domingo, 23 de setembro de 2018

Deus, eleitor (José de Souza Martins)

No Brasil eleitoral, o próprio Deus foi raptado e instrumentalizado. Vários candidatos e partidos, hereticamente, converteram Deus em reles cabo eleitoral e patrono da antipolítica do fanatismo. Está pressuposto no gesto do dedo no gatilho e na afirmação daquilo que nega Deus, o justiçamento, a negação dos humanos direitos de todos. Pelotão de fuzilamento não é Justiça. Esfregar a Bíblia na cara dos outros é pedrada, não é argumento de fé.
Deus está sendo arrastado pelo íngreme calvário das conveniências eleitorais dos ambiciosos que se colocaram em seu lugar e lhe puseram nos ombros a pesada cruz em que será crucificado de novo e esquecido.
Deus é nisso "fake news" pós-moderno, um ser banal e descartável, feito para enganar, ludibriar os simples e crédulos. Os pobres, a classe média, os abonados e assustados. É que, na teologia popular brasileira, o verdadeiro Deus é negação da negação. Há que admitir e vencer antes a negação reveladora, Satanás e a função religiosa e política do mal que é própria dele.
Na concepção popular, a usurpação levará para as profundezas os atrevidos. A beira do caminho do nosso oportunismo político está cheia de descartes dos que usurparam o nome de Deus para enganar o povo. A tecnologia publicitária não tem como evitar o banimento, da memória coletiva, do nome e dos abusos daqueles que conspurcaram o território do sagrado. Fé autoindulgente não é fé. É coisa de outra coisa.
Na cultura popular, Satanás é o ente antagônico e desconstrutivo cuja malignidade e mediação nega, e nisso revela, a deidade de Deus e a importância do sagrado na vida humana. Não importa qual a confissão religiosa em torno da qual as pessoas se agrupam para comungar sua fé, para compartilhar o pão da esperança. O deus eleitoral não é o Deus que sacia, mas o deus que nega a diversidade emancipadora do homem, pune, açoita, segrega, confisca direitos e liberdades. Não é o Deus dos que têm fome e sede de Justiça.
O crônico oportunismo político daqui, não raro com a cumplicidade de igrejas, descobriu o tesouro diabólico da manipulação das religiões para angariar votos para os famintos de poder. Satanás gosta de poder e de dinheiro, especialmente quando o poder manipulado pode ser fonte de riqueza. Opõe-se ao Deus do povo que é o Deus dos profetas, não o deus de tronos e palácios, não o deus do poder.
Em nossa literatura de cordel o inferno é um grande mercado, onde tudo tem preço, até a alma e a consciência. Nessas crenças, Satã é o mercador que oferece o paraíso do poder e da riqueza em troca da alma dos ambiciosos. É bíblico.
Na região amazônica e no Centro-Oeste conheci sertanejos que, na soma dos diferentes valores numéricos da meia dúzia de cédulas do dinheiro de então, chegavam ao 666, o número apocalíptico da Besta-fera, o satanás do fim dos tempos. Especialistas que decodificaram o número enigmático concluíram que é o nome em código do imperador Nero, a figuração política do mal, assassino da própria mãe. O dinheiro popular não é esse da Casa da Moeda.
Estou, é claro, me referindo às disseminadas concepções populares polarizadas entre o bem e o mal. Tratam do pêndulo regulador de nossa consciência social, a matriz profunda de nossas concepções e das nossas decisões, seja na vida pessoal, seja na vida política. Os que raptaram Deus, portanto, trouxeram para a política brasileira o maligno que o nega. O cheiro de incenso impregnado do de enxofre.
É inacreditável a facilidade abusiva com que os oportunistas da política brasileira se apossam das crenças para nos enganar, para violar a própria lei neste país em que, desde a proclamação da República e desde antes da primeira Constituição republicana, o Estado se separou da igreja e assegurou a liberdade civil das diferentes confissões religiosas. Religião, no Brasil, em vez de ser praticada e respeitada como afirmação do direito à fé e do respeito aos direitos do outro, é praticada como instrumento de coerção e de dominação. De fato, o uso antidemocrático da religião é, no Brasil, um crime, uma violação dos direitos políticos dos cidadãos.
Aqui, diferentes grupos populares falam e compreendem a língua do espírito que humaniza, não a do que coisifica. Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, contou, certa vez, que quando começou sua militância política, ligada aos direitos dos trabalhadores rurais, descobriu que tinha que ler a Bíblia para poder conversar com eles. Era a chave do imaginário dos pobres da terra. Os direitos eram bíblicos, passavam pelo respeito ao sagrado.
Hoje, aqui, é a violação dos direitos sociais e os de convicção que passa pela instrumentalização político-partidária do sagrado. O próprio Deus está em perigo.
Valor Econômico
21 de setembro de 2018

A erosão das normas democráticas (Steven Levitsky)

