHU On-Line – Hoje a esquerda defende a intervenção do Estado como condição necessária para regular a economia e a área social, por exemplo. O que seria uma alternativa sem a presença do Estado?
Werneck Vianna – A alternativa, nós não a tentamos. O que a esquerda classicamente viveu, desde Marx e de uma tradição que vem com Gramsci e outros, é a busca por autonomia, a criação de novas instituições estatais a partir de baixo. A utopia do movimento socialista, da esquerda em geral, foi sempre a da remoção do Estado, do fim do Estado e isso, num passe de mágica, foi convertido por circunstâncias nossas, a nossa tradição, a maneira como nós nascemos – nós nascemos a partir do Estado – e pelas circunstâncias internacionais, e fomos criando uma esquerda estatalizada, com uma relação mórbida com os grandes interesses da sociedade. Isso foi uma abdicação.
IHU On-Line – Essa possível mudança na postura da esquerda pode estar relacionada com uma estratégia de não querer se identificar com o modelo neoliberal que defende um Estado mínimo, especialmente na área econômica? Foi por essa razão que a esquerda reforçou a importância do Estado ou o que aconteceu para que houvesse uma mudança de rota, abdicando da autonomia e reforçando o papel do Estado?
Werneck Vianna – A sua questão é muito pertinente. Houve esse temor, sim, mas ao mundo do trabalho não cabe se deixar levar por esses esquemas que são estranhos a ele. O que é próprio ao mundo do trabalho é a criação da sua identidade, da sua autonomia, do seu projeto.
IHU On-Line – Está circulando a notícia de que o governo Temer pretende dar encaminhamento a uma reforma trabalhista, a qual poderá regular jornadas de trabalho de até 12 horas semanais e permitir contratações por hora trabalhada.
Werneck Vianna – Por hora, não vejo como me manifestar sobre isso, porque leio essas notícias ainda na região dos boatos.
IHU On-Line – Mas a minha pergunta é como garantir os direitos trabalhistas, autonomia do trabalhador, e não retroceder? O Estado é fundamental nesse processo? A esquerda defende que sem um Estado forte não se garante isso. O que seria uma alternativa?
Werneck Vianna – Estamos num momento muito complicado da história do mundo, porque o trabalhador tem que defender também, sobretudo neste momento de crise do capitalismo e de grandes mutações sociais, a sua empregabilidade. Então, nesse sentido, esse mundo tem que ser um mundo negociado. Trabalhadores e empresários precisam encontrar formas de negociação. Como manter um mercado de trabalho ativo, capaz de atrair cada vez mais gente para o seu interior? O mundo todo tem que se repensar e está se repensando, mas aqui nós nos recusamos a pensar esses novos processos; a nossa posição é fundamentalmente defensiva. São possíveis políticas ofensivas a partir da auto-organização da vida social, é possível os trabalhadores terem um papel mais ativo dentro das empresas, é possível, sobretudo, que haja uma intervenção cada vez mais forte da sociedade civil nas políticas públicas, mas para isso é preciso que ela seja educada sobre o que se passa no mundo, que se tornou de uma enorme complexidade.
Muitas das categorias que governaram o nosso mundo até, digamos, 1970, já não têm mais vigência, perderam sentido, e o fato de nós termos uma esquerda que desanimou de pensar e inovar, criou embaraços monumentais. Não se está mais no mundo de 1950 aqui no Brasil, mas o comportamento é como se ainda estivéssemos e isso não traz solução para a crise intelectual, econômica, social e política em que nos encontramos.
• O nevoeiro persiste não apenas pelas camadas pesadas de chumbo que nos vêm do passado, mas porque não somos senhores da nossa circunstância
Diz-se que está ganhando um foro, pelo menos nas redes sociais e manifestações de rua, a manifestação “fora Temer”. Está bem, mas se sai o Temer, põe quem no lugar dele? A volta de Dilma e do nacional-desenvolvimentismo recessivo e anacrônico que nos trouxe ao longo do exercício do seu mandato nos leva aonde? Ao aprofundamento da crise política, econômica e social. Fora Temer e põe o que no lugar? Qual é a alternativa moderna que está se pondo para a sociedade brasileira? Não se tem nada à vista. Então, para responder a sua primeira pergunta, diria que o nevoeiro persiste não apenas pelas camadas pesadas de chumbo que nos vêm do passado, mas porque não somos senhores da nossa circunstância; obedecemos aos velhos comandos que nos trouxeram a essa situação.
