domingo, 31 de julho de 2011

O baú dos templários (Edson Aran)

Não é por acaso que a direita fundamentalista se inspirou nos templários: eles são os maiores heróis (ou os piores vilões) de toda a cristandade

Até que demorou para a extrema direita europeia buscar inspiração nos templários para seus atos terroristas, como fez Anders Breivik.
O norueguês homicida afirma pertencer a uma nova Ordem dos Cavaleiros do Templo, que reúne europeus engajados em combater o multiculturalismo em geral e o islã em particular.
Faz sentido. Dependendo do ponto de vista, os templários são os maiores heróis da cristandade -ou os piores vilões.
A ordem foi fundada no 19º ano do Reino Cristão de Jerusalém, que havia sido conquistado meio por acaso em 1099, durante a Primeira Cruzada. Como a população da cidade fora dizimada pelos invasores -que não fizeram distinção entre cristãos ortodoxos, judeus e muçulmanos-, os novos soberanos passaram a pregar a imigração de europeus para a Terra Santa.
O problema é que as rotas eram infestadas de criminosos. Em 1118, Hugo de Payens e mais oito cavaleiros criaram uma organização autônoma de monges combatentes para proteger os peregrinos. A ordem jurava fidelidade apenas ao papa e, financiada por impostos eclesiásticos, se tornou o primeiro exército regular do Ocidente desde a queda de Roma em 476 d.C.
Com a conquista de Jerusalém por Saladino, em 1187, os templários voltaram sua atenção para a Europa, onde adquiriram vastas extensões de terra e organizaram um rudimentar sistema bancário. As lendas, no entanto, os transformaram em guardiões do Santo Graal, o místico cálice que Jesus Cristo usara na Santa Ceia e que servira para recolher seu sangue na cruz.
Os mitos do Graal são uma espécie de compensação cultural pela perda da Terra Santa para o islã.
Não por acaso, em narrativas posteriores, o cálice se transforma na própria descendência de Cristo e Maria Madalena, que, refugiada no sul da França, dá origem à dinastia dos reis merovíngios e, mais tarde, à casa dos Habsburgos, soberanos do Império Austro-Húngaro. A linhagem, como o cálice, estaria sob a proteção dos templários, braço armado de organização ainda mais misteriosa, o Priorado de Sião.
Ao contrário da trama de "O Código Da Vinci", de Dan Brown, os guardiões do Graal não querem promover filosofia "new age", mas restaurar a monarquia na França e restabelecer o Reino Cristão de Jerusalém. Afinal, Jesus Jr., além de merovíngio e Habsburgo, também descende do rei Davi e, portanto, é legítimo soberano da Terra Santa.
Nada agrada mais à extrema direita do que sociedades secretas excludentes e elitistas. O nazismo sempre foi associado a ordens esotéricas, que, no entanto, não o salvaram da derrota. Os templários não tiveram melhor sorte.
A ordem foi exterminada em 1307, quando o último grão-mestre, Jacques De Molay, foi condenado à fogueira por heresia. A Inquisição acusava os cavaleiros de adorarem um demônio de três cabeças chamado Bafomé. Entre os ocultistas, a criatura é associada à sabedoria, mas há também quem veja em seu nome uma corruptela de "Maomé", que a ordem teria aprendido a cultuar na Terra Santa.
Se deus existe, ele tem mesmo um senso de humor dos diabos.
EDSON ARAN é autor de "Conspirações - Tudo o que Não Querem que Você Saiba" e diretor de Redação da revista "Playboy".

O negreiro e a letra morta (Eleonora de Lucena)

Como a lei que tentou proibir o tráfico, há 180 anos, foi só "para inglês ver"
RESUMO
Em 1831, sob pressão inglesa, o Brasil aprovou lei para proibir o tráfico negreiro, que, no entanto, ainda vicejou por décadas no país, sob os auspícios de cafeicultores, traficantes e do Estado. No Brasil, em Cuba, nos EUA e no Haiti, o comércio de escravos prosperou, simbolizado pelo navio negreiro, misto de feitoria e prisão.