21 de setembro de 2018
Uma boa Constituição não basta para fazer que a democracia funcione. A democracia depende de normas não escritas. Duas são especialmente importantes. A primeira é a tolerância mútua, ou a aceitação da legitimidade dos oponentes. Isso significa que, não importa o quanto possamos desgostar de nossos rivais em outros partidos, reconhecemos que eles são cidadãos leais, com direito legítimo a governar. Em outras palavras, não tratamos os rivais como inimigos.
A segunda norma é a indulgência. Indulgência significa abrir mão de exercer um direito legal. É um ato de autocontrole, uma subutilização do poder.
A indulgência é essencial para a democracia. Os políticos têm a capacidade de usar a letra de qualquer Constituição para subverter seu espírito, transformando instituições em destrutivas armas partidárias. Apontar juízes parciais. Conduzir impeachments em base partidária. Excluir candidatos de um pleito por conta de minúcias legais. O professor de direito Mark Tushnet define o método como “jogo duro constitucional”.
Observe qualquer democracia em colapso e verá uma abundância de jogo duro constitucional: Espanha e Alemanha na década de 1930; a Argentina de Perón; a Venezuela na era Chávez; Turquia, Hungria, Bolívia e Equador hoje em dia.
O que impede que uma democracia seja arruinada pelo jogo duro constitucional é a indulgência. É o compromisso dos políticos de exercerem de maneira contida as suas prerrogativas institucionais, sem utilizá-las irresponsavelmente como armas partidárias.
As normas de tolerância mútua e indulgência são as grades de proteção informais da democracia. São elas que impedem que a competição política degringole para o tipo de disputa partidária impiedosa que destruiu as democracias da Europa na década de 1930 e as da América do Sul nas décadas de 1960 e 1970.
A democracia brasileira contava com essas grades de proteção informais, entre 1994 e 2014. O PT e o PSDB competiam vigorosamente, mas aceitavam um ao outro como legítimos. Não se tratavam como inimigos. E os políticos exercitavam a indulgência. Não houve interferência na composição dos tribunais, como aconteceu na Argentina de Kirchner ou na Venezuela de Chávez; não houve impeachments em estilo paraguaio; nem legalização de tentativas dúbias de reeleição por judiciários amistosos, como na Bolívia e Nicarágua.
Mas muita coisa mudou nos cinco últimos anos. À medida que a política se polarizava, a tolerância mútua desaparecia. Muita gente na direita agora vê o PT como ameaça existencial —uma força chavista determinada a se perpetuar no poder. E muitos petistas agora veem seus oponentes como golpistas ou até “fascistas”.
A erosão da tolerância mútua encoraja o jogo duro constitucional. Quando vemos os rivais como ameaça à nossa existência, como chavistas ou golpistas, nos sentimos tentados a usar quaisquer meios necessários para derrotá-los.
É exatamente isso que está acontecendo agora. O Brasil viu um recuo acentuado na indulgência. O impeachment de Dilma não foi um golpe —foi inteiramente legal. Mas representou um caso claro de jogo duro constitucional. Dilma também se engajou em jogo duro constitucional. A indicação de Lula como chefe de sua Casa Civil, para protegê-lo contra processos, é um exemplo.
A exclusão de Lula da corrida presidencial também foi inteiramente legal. Mas os juízes aceleraram o caso, levando a lei aos seus limites. Lula não precisava ter sido condenado antes da eleição. Mesmo que essas ações sejam consideradas como justificáveis, as consequências são perturbadoras: os petistas acreditam ter sido tirados do poder ilegitimamente em 2016 e impedidos ilegitimamente de recuperá-lo em 2018.
No Brasil atual, setores importantes da esquerda e da direita veem uns aos outros como inimigos perigosos. Essa intolerância mútua coloca a democracia em perigo. Quando a política fica polarizada a ponto de vermos rivais como ameaça à nossa existência, o que tornaria sua eleição intolerável, começamos a justificar o uso de meios extraordinários —violência, fraude eleitoral, golpes —a fim de derrotá-los.
De fato, a crença de que o PT é chavista levou muita gente na direita a considerar medidas irresponsáveis. Como, por exemplo, votar em Bolsonaro, o candidato verdadeiramente autoritário que está na disputa, para derrotá-lo. A tolerância quanto a líderes e ações antidemocráticas, em nome de derrotar rivais odiados, ajudou a matar a democracia na Alemanha e Espanha na década de 1930, no Chile em 1973, e na Venezuela no começo da década de 2000.
A polarização nublou as percepções. Nem o PSDB nem o PT são uma ameaça à democracia. Os dois partidos deveriam ser rivais acalorados, mas não inimigos temidos. A verdadeira ameaça é Bolsonaro, e a tentação de apoiá-lo, gerada pelo medo. A centro-direita e a centro-esquerda do Brasil precisam perceber a gravidade da situação antes que seja tarde.
Tradução de Paulo Migliacci
(*) Steven Levitsky é cientista político, autor do livro "Como as Democracias Morrem"
Folha de São Paulo

‘O próximo governo não terá coalizão programática’ (Sérgio Abranches/Entrevista)/

Autor, que lança “Presidencialismo de Coalizão”, no dia 24, fala sobre as raízes do sistema político e o atual momento da governabilidade no Brasil
Roberto Maltchik | O Globo
Com 45 anos de análises políticas, Sérgio Abranches detalha os desafios do sistema político e aponta os riscos de o próximo presidente, seja ele quem for, reproduzir o atual padrão de relacionamento entre o governo e o Congresso .“Do ponto de vista da lógica, não há nada que tenha mudado essencialmente na política brasileira que faça com que seja diferente".
• Quais são, hoje, os problemas do presidencialismo de coalizão no Brasil?
O problema não é ser presidencialista, nem de coalizão. O problema do presidencialismo de coalizão é que ele tem, progressiva e rapidamente, caminhado para um padrão absolutamente clientelista, baseado no toma lá da cá.
• Por que se agrava a cada dia?
Por várias razões, mas uma delas é o excesso de fragmentação de partidos nas coalizações. Coalizões muito grandes são muito mais difíceis de lidar. E também o fato de que não há afinidade programática nenhuma entre o presidente e os partidos de sua coalizão. E isso vai acontecer, de novo, no ano que vem. Não haverá coalizão programática.
• Não tem como ser diferente?
Do ponto de vista da lógica, não há nada que tenha mudado essencialmente na política brasileira que faça com que seja diferente. A centralização de recursos na União continua enorme; a discricionariedade do presidente na gestão do gasto público continua a mesma; e você tem um problema adicional: essa eleição de 2018 pode chegar ao fim do segundo turno sem a coalizão montada. Isso vai ocorrer entre novembro e fevereiro. Nesses quatro meses, o que sobra para negociar com os partidos? Ministérios e posição. Na verdade, o novo presidente não discutiu, em momento algum, com nenhum parceiro, o seu programa de governo.
• No livro, o senhor menciona os “partidos-pivôs” como fundamentais nas coalizões. Que tipo de partido é esse?
É o partido que representa o parlamentar básico, o parlamentar que domina o cenário na Câmara dos Deputados. Este partido já representa, nos estados, a base eleitoral. Quando chega ao Congresso, faz uma bancada grande. Nesta eleição, isso vai mexer um pouco. Mas, até 2014, o MDB sempre teve as maiores bancadas. Esse é o determinante do veto ou do voto. Sem este partido, o presidente para de ter comando sobre a agenda legislativa. É quando o Legislativo faz a pauta-bomba, a legislação que não é do interesse do presidente. Conflitante com a agenda presidencial. Foi o que aconteceu com Collor e Dilma.
• Por que a sustentabilidade é tão frágil no Brasil?
Por causa da baixa taxa de compatibilidade entre o presidente da República e sua coalizão. Compatibilidade ideológica. No caso da Segunda República, ela era menos casuísta, menos oportunista, do que a Terceira República foi se tornando. Na Terceira República, havia uma aliança natural que poderia ter sido formada entre PT e PSDB. Ela se inviabilizou, abrindo espaço para o surgimento dos partidos de orientação parlamentar, que são pivô de qualquer coalizão.
• E parecem cada vez menos compatíveis entre si...
Os problemas de gestão da coalizão se tornaram muito mais complicados nos governos do PT. E, neste contexto, você passa a ter os impulsos, que nascem das divergências internas da coalizão, para a corrupção. No caso do governo Fernando Henrique, ele ficou refém do Congresso ao propor a reeleição. O mercado político mostrou: “você será o primeiro beneficiado, você paga tudo”.
• Como conciliar o interesse dos aliados, vocacionados a atender sua base eleitoral, e o plano do presidente, que deve atender à Federação, sem o modelo clientelista?
A gente tem uma diferenciação dos interesses do presidente e do Legislativo. Ela decorre do modelo de eleição federativa. O presidente é eleito pelo Brasil, ele precisa de maioria de votos em cerca de 15 estados para vencer uma eleição. Os deputados são eleitos em seus redutos. Um conjunto delimitado de municípios. Com o excesso de concentração de poderes da União, essa diferença de interesses se agrava e se radicaliza profundamente. Esse é o caminho do clientelismo e da corrupção porque o presidente administra todo o orçamento da República na boca do caixa. Eu não creio que a gente vá resolver esse problema sem enfrentar o problema da descentralização federativa. Não resolve se a gente não devolver parte da capacidade tributária e de gastos aos estados e municípios, fazendo com que essas demandas locais, mais associadas às bases políticas dos parlamentares, se resolvam no âmbito local.
16 de setembro de 2018