IHU On-Line – O seu diagnóstico é o de que a crise continua. Mas, apesar disso, ela tem novos elementos com a saída de Dilma? Trata-se de uma nova fase da crise?
Werneck Vianna – Foi uma tentativa de sair da crise, mas se você me perguntar se essa tentativa vai ser frutífera, eu diria: Só Deus sabe, porque as resistências que vêm dessa cultura do passado a qualquer mudança pesam como chumbo na vida dos contemporâneos e removê-las não é trabalho fácil, porque não temos lideranças para isso. As lideranças de esquerda que temos são comprometidas com o passado, com a tradição.
IHU On-Line – O que o senhor está dizendo é que não temos que resistir às mudanças que estão sendo propostas?
Werneck Vianna – Não sei quais são as mudanças. Esse elenco de mudanças ainda não foi apresentado, a não ser pontualmente.
IHU On-Line – Entre mudanças propostas, o governo Temer está sugerindo a PEC 241, que determinará um novo regime fiscal. Essa é uma proposta adequada para esse novo tempo ou não?
Werneck Vianna – Eu não domino os detalhes dessa problemática, mas que é consensual a necessidade de um ajuste fiscal, isso é. A própria Dilma, no início do seu segundo mandato, concordou com isso ao convidar o ex-ministro Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda. Aí há imperativos e as circunstâncias não são favoráveis para que se tomem direções sem consultar os seus riscos: vale ou não vale ampliar o mercado de trabalho? Vale ou não vale ampliar a logística e a malha de ferrovias ou hidrovias – que não temos? Dispomos de recursos para isso ou não? É o Estado que deve satisfazer a essas necessidades? Mas o Estado está falido. Então, há entre nós, fruto da nossa formação, uma aversão natural ao mercado, ao lucro, porque nós somos ibéricos, viemos da catolicidade da Contrarreforma. Como vamos conseguir recursos para enfrentar a tarefa mais nobre que este país requer, que é a da educação?
IHU On-Line – Então, recuperar a agenda da modernização e olhar para frente neste momento significa o que para o senhor? O Brasil tem que se modernizar abrindo mais possibilidades para o mercado ou mantendo a intervenção estatal ou buscando outra via? O que seria?
Werneck Vianna – Com a intervenção do Estado, com ação reguladora do Estado. Agora, o Estado sozinho pode o quê? Ele fez algumas coisas importantes, sobretudo na era Vargas, mas Volta Redonda foi feita com capital americano. Eu estive - não sei se foi um sonho - no quarto em que Getúlio Vargas se matou e sou capaz de jurar que vi numa parede uma fotografia dele ao lado do Roosevelt, desfilando em carro aberto na Avenida Rio Branco (Natal-RN).
Nós não somos a Coreia do Norte, um capitalismo autárquico. O nosso capitalismo nasceu dessa associação com o capitalismo internacional. Eu estaria dizendo que o Estado deve recuar disso? Longe de mim e da minha história. Estou dizendo que ele não pode ocupar esse papel determinante, monopólico. Esse Estado insulado levou a isto que se vê por aí: a perda de distinção entre o público e o privado, como aparece nas políticas exercitadas pelos fundos de pensão. Isso trouxe uma riqueza para quem? Criou uma sociedade mais igual ou desigual?
O capitalismo de Estado no Brasil nunca esteve interessado no tema da igualdade de oportunidades, mas na expansão da lucratividade, das forças produtivas materiais; são políticas muito residuais. Então, hoje somos, sem o menor orgulho, uma das sociedades mais desiguais do mundo. Há todo um espaço novo para se pensar, mas nós temos bolas de ferro nos pés que nos mantêm no mesmo lugar.
IHU On-Line – Que intelectuais ou teorias nos ajudariam a pensar um rumo diferente para o Brasil e a modernização daqui para frente?
Werneck Vianna – Ah, é tão difícil responder isso. Vou tentar sair um pouco dessa questão para, mais à frente, tentar respondê-la. Veja as cerimônias de abertura e encerramento das Olimpíadas e Paralimpíadas. Veja que riqueza, que capacidade de invenção. O Brasil é uma grande novidade no mundo, a sua cultura, as suas tradições, a maneira como as raças e religiões entre nós convivem é exemplar. Nós temos um tesouro civil nessas Olimpíadas, que foram concebidas por intelectuais que foram à nossa história e trouxeram o que há de vivo, de interessante nela. Mas nós deixamos de pensar há muito tempo, porque na verdade, o inventário dessas cerimônias são concepções de intelectuais dos anos 35, 40: ali estão Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Ary Barroso, e novamente apareceu o funk, a ópera de rua, que é uma criação nossa. Isso precisa ser trazido de volta à reflexão.