Retrocesso à vista (José Álvaro Moisés/Entrevista)

O cientista político José Álvaro Moisés diz que Bolsonaro ajuda a acirrar clima de intolerância no Brasil e afirma que o regime democrático está sob ameaça
Por Roberta Paduan | Revista Veja, edição nº 2600
José Álvaro Moisés, 73 anos, especializou-se em democracia brasileira, assunto sobre o qual já escreveu três livros. Atualmente, o cientista político coordena o grupo de estudos sobre o tema no Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP), onde se formou e também fez doutorado. Um dos fundadores do PT, em 1980, ele se afastou definitivamente do partido durante o governo Itamar Franco. “Desde 1989, vinha percebendo que o PT não sabia lidar com a complexidade democrática. Mostrou isso em 1989, depois da queda do Muro de Berlim, quando deveria ter se afirmado como um partido de esquerda democrática, e não o fez.” Em entrevista a VEJA, Moisés falou sobre as singularidades da atual eleição, o significado do ataque ao presidenciável Jair Bolsonaro e por que acredita que a democracia, como ele a estudou, está sob ameaça — no Brasil e no mundo.
A seguir, sua entrevista.
• O atentado contra o candidato Jair Bolsonaro é um sinal de radicalização da política no Brasil?
Sim. Demonstra que estamos chegando a um grau de intolerância em que o uso da violência começa a ser encarado como “natural” na solução de conflitos políticos. As pessoas vêm reagindo de maneira raivosa diante das disputas, mesmo aquelas que não estão envolvidas diretamente na política. O autor do atentado diz ter decidido atacar Bolsonaro simplesmente por não aceitar a maneira como ele pensa. Espero estar errado, mas acredito que esse é mais um sinal da reintrodução da violência na política brasileira, o que é um retrocesso gravíssimo.
• Quais foram os outros sinais disso?
Assistimos há pouco tempo ao atentado contra a caravana do ex-presidente Lula no Paraná. Há seis meses, o Brasil presenciou, chocado, o assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL, no Rio de Janeiro. Antes disso, nas eleições municipais de 2016, houve o assassinato de candidatos a vereador e a prefeito, particularmente na Baixada Fluminense. É um nível de tensão política que não existia desde o período militar — quando vivíamos a violência do Estado contra os opositores do regime, que resultou em luta armada. Agora, estamos em um clima quase generalizado de intolerância. O próprio Bolsonaro vai nessa direção quando diz que “é necessário metralhar a petralhada”. Quando Bolsonaro diz isso, não é mais uma crítica ideológica, política, ou contra a corrupção. É uma manifestação que induz o indivíduo a pensar que é aceitável usar a violência na disputa eleitoral.
• Dizer que Bolsonaro incita a violência não é uma forma de culpar a vítima?
De maneira alguma. Uma coisa não está relacionada à outra. Bolsonaro foi vítima de um atentado inaceitável. O autor quis eliminar o candidato simplesmente por não aceitar as suas ideias. Mas, independentemente de ter sido vítima, há o fato inconteste de que Bolsonaro incita a violência e não tem grande amor pelos princípios que constroem uma democracia, como o respeito pelas minorias, conforme deixou claro em mais de uma ocasião.
• Mas, apesar de suas falas, Bolsonaro nunca pegou em armas para agredir um adversário.
É verdade, mas ele persiste num discurso perigoso quando afirma que para resolver a situação do Brasil seria preciso terminar o serviço que a ditadura não fez, “fuzilando uns 30 000, a começar pelo ex-¬presidente Fernando Henrique Cardoso”, como já disse. Esse tipo de discurso pode não influenciar pessoas racionais, equilibradas, mas ajuda a dividir a sociedade entre “nós” e “eles”, a exemplo do que fez o PT. Bolsonaro também ajuda a polarizar a sociedade entre “esquerda” e “direita”, reproduzindo exatamente a cartilha petista. É um discurso que tem o potencial de estimular pessoas como o rapaz que atentou contra a vida dele. E esse tipo de conduta não deveria, em nenhuma hipótese, ser replicado por um homem público que quer liderar uma nação. Na democracia, o homem público tem responsabilidades, e uma delas é defender a solução pacífica dos conflitos políticos e sociais. Líderes democráticos são responsáveis, ou deveriam ser, pelo clima de entendimento entre os diferentes.
“Bolsonaro ajuda a polarizar a sociedade entre ‘esquerda e direita’, como fez o PT. Essa conduta não deveria ser replicada por um homem público que quer liderar uma nação”
• Bolsonaro põe em risco a democracia?
Ele é um exemplo de político com características de autocrata, quando analisamos suas posições à luz do diagnóstico de Steven Levitsky (refere-se ao cientista político americano autor do livro Como as Democracias Morrem), cuja tese principal é que, nos dias de hoje, as democracias são minadas não mais pela força de golpes militares, mas por meio de políticos eleitos pelo voto e que enfraquecem as instituições democráticas aos poucos. A pesquisa de Levitsky mostra que esse tipo de político costuma dar sinais de seus pendores autoritários antes mesmo de ser eleito. Algumas de suas características são incentivar a violência, contestar a legitimidade dos adversários e atacar as liberdades civis, por exemplo. Bolsonaro faz precisamente isso ao desmerecer minorias e pôr em dúvida o processo eleitoral quando questiona o funcionamento da urna eletrônica, como quem diz que só perderá a eleição se houver fraude eleitoral.
• Por que esse tipo de discurso, antes intolerável na sociedade brasileira, vem ganhando mais força?
Porque vem crescendo no brasileiro a sensação de que ele próprio é irrelevante para o funcionamento da democracia. Essa sensação produz um sentimento de desprezo pelo sistema, e pode levar à percepção de que pouco importa se ele for substituído por alternativas autoritárias. A campanha das Diretas Já foi um ponto alto no engajamento pela democracia. Ela acabou associada ao direito não só de votar, mas também de participar, de ser ouvido. Hoje, essa sensação de participação se perdeu em razão de muitos fatores. Atualmente, quase 90% dos entrevistados de pesquisas de opinião declaram não se sentir representados por nenhum partido político. Dos 147 milhões de eleitores, apenas 17 milhões são filiados. Além disso, metade dos eleitores afirmou que a democracia pode funcionar sem os partidos e sem o Congresso Nacional. Essa aversão aos políticos já havia sido sugerida em 2013, nas Jornadas de Junho. Mas Brasília permaneceu insensível, o que só faz aumentar a distância entre governados e governantes.
• Como essa distância pode se estreitar?
A crise recoloca a reforma política na ordem do dia. Caberá aos candidatos à Presidência dizer como pretendem recuperar a confiança das pessoas, revendo o sistema eleitoral. O Brasil é um caso extremo de fragmentação partidária, sem paralelo no mundo. Hoje são 35 partidos e cinquenta outros requerem o seu registro no TSE, sem que isso signifique que os eleitores se sintam mais representados. O país necessita de uma cláusula efetiva de desempenho para diminuir a fragmentação dos partidos, mas eles precisam, sobretudo, ser submetidos a regras de democracia interna, sem o que serão cada vez mais rejeitados pelos eleitores. A reforma deveria propor que as legendas adotassem o mecanismo de eleições primárias, como nos Estados Unidos, onde os eleitores escolhem os delegados, que elegem quem serão os candidatos. É uma mobilização que envolve milhões de pessoas, às vezes por mais de um ano, levando os candidatos a definir propostas concretas e considerar as demandas específicas dos eleitores. Esse mecanismo ajudaria a dar consistência aos programas partidários brasileiros, que são frágeis.
• Mas mesmo nos Estados Unidos, que escolhem candidatos por primárias, há uma crise entre população e políticos. Por quê?
O estopim são as crises econômicas. Em democracias mais antigas, a crise foi atribuída em parte às consequências da globalização, que, no caso de alguns países, comprometeu o protagonismo dos governos que, nos cinquenta anos após o fim da II Guerra, haviam empreendido importantes avanços sociais e políticos no mundo. Muitos críticos também debitaram ao crescente poder e enriquecimento de grandes corporações e empresas multinacionais as crises cíclicas, a perda de renda e o aumento do desemprego. Diante desse diagnóstico, a democracia passou a ser vista como um regime que se tornou incapaz de suprir as expectativas dos cidadãos. Com isso, eles começaram a participar menos dos pleitos, a volatilidade do voto cresceu, os partidos perderam importância e os políticos perderam credibilidade. Donald Trump é um dos exemplos: foi eleito com o discurso de reativar a indústria americana, que havia migrado para a China, e fechar o país aos imigrantes, que, na sua visão, roubam empregos americanos.
“A democracia ainda é o único regime que propõe solução pacífica para conflitos políticos, econômicos ou sociais. É também o único a garantir a igualdade de direitos”
• Como explicar a um descontente que a democracia é falha, mas ainda é a melhor opção?
Esclarecendo que ela é o único regime que propõe uma solução pacífica para os conflitos — políticos, econômicos ou sociais. É também o único sistema que garante a igualdade de direitos. A democracia é classificada por alguns autores americanos como the second best, ou “a segunda melhor alternativa” de sistema de governo. A primeira seria simplesmente mandar e ganhar sempre, mas, como ¬isso é impossível na vida em sociedade, convencionou-se que, depois de tantas guerras e violência, a melhor opção é aquela que envolve mecanismos que instauram a via do diálogo, de criação de consenso, de reconhecimento do direito dos diferentes, em vez de sua eliminação.
• A internet, ao aproximar cidadãos de políticos, terá o poder de alterar os parâmetros democráticos?
A chamada democracia de partidos está sendo substituída pela democracia da comunicação de massas, em que o conteúdo programático das siglas que disputam o poder torna-se menos importantes do que a capacidade de projeção de candidatos com pouca tradição na vida pública. Isso tem levado ao surgimento de lideranças populistas de direita e de esquerda que nem sempre demonstram apreço pelas regras democráticas.
• Não seria essa uma fase passageira das democracias no mundo?
A democracia não é um projeto acabado. As novas situações, como a da Rússia, a da Venezuela e, mais recentemente, a da Turquia, têm sido classificadas como semidemocracias ou regimes iliberais, que tolhem direitos de opositores, não asseguram o império da lei e não permitem que a sociedade controle o abuso de poder de seu governo. No fim do século XX, a queda do Muro de Berlim, a redemocratização do Brasil e a democratização da Coreia do Sul pareciam estar abrindo uma nova era democrática. Mas durou pouco. Analistas identificam nessa nova tendência claros riscos de que a democracia, tal como foi concebida, não sobreviva.
16 de setembro de 2018

domingo, 16 de setembro de 2018

Tempo circular (Demétrio Magnoli)

“Hoje estou transmitindo a você a enorme responsabilidade de retomar o processo de transformação do Brasil, em benefício do povo”. A carta de Lula foi publicada no site do PT sob uma foto na qual ele aparece junto com Haddad.
À primeira vista, texto e imagem dizem a mesma coisa: a prosa inconfundível do caudilho que sagra um sucessor. Uma segunda leitura evidencia que, no fundo, escorrem em rumos opostos. A foto organiza-se no registro da seta do tempo: o tempo linear, que se desenrola no sentido do futuro. O texto, pelo contrário, organiza-se no registro do tempo cíclico: o tempo circular, de eterno retorno. A divergência entre uma e outro reflete as dificuldades da invenção do que se pode chamar lulismo tardio.
Na foto, Lula aponta o indicador esquerdo em direção a um ponto no infinito, para o qual Haddad olha fixamente. Seta do tempo: o mestre indica o lugar exato do futuro a seu discípulo, herdeiro e sucessor. A ideia da transmissão está condensada aí. É como se um dom pessoal se estendesse de um corpo a outro, como nas sucessões dinásticas do passado, de tal modo que o receptor se converte no corpo substituto do doador.
Nisso, não há genuína novidade. A carta, porém, não ordena que Haddad conduza o povo ao futuro, mas ao passado. “Você vai me representar nessa caminhada de volta à Presidência da República, para realizar novamente o governo do povo e da esperança”. Ciclo do tempo: o mestre faz do discípulo um instrumento de restauração de um passado glorioso, uma era perdida de ouro, leite e mel. Haddad não é, neste registro, nem mesmo um sucessor. É, única e exclusivamente, a máscara do próprio Lula.
“Tudo que lhe peço, querido amigo, é que cuide com muito carinho das pessoas, como eu gostaria de estar cuidando”. Abaixo da gosma paternalista, repousa a mensagem que, de fato, importa. Haddad deve mimetizar Lula —ou, melhor ainda, ser Lula. Jamais, na nossa história política, nem mes mo no caso de Dilma, a personalidade de um candidato foi tão completamente anulada. O paralelo possível, muito imperfeito, é com o peronista Héctor Cámpora. Indicado por Perón como seu “delegado pessoal” para representá-lo nas eleições de março de 1973, Cámpora presidiu a Argentina por escassos meses, até renunciar em julho, propiciando novas eleições e o retorno do caudilho ao poder.
O Lula oposicionista de 2002 prometia o novo, o futuro. O poderoso Lula de 2010, representado por Dilma, uma sucessora escolhida para ser efêmera, prometia o presente perpétuo. O Lula tardio de 2018, criminalmente condenado e eleitoralmente vetado, mergulha no lago dos mitos para prometer a reconstituição do tempo anterior à catástrofe.
Na “carta de transmissão”, o lulismo reescreve a história recente, produzindo um conto infantil. Nessa narrativa, uma era de ouro (o governo Lula) é interrompida por um evento cataclísmico (o impeachment), que provoca a descida ao abismo (o governo Temer). O voto em Haddad propiciaria a redenção —isto é, a restauração de um mundo perdido.
Na narrativa do lulismo tardio, um passe de mágica transforma a história em conto infantil: a abolição dos seis anos dilmistas. A “carta de transmissão” formulada como roteiro sintético de campanha, não menciona o nome da sucessora de Lula. Sem ela, eliminam-se os nexos que ligam a bolha de fartura (governo Lula) ao desastre fiscal (governo Dilma) e à depressão econômica (governo Temer). Por essa via, instaura-se a gramática do discurso mítico: a seta do tempo dá lugar ao ciclo do tempo.
O lulismo tardio é um caudilhismo singular, com traços milenaristas. “Que Deus te ilumine nessa caminhada”: orientado pelo indicador de Lula, iluminado pelo holofote divino, Haddad mostrará ao povo o caminho do retorno. O partido que nasceu cultuando a política depende, hoje, da negação sistemática do discurso político.
Folha de São Paulo
15 de setembro de 2018