Que país somos, o que queremos ser e como vamos pavimentar o caminho para esse futuro? Se você me perguntar como vamos fazer isso, vou te responder com sinceridade que não sei, porque é preciso de um movimento coletivo, de uma animação, de uma crença de que é possível mudar e não ficarmos atrelados a experiências do passado.
O nacional-estatismo já deu o que tinha que dar. O regime militar levou isso às últimas consequências. E quais são os resultados? Lesões ambientais sem tamanho, aprofundamento da desigualdade, e deve-se reconhecer o desenvolvimento de algumas forças produtivas, sem dúvida, mas faz o balanço disso: mais se perdeu do que se ganhou.
É claro que alguns elementos são nossos e originários, porque são marcas de pele e, nesse sentido, o Estado sempre será importante entre nós, mas é mais do que necessário democratizar esse Estado, porque como se viu ao longo desses anos que vivemos, o Estado não foi democratizado; ele foi capturado por interesses particularistas.
• Tudo o que há é reverência ao passado, temor do futuro e imobilização mental em quadros anquilosados
IHU On-Line – Mas não vislumbra o que seria a possibilidade de saída?
Werneck Vianna – Tudo o que há é reverência ao passado, temor do futuro e imobilização mental em quadros anquilosados. A nossa universidade parou de pensar há muito tempo. A saída nós temos que ir tateando na parede, procurando onde ela está. Não vai ser agarrados às velhas opiniões que vamos encontrá-las.
IHU On-Line – Em termos de reestruturação política dos grandes partidos, como PT, PMDB, PSDB, o que deve acontecer?
Werneck Vianna – Penso que esses partidos já estão bastante complicados. Os partidos dominantes, PT e PSDB, não respiram nada novo. E na esquerda, o que se vê entre os jovens? Uma volta aos tempos míticos da revolução, da insurreição das ruas; é triste.
IHU On-Line – Alguns têm dito que entre os jovens está aumentando uma visão mais neoliberal. Concorda?
Werneck Vianna – Não concordo, não. Isso existe, mas não vem nascendo com força. Isso também seria uma volta ao passado pela direita.
À direita e à esquerda, volta-se ao passado. O país está retido e esses 13 anos de PT – que me perdoem os petistas – foram anos em que o pensamento não teve como avançar, porque ele ficou prisioneiro das possibilidades de um homem providencial, o Lula, encontrar uma saída para tudo. Nesse sentido, o PT abdicou de pensar, o pensamento foi elaborado por cima e o país foi anestesiado por uma política, essa sim, de cunho neoliberal, do consumismo, de satisfazer as necessidades das pessoas pelo consumo - o carro novo, o utensílio novo - e não pelos direitos.
Diria que apostar na livre associação é um belo remédio. É claro que sozinho isso não leva a nada; é preciso uma orientação política, a qual, dirigida para o Estado, é sua democratização. Há quem fale em empreendedorismo, como o professor Mangabeira Unger. Está bem, que se estimule o empreendedorismo, essa é uma política correta, mas é preciso ter uma orientação política para isso.
Que sociedade queremos? Uma sociedade projetada para uma imediata transição ao socialismo? Só uma pessoa inteiramente desqualificada poderia admitir essa hipótese. Então, temos que conviver com o capitalismo e impor limites a ele, domesticá-lo e abrir alternativas para que essa nova sociedade que está aí chegue à economia, o que de maneira rudimentar vem acontecendo. É difícil conceber uma alternativa para isso que aí está. Agora, pior de tudo é desistir de procurá-la.
O país abandonou a experiência da livre associação que, em alguns momentos, germinou entre nós, mas não mais se procurou associar, porque havia, por cima, uma entidade litúrgica político-religiosa que resolveria todas as nossas questões.
IHU On-Line – Mas alguns ainda apostam no retorno do ex-presidente Lula em 2018.
Werneck Vianna – Mas se vier, vem diferente, porque essa possibilidade não lhe é mais dada. Não tem mais como exercer o encantamento sobre as massas à base de políticas compensatórias, à base do consumo. Essa política consumerista é neoliberal.
IHU On-Line – Mas vê a possibilidade de a esquerda se reposicionar politicamente depois de 13 anos de governo petista?
Werneck Vianna – Acho muito difícil. Ela vai precisar de tempo e de liberdade de desenvolvimento intelectual, porque a nossa esquerda está prisioneira de si mesma, da sua história, com cultos antigos, Che Guevara, Marighela. A nossa esquerda é muito atrasada.