A reforma que foi sem nunca ter sido (Bolívar Lamounier)

Em 1985, antes mesmo de concluída a transição do regime militar para o civil, a reforma política já ganhava corpo no debate público. Depois tivemos a Constituinte, o plebiscito sobre sistema de governo e alguns esforços isolados, mas o saldo, convenhamos, é modesto.
Ninguém ignora que reformas políticas são sempre dificílimas. Trata-se de pedir aos próprios deputados e senadores que alterem o sistema pelo qual se elegem e que conhecem bem. Todos têm como avaliar se determinada alteração vai beneficiá-los ou prejudicá-los e é em função desse cálculo que tomam posição. Nenhum deles se deixa seduzir pelos encantos do haraquiri. Mas devemos também reconhecer que ao longo destas três décadas o encaminhamento da questão e as propostas específicas geralmente deixaram a desejar.
Doravante, se formos reanimar o corpo moribundo da reforma, precisamos ter o bom senso de partir de disfunções patentes e imediatas no sistema político. Caso contrário, limitemo-nos a proclamar, como é praxe, que o edifício democrático tem como base a soberania popular, mas nosso povo, que pena, não tem condições de exercer a soberania que teoricamente lhe imputamos. E fechemos o discurso afirmando, como diria o saudoso Dias Gomes, que a reforma foi sem nunca ter sido.
As disfunções “patentes e imediatas” a que fiz referência estão aí, bem à vista de todos. Sem um ordenamento minimamente racional da campanha, não é razoável esperar que o corpo eleitoral vote com um grau razoável de racionalidade. E já aqui nos deparemos com três graves problemas. Primeiro, um quadro partidário reduzido praticamente à irrelevância, estraçalhado pela crise econômica, pela insegurança decorrente da criminalidade e pelos sucessivos escândalos de corrupção. Segundo, Jair Bolsonaro, o candidato que desponta como provável vencedor, que aqui tomo como exemplo, é muito mais um reflexo da insegurança reinante do que o agente político que a colocou no topo das prioridades. A força eleitoral que parece ter decorre muito mais de ter catalisado o medo que permeia a sociedade do que das modestas propostas que tem oferecido para combater o crime.
Um aspecto ainda mais importante do fenômeno Bolsonaro é o completo descasamento entre o tempo político efetivo e o horizonte de tempo que uma pessoa realista haverá de avaliar como necessário para o controle da violência. O tempo político efetivo é o quatriênio presidencial. No plano da campanha, o que importa é saber quem presidirá o País no quatriênio 2019-2022. Ora, ninguém em sã consciência imaginará que o nosso nível altíssimo (e crescente) de violência possa ser reduzido nesse horizonte de tempo. O mesmo pode ser dito da corrupção sistêmica, não obstante o começo mais efetivo do combate que se lhe vem dando. Ou seja, a disputa pautada pelo bolsonarismo está assentada sobre a fantasia de um avanço decisivo no combate à criminalidade violenta, expectativa descabida em se tratando de um mandato presidencial e num país ainda encalhado nas condições econômicas legadas pelo governo da sra. Dilma Rousseff.
O que, sim, cabe, e é imperativo, todos sabemos. É restaurar a confiança dos agentes econômicos no governo e no País e, com paciência e realismo, começar a repor a economia nos trilhos. É certo que Bolsonaro conta com a ajuda de um economista respeitado, o sr. Paulo Guedes, mas acreditar que biografias tão rigorosamente antitéticas irão harmonizar-se no dia a dia do governo é um ato de fé.
Subjacente às incongruências acima delineadas há uma disfunção grave: o famigerado horário eleitoral gratuito. Originária da longínqua eleição legislativa de 1974, essa aberração é a quadratura do círculo: uma tentativa de enquadrar os candentes problemas que afligem o País numa moldura política circense. É um fator importante na redução dos partidos a agremiações meramente cartoriais e para a desmoralização da política de modo geral.
Se a reforma política voltar à pauta, eu me atreveria a oferecer duas soluções simples. Primeiro, separar a eleição executiva (presidente e governadores) da legislativa (senadores e deputados federais e estaduais), ficando estas para um ou dois meses depois, como na França. Enxugando, assim, a eleição executiva, seria simples estabelecer um procedimento sério para o debate entre os candidatos, realizando-se um debate por dia, com a duração de, digamos, duas horas. O Tribunal Superior Eleitoral procederia ao sorteio do primeiro candidato, aquele que daria início à discussão, escolhendo o adversário de sua preferência; estes dois ficariam excluídos dos sorteios sucessivos, para que todos ficassem contemplados. Durante uma semana, num auditório apropriado, teríamos, então, o enfrentamento de dois e apenas dois candidatos, com o tempo necessário à adequada elucidação das semelhanças e diferenças entre suas propostas. O processo se repetiria na semana seguinte, com os candidatos a governador, dentro do mesmo formato.
Racionalizados os confrontos da campanha, e com base em estudos técnicos apropriados, a legislatura poderia debruçar-se sobre o magno problema do sistema de governo: vamos manter o aberrante “presidencialismo de coalizão” ou vamos discutir a sério a opção parlamentarista? As outras questões que têm sido debatidas – a do sistema eleitoral (a escolha entre o proporcional atual, o distrital puro ou o distrital misto), mas também meios para evitar a proliferação desordenada de partidos, o financiamento das campanhas, etc. – deveriam ser analisadas após as duas cruciais decisões a que me referi: a reorganização da campanha eleitoral e a opção entre os dois sistemas de governo.
(*) *Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências e diretor do Ciclo de Estudos de Política, Economia e História
O Estado de São Paulo
15 de setembro de 2018

A eleição mais importante desde o fim da ditadura (Fernando Abrucio)

Desde a volta da democracia, nunca um evento será tão importante quanto a eleição de 2018. Claro que foi traumática a posse de Sarney, após a fatídica morte de Tancredo Neves. Mas não havia como retornar à ditadura, tão desprestigiados que estavam os militares na época. As crises econômicas de 1999 e 2008 foram graves, mas o poder político soube resolvê-las bem. Dois impeachments são episódios mais dramáticos. No primeiro, houve uma reconstrução do sistema político, que se tornou estável e bem-sucedido por 20 anos. A situação atual, para além do impedimento da presidente Dilma, representa o colapso de várias dimensões da vida brasileira. Por isso, o próximo presidente terá uma tarefa hercúlea pela frente.
Vive-se hoje uma soma de múltiplas crises, que gera uma combinação explosiva para o país. Tentar entender cada uma dessas dimensões é uma forma tanto de mostrar o tamanho gigantesco de nosso buraco, como também de compreender quais serão os desafios que terão de ser enfrentados pelo novo presidente.
Começo pela crise econômica, cujo termômetro mais visível está na estagnação econômica e no desemprego de quase 13 milhões de brasileiros. Qualquer mudança nessa seara será gradual. Será preciso reconstruir o Estado, seja no que se refere ao ajuste fiscal, seja no que tange à eficiência (fazer mais com menos) e efetividade (impacto) de sua intervenção. Em outras palavras, o governo terá que reduzir seu déficit e melhorar seu desempenho.
Sem mudar, com alguma rapidez, o cenário fiscal, demonstrando que o governo federal caminhará nos próximos anos para ter maior solvência, será difícil reativar a economia. Claro que é possível ter diferentes tipos de ajuste, mas o número de possibilidades é menor do que gostariam os candidatos. Será uma combinação de cortes de despesas com aumento de receita, mas as opções factíveis de cada lado são diminutas. Algum tipo de reforma previdenciária e venda de ativos estarão na pauta do presidente eleito, quem quer que seja ele. Aumento de tributação de lucros e dividendos e majoração de imposto das pessoas mais ricas (IR e sobre heranças, por exemplo), além da criação de um novo IVA, na linha proposta por Bernard Appy, são caminhos interessantes.
Sabe-se razoavelmente o que fazer, mas as condições políticas terão de ser construídas por um presidente legitimado pelo voto e que terá de ser, sobretudo, hábil nas negociações. Não se pense que a agenda de reformas econômicas será realizada porque o candidato a promete. Isso é conversa de quem não entende de política. A capacidade negociadora, do governante e dos líderes de sua coalizão, deveria ser uma das principais variáveis definidoras do voto, principalmente nesse momento em que a crise exige rapidez na mudança.
Uma transformação econômica mais profunda dependerá de algo além do ajuste fiscal. A infraestrutura, por exemplo, está muito sucateada, e sem um grande investimento nessa área o crescimento será limitado nos próximos anos. Vale destacar ainda que a produtividade está estagnada e, não conseguindo alterá-la, não teremos como competir com os países que têm se desenvolvido mais nos últimos anos. Aqui, a variável capaz de mudar mais estruturalmente a situação é a educação. A divulgação recente dos resultados do Ideb, particularmente em relação ao fraco desempenho no ensino médio, mostra que o próximo presidente terá de liderar uma revolução educacional. Aí está mais um elemento decisivo para definir o voto: saber se o candidato tem uma proposta sólida para mudar sistema educacional, baseada no conhecimento das melhores experiências internacionais e nacionais.
A educação faz a ponte com outra dimensão da crise: pior do que o colapso econômico é a enorme deterioração social do país. Claro que há impacto do desemprego e da estagnação neste cenário, porém, a maior parte do problema está em lacunas, fragilidades e falta de recursos (não só financeiros, mas também de capital humano) nas políticas sociais, nos campos educacional, de saúde, de combate à violência e de ataque às desigualdades e à pobreza. Sem melhorar a ação em tais setores, o próximo presidente perderá rapidamente a legitimidade, mesmo que consiga fazer as reformas econômicas.
É interessante que a opinião pública sempre pede um "dream team" para a área econômica e não faz o mesmo para os ministérios da área social. Aliás, foi essa estratégia que orientou o governo Temer, cuja popularidade está hoje quase embaixo da terra. A precarização crescente da vida social no país obriga o próximo presidente a escolher os melhores quadros, políticos e técnicos, para a saúde, educação, desenvolvimento social, segurança pública e políticas urbanas.
A dimensão mais ampla e relevante do colapso atual está na política. Sem resolvê-la, será muito difícil mudar todo o resto. A perda do eixo político começou em 2013 e se aprofundou cada vez mais de lá para cá. Os principais partidos perderam força, os políticos reduziram ao nível do chão (talvez do subsolo) sua credibilidade e a polarização ideológica inviabilizou o diálogo social, redundando em atos de violência, como os perpetuados contra a caravana de apoio ao presidente Lula, no assassinato de Marielle Franco (até hoje não elucidado) e no estúpido atentado contra Jair Bolsonaro. Mudar este clima e pacificar o país será condição sine qua non para conseguir governar minimamente o país. Quem ganhar terá de conversar com os principais perdedores e os grupos que eles representam, de modo que ao menos se evite que o ódio continue orientando boa parte da sociedade brasileira.
A reconstrução política passará por criar um novo eixo partidário de apoio ao eleito, bem como haverá uma reorganização da oposição. Não estamos mais no regime autoritário em que havia o partido do sim e o do sim, senhor. Será preciso montar uma base partidária orgânica, capaz de negociar e produzir consensos em relação aos projetos governamentais. A despeito de se vender a ideia que o governante pode falar e convencer os congressistas individualmente, é muito melhor, para o presidente e para a democracia, que a relação entre Executivo e o Legislativo seja feita com os partidos. Todos os países com sólida democracia fazem isso, sem que o resultado seja necessariamente apoiar negociatas que levem à corrupção.
A costura político-institucional passará, ainda, pela federação. Muitos governos estaduais (bem como os municipais) estão quebrados, e neles tomarão posse em janeiro de 2019 governadores eleitos por diversos partidos. O presidente precisará dialogar com eles, buscar apoio e levar também ajuda. Cabe lembrar que a cada crise num Estado, como mostram os exemplos recentes do Rio de Janeiro e em Roraima, o governo federal se enfraquece junto à população. Os principais serviços públicos são ofertados pelos governos subnacionais, de maneira que eles são o principal veículo de combate à crise social. Se esse processo de implementação descentralizada fracassa, o efeito é negativo para os governantes dos três níveis.
Há também um descompasso entre as instituições de Justiça e o sistema político. Propor um reequilíbrio não é uma forma de "parar a Lava-Jato", como gostam de dizer alguns. Efetivamente, o Supremo Tribunal Federal ultrapassou, em alguma medida, suas atribuições e logo será cobrado pelos problemas do país e pelo fracasso das políticas públicas. Haverá igualmente um limite para o Ministério Público, porque ao aumento do sentimento antipolítico poderá corresponder a eleição de um alguém que reduzirá dramaticamente o controle institucional para "responder mais rápido ao povo". Foi o que Erdogran fez na Turquia. Para evitar esse caminho, será preciso que as principais lideranças políticas e o alto escalão do Judiciário conversem para delimitar o que cabe a cada um.
E aqui nos encontramos com o impacto mais negativo que o colapso atual pode produzir: enfraquecer sensivelmente a democracia, ou mesmo levá-la ao ocaso. Quando o candidato a vice-presidente de Jair Bolsonaro diz, em entrevista à Globonews, que é possível um autogolpe executado pelas Forças Armadas, essa visão é mais nefasta do que uma má política econômica, porque a instauração do autoritarismo afeta todas as dimensões da vida humana, inclusive, mais dia ou menos dia, a economia, como o caso venezuelano expressa fielmente. E quando vários candidatos quase ignoram que precisarão do Congresso Nacional para governar, fica a pergunta: com quem e de que modo exercerão a democracia?
Pela primeira vez desde que Sarney conseguiu tomar posse, a democracia corre risco real no país. Para sairmos das crises econômica e social, precisaremos da boa política, baseada na negociação democrática. Para sairmos da polarização tresloucada, que só tem produzido ódio e violência, os principais líderes e partidos políticos terão de conversar, aceitar o outro lado e até mesmo buscar formas de compatibilização de ideias. Para sairmos do buraco e protegermos a democracia, teremos de lembrar da frase célebre de Max Weber, quando a Alemanha estava tão perdida como estamos atualmente: "fora da política não há salvação".
(*) Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
Valor Econômico
14 de setembro de 2018