IHU On-Line – E aquela esquerda que levanta a discussão sobre as questões ambientais e faz uma crítica à financeirização do capitalismo?
Werneck Vianna – Eu apostaria mais nessa direção. Mas é preciso também que tenha políticos mais maduros, mais cultivados. A Marina, com todo o respeito que ela merece, tem uma agenda de traços modernos, mas por outro lado, muito recessivos, inclusive na questão comportamental. Mas sem dúvida ela é uma presença novidadeira nesse quadro de mesmice que caracteriza o nosso pensamento.
• O impeachment teve uma solução legal, mas nós não demos as costas ao passado
IHU On-Line - Como está a sociedade brasileira pós-impeachment? Saímos desse processo como uma sociedade mais frágil, mais imatura ou mais amadurecida politicamente, mais forte, mais apática ou mais política, mais antidemocrática ou democrática? Que mudanças esse processo político trouxe ou ainda trará para a sociedade brasileira?
Werneck Vianna – Nós ainda não saímos dessa fase. O impeachment teve uma solução legal, mas nós não demos as costas ao passado. Estamos tentando edificá-lo. O movimento “fora Temer” quer dizer isto: não há impeachment; é preciso retomar imediatamente a experiência anterior. O movimento saudável seria procurar, nesses dois anos, caminhos, alternativas a partir de conflitos, e lá por 2018 apresentarmos à sociedade projetos consistentes, mas isso não é o que se pratica. Vive-se cada momento como se fosse o último; radicaliza-se tudo em nome de coisas já perdidas. A experiência presidencial Dilma Rousseff é perdida e não há quem ponha aquele projeto de volta; nem ela. Aliás, ela já tinha declinado desse projeto. Foi ela quem nomeou Joaquim Levy.
IHU On-Line – Mas muitos dizem que Temer vai dar seguimento a esse projeto.
Werneck Vianna – Não, Temer está aí tateando, procurando alguma saída para ele.
IHU On-Line – Já é possível saber qual é o projeto desse governo?
Werneck Vianna – Por ora, é um governo imaturo. É preciso que esse governo se torne governo. Esse governo está ameaçado pelas forças do passado e não está animado por nenhuma força emergente que aponte para o futuro. Não por culpa pessoal doTemer, mas porque as circunstâncias são essas.

IHU On-Line - O senhor tem dito que o Brasil está precisando do “espírito de concórdia”. O país ficou dividido entre os que defenderam o discurso do golpe e os que foram contrários. A concórdia será possível daqui para frente?
Werneck Vianna – Vejo essa possibilidade com muito pessimismo, porque a concórdia é uma virtude do coração, como diz a Palavra. E os corações estão desconectados da cabeça; estão batendo ao ritmo do passado e não querem bater ao ritmo da hora presente e da hora futura. Então, que defendam os privilégios, os monopólios, os particularismos, as corporações, esse corporativismo que nos mata. Que defendam isso. E fazer o que com este país de 200 milhões de habitantes, com as massas afundadas em situações de escassas oportunidades de vida, sem emprego, sem serviços públicos à altura? Difícil.
• E fazer o que com este país de 200 milhões de habitantes, com as massas afundadas em situações de escassas oportunidades de vida, sem emprego, sem serviços públicos à altura?
Sempre aparece uma saída quando se procura por ela. Para isso não se pode dizer que se quer aquela saída, aquela que me reponha aos anos de 1950, porque esses anos não voltam mais e se tornaram anacrônicos; o mundo mudou. É só olhar para a política americana do Obama e ver o que era. E eu diria mais: o mundo vem mudando para melhor, com todas as dificuldades existentes.
A política de refugiados da Ângela Merkel não pode perder. Ela pode até vir a perder, mas não podemos deixar de socorrê-la com nosso apoio, porque a vida se faz a cada instante. Não tem a descoberta de um caminho que avance; cada momento é um passo e tem que procurar dar o passo certo neste momento em que vivemos. Vamos ver o que vai acontecer com as eleições municipais, porque elas são um indicador. Talvez elas nos surpreendam e mostrem uma sociedade que está buscando novas possibilidades. Vamos aguardar.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Werneck Vianna – Gostaria que você tivesse piedade de mim, que aligeirasse as partes mais malditas da minha fala para que não levantasse uma onda de cólera contra a minha pessoa. (Risos).
Fonte: Revista IHU-On-Line (14/09/16)
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012).