Sem bravatas nem ameaças (Maria Herminia Tavares de Almeida)

Os eleitores que pretendem votar em Jair Bolsonaro não são todos farinha do mesmo saco. Há os que se identificam com as ideias do candidato e acreditam, como ele, que os problemas de segurança se resolvem pela violência com a participação de cidadãos armados; que é natural mulheres ganharem menos que os homens pelo mesmo trabalho; que os negros são indolentes, os homossexuais, pervertidos (ou doentes); que os torturadores são heróis e que a “petralhada” deve ser combatida a disparos de fuzil.
Decerto há também aqueles cujo antipetismo visceral os leva a considerar o capitão o mal menor. Alguns, otimistas, afirmam até que a sua eventual vitória não colocaria a democracia em risco, pois trata-se de um candidato como os outros que joga dentro das regras, e, eleito, governará com elas. Entre estes, por sinal, parece aumentar o contingente dos que invocam o seu guru ultraliberal para reforçar tal expectativa.
Com a candura dos justos e a soberba de quem confia cegamente no próprio taco, o economista Paulo Guedes declarou à repórter Malu Gaspar, da revista Piauí (edição de setembro): “Todo mundo trabalhou para o Aécio, ladrão, para o Temer, ladrão. Aí chega um sujeito completamente tosco, que pode mudar a política. Amansa o cara! Acho que Bolsonaro já é outro animal.”
Ao economista e àqueles que com ele compartilham a ilusão de “amansar o animal”, recomenda-se a leitura de dois textos que, na semana passado, agitaram a elite da opinião pública nos Estados Unidos: o artigo anônimo de um alto funcionário da Casa Branca, publicado na terça feira pelo New York Times, e trechos de “Fear: Trump in the White House” (Medo: Trump na Casa Branca) novo livro do jornalista Bob Woodward, que, em parceria com Carl Bernstein, revelou o escândalo de Watergate, sepultando a carreira política de Richard Nixon, lá se vão quatro décadas.
Nos dois casos, o assunto é a intimidade da Presidência Trump e os esforços de assessores graduados para limitar o desastre político provocado pelo mandatário —a quem descrevem como tosco, prepotente, mentiroso, profundamente ignorante e desinteressado dos fatos cujo conhecimento é essencial ao exercício do governo.
Depois de um ano e meio da ascensão de Trump, nada parece indicar que tenha sido possível “amansar o animal”, a ponto de não poucos observadores e analistas se perguntarem se a democracia americana não estaria em perigo, ameaçada não por um golpe, mas pela corrosão lenta das instituições e valores democráticos.
As semelhanças entre Trump e Bolsonaro são evidentes, para além da admiração confessa do brasileiro pelo americano. Ambos fazem parte de uma categoria de políticos de direita extremada, chamados populistas, em franca expansão pelo mundo —até na Suécia, como se acaba de ver. Populistas como Trump lidam aos trancos com os instrumentos do governo democrático, que requerem do titular do Executivo enormes reservas de aptidão para negociar divergências e coordenar expectativas. Com Bolsonaro, é de esperar o mesmo —na menos ruim das hipóteses.
Entre os sistemas congêneres, o presidencialismo brasileiro é um mecanismo especialmente delicado que não pode prescindir da habilidade política do chefe do Executivo. Funcionando mediante um arranjo no qual a maioria parlamentar necessária à governança depende forçosamente de coalizões partidárias —às vezes, de muitas legendas—, o presidencialismo brasileiro demanda um dirigente com experiência política e atributos de liderança, ouvindo, negociando e sedimentando convergências.
O presidencialismo de coalizão só funciona quando o presidente consegue coordenar a sua base no Congresso. Isso não se faz com bravatas e ameaças; não é tarefa, para populistas que falam grosso, apontam armas imaginárias e oferecem soluções simplórias.
(*) Maria Herminia Tavares de Almeida professora titular aposentada de Ciência Política da USP e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Folha de S. Paulo
12 de setembro de 2018

Haddad, a história aberta (Demétrio Magnoli)

Uma leitura circunstanciada das sondagens eleitorais indica que Fernando Haddad, o Lula de reposição, é o favorito para subir a rampa do Planalto em janeiro de 2019. Bolsonaro dificilmente perderá uma vaga no segundo turno, pois as chances de Alckmin repousam apenas na esperança de que a propaganda eletrônica produza um milagre. Há tempo suficiente para os eleitores lulistas receberem a notícia da reposição —e quase 70% deles dizem-se prontos a seguir a ordem de Lula. No turno final, a rejeição a Bolsonaro elege qualquer adversário. A chance real de vitória situa Haddad numa encruzilhada histórica: ele deve optar entre inércia e ousadia.
A via inercial é a reiteração da narrativa negacionista adotada pelo lulopetismo desde 2016. O núcleo dessa narrativa encontra-se na qualificação do impeachment como “golpe parlamentar”, que tem repercussões para trás e para frente. Numa ponta, o PT recusa-se a fazer a crítica da política econômica dilmista. Na outra, consequentemente, rejeita o princípio do equilíbrio fiscal.
Marcio Pochmann, coordenador do programa econômico de Lula/Haddad, argumenta que o erro do governo Dilma não foi a política de explosão de gastos, mas sua reversão, em 2015, pela entrega do Ministério da Fazenda a Joaquim Levy. A tese insana foi assumida pelo próprio Haddad, que a expôs em entrevista a “O Estado de S.Paulo”: “Houve uma decisão de política econômica equivocada, com um ministro da Fazenda que expressava a ruptura do que tinha sido feito em 13 anos”. A acrobacia revisionista suporta o programa da restauração do dilmismo: abolição do teto de gastos, rejeição da reforma previdenciária, cancelamento da reforma trabalhista.
Criada para aquecer a militância na hora da derrota, a narrativa serve para a finalidade de angariar votos — mas não para governar. Na moldura da nova “crise dos emergentes” deflagrada na Turquia e na Argentina, nossa trajetória fiscal será punida implacavelmente pelas forças de mercado. Um Haddad triunfante à base do discurso populista reproduziria o estelionato eleitoral de Dilma, mas seu giro ortodoxo teria que ser operado em meio a um cenário econômico externo hostil. É uma receita para o desastre.
A depressão econômica foi contratada, desde 2010, pela deriva populista de Lula e Dilma. O recuo ortodoxo dilmista de 2015 foi um remédio tardio aplicado a um doente em coma. Lula, ele mesmo, admitiu os erros colossais de política econômica (atribuindo-os, todos, à sua sucessora), ao defender o nome de Meirelles para a Fazenda, logo após a reeleição de Dilma. O revisionismo histórico lulopetista inspira-se nas antigas enciclopédias soviéticas, que apagavam fatos e fotos inconvenientes. Pochmann, um doutrinário incorrigível, acredita nele. Já Haddad não crê em bruxas, como indicam suas declarações semiprivadas a interlocutores do meio empresarial e do mercado financeiro. Nesse contraste, mora uma possibilidade.
O PT desceu à trincheira do populismo para escapar a um encontro com o futuro. A “era lulista” chega ao fim, como resultado da catástrofe dilmista, do impeachment e da condenação de Lula. O revisionismo negacionista é uma tentativa agônica de conservar um mundo de certezas partidárias que se dissolve. A prolongação artificial do lulismo num hipotético governo Haddad atiraria o país numa espiral caótica similar à que capturou o Estado do Rio de Janeiro. O vórtice consumiria, junto, o PT.
A saída existe, mas depende da integridade política e da independência intelectual de Haddad. O candidato inventado no laboratório lulista tem a oportunidade de corrigir a narrativa ainda durante a campanha eleitoral, falando em público aquilo que fala entre quatro paredes. O reconhecimento franco de um certo número de realidades ancoraria as expectativas do mercado, estabeleceria as fundações de um amplo acordo anti-Bolsonaro no segundo turno e eliminaria o espectro do estelionato eleitoral. Paralelamente, reconciliaria o PT com o futuro, inaugurando o pós-lulismo. Haddad pode ousar, refundando a esquerda brasileira, ou optar inercialmente pelo destino de Dilma.
O Globo
10 de setembro de 2018

sábado, 8 de setembro de 2018

As capitanias herdadas e o centrão na política brasileira (Silvana Krause)

As heranças herdadas se adaptam. Os velhos tempos não sucumbem e funcionam como matriz genética que carimba e cativa nossa alma política.
Na entrevista do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso a “O Estado de S. Paulo”, em 18 de maio, houve um esforço para filtrar e separar o centro do centrão. O primeiro seria fundamentado em uma união do “Centro Democrático e Reformista”, a “banda boa” liderada por PSDB, DEM, MDB e PTB. O segundo, fisiológico, associado ao “toma-lá-dá-cá”.
“De lá para cá”, o espírito do centrão venceu? Diria que não somente venceu o desejo de FHC, um “centro limpo”, como provavelmente garantiu vagas em um próximo governo. O problema é que as siglas consideradas “desintoxicadas” por FHC são também contaminadas pelo espírito do centrão.
Independentemente de quem ganhar, tudo indica que boa parte dos associados do PSDB (PP, PTB, PSD, SD, PRB, DEM, PPS, PR) e outras agremiações de peso estão de prontidão para o que der e vier.
O centrão na Constituinte não era exatamente o mesmo que hoje é assim denominado. Porém, há uma lógica no seu funcionamento que é de ontem e de hoje, reside acima de uma ordem partidária, funciona ao lado dos tratados formais e está muito presente em legendas que não são “flash”, ou seja, aquelas que aparecem e desaparecem sem deixar rastros.
Deputados e senadores constituintes do centrão residiam, em sua maior expressão, no PMDB/MDB, PFL/DEM, PDS/PP e PTB e foram centrais para sustentar o mandato de cinco anos de Sarney. Não muito diferente foi a importância de lideranças destas mesmas legendas para a aprovação da emenda em 1997 que permitiu a reeleição de Fernando Henrique.
A aliança de Alckmin tem o suporte de partidos que em outros tempos já compuseram o centrão. O governo Temer também está habitado pelo centrão e foi fundamental para a aprovação do impeachment de Dilma. A oferta da candidatura pouco competitiva de Meirelles (MDB) sinaliza apenas a tradição de espera da legenda, já conhecida, para composições de um futuro governo.
Embora o termo centrão não seja aplicado aos governos do PT, é necessário reconhecer que lideranças de legendas do PP, MDB/PMDB, PL e PTB formaram um bloco para a sustentação da governança de Lula após a crise do mensalão e do governo Dilma. O PP de Maluf foi importante para a vitória de Haddad na eleição para a Prefeitura de São Paulo em 2012. O PRB, partido integrante do centrão de Alckmin, participou de três coligações nacionais lideradas pelo PT.
A atual configuração do centrão já ilustra a maldição da infidelidade. Ela está deitada no berço do funcionamento das capitanias herdadas e disputadas nas unidades da Federação. Aliados de Alckmin usam a conhecida receita para manterem seus feudos resguardados. Não garantem palanques para o candidato peessedebista e se rendem da esquerda à direita seguindo a ordem regional ditada. Exemplos são vários, como o PP na Bahia e Ceará associado com o PT. O DEM em Goiás construiu uma aliança estadual com legendas que vão desde apoiadores de Ciro a Alvaro Dias e Bolsonaro.
É preciso se ater ao significado e sentido dado ao centro nas democracias europeias após a Segunda Guerra e o que está colocado na tradição do nosso país que se repete nesta eleição. A experiência do trauma de polos extremos na disputa política gerou nestes países uma aversão a sobressaltos ou manobras políticas bruscas. O nosso centro é volúvel, desabitado de sentido capaz de produzir um projeto político próprio. Por ser amorfo, toma a forma do projeto com que se associa.
O PT foi buscar o centro especialmente a partir de 2005. Uma longeva relação de dez anos. Como num conto de fadas invertido, casou com a Bela, mas litigou com a Fera, em função dos novos ventos da zona cinzenta das circunstâncias. A Fera habitava a Bela. E sempre habitará, seja à direita ou à esquerda. O desafio é manter um controle que circunscreva a Fera dentro da Bela. É a conta a ser paga pela nossa democracia.
(*) Silvana Krause, é professora e pesquisadora de pós-graduação em ciência política na UFRGS; ex-bolsista da Fundação Konrad Adenauer
Folha de São Paulo
5 de setembro de 2018