ELEONORA DE LUCENA

O Brasil foi o campeão mundial da escravidão moderna, a dolorosa base de construção do capitalismo. Na véspera da Independência, em 1820, dois terços da população eram de escravos; de 1790 a 1830, eles representaram dois terços de todas as importações brasileiras.
Só nesse período, desembarcaram no Rio 700 mil africanos. Em 1840, mais escravos foram traficados no mercado do Valongo --cujas ruínas foram descobertas no início deste ano, durante as obras no porto carioca-- do que em todos os mercados de Nova Orleans juntos. O Rio de Janeiro foi a maior cidade escravista do mundo desde a Roma antiga.
Neste ano se completam 180 anos da lei que proibiu o tráfico de escravos. Letra morta, ela passou para os livros como a que foi feita para "inglês ver" e virou expressão nacional.
Quatro novos livros, de historiadores brasileiros e norte-americanos, cruzam as histórias de Brasil, EUA e Cuba para dissecar essa história violenta. Mostram um mundo em transformação, no qual os interesses da acumulação capitalista entram em conflito com as insurreições e as contradições da formação do mercado consumidor.
As batalhas ocorreram nos mares, nos rios africanos, nos parlamentos, nas senzalas e nos jornais; entre seus pontos cruciais estão o movimento abolicionista, a revolta que criou o Haiti, os canhões ingleses e a guerra civil nos EUA.

NAVIO Um dos lançamentos mais interessantes é "O Navio Negreiro - Uma História Humana", de Marcus Rediker [trad. Luciano Machado, Companhia das Letras, 464 págs., R$ 64]. Professor de história marítima da Universidade de Pittsburg (EUA), Rediker mescla cifras, análise política e depoimentos de atores do que foi a maior migração forçada da história.
Nos 400 anos de história do tráfico (do fim do século 15 ao fim do século 19), Rediker contabiliza 12,4 milhões de embarcados em navios negreiros. Destes, 1,8 milhão morreu durante a viagem e foi jogado ao mar.
O rigor com as estatísticas não esconde os dramas por trás delas, como o caso do navio Zong, que, em 1781, levava 470 escravos para a Jamaica quando uma doença se espalhou, matando 60 africanos e sete tripulantes.
O capitão Luke Collingwood calculou: se os escravos tivessem morte natural, a perda seria dos traficantes; se fossem jogados ao mar, o prejuízo seria da seguradora. Não hesitou: atirou ao mar 122 cativos; dez se suicidaram. O caso foi parar na Justiça e atiçou o abolicionismo.
Rediker ancora a narrativa no navio: sua construção (por mãos escravas), sua tecnologia (das mais avançadas), sua tripulação (jovens pobres endividados), seu comando (despótico e cruel), sua carga (amontoada), sua rotina (doenças, motins, estupros, suicídios, assassinatos). Não raro, tubarões seguiam as embarcações atrás de cadáveres.
Não é uma leitura leve, admite o próprio autor. Às vezes faz lembrar "Coração das Trevas", de Joseph Conrad (1857-1924), ou evoca a imagem da instalação de Emanoel Araújo sobre um navio negreiro exposta no Museu AfroBrasil, em São Paulo.

DESESPERO Dicky Sam, pseudônimo de um escritor de Liverpool --base britânica do tráfico e palco de revoltas--, descreveu assim o negreiro: "O capitão brutaliza os homens, os homens torturam os escravos, o coração dos escravos se afoga em desespero".
Rediker enfatiza que o navio negreiro foi uma peça fundamental para a ascensão do capitalismo. Ajudou a tomar terras e a expropriar milhares de pessoas, deslocando-as para explorar minas de ouro e prata, cultivar tabaco e cana-de-açúcar. Também foi vital para o desenvolvimento do comércio de longa distância e para a acumulação de riquezas e de capitais de forma inédita.
O barco era uma feitoria e uma prisão. A violência estava no seu cerne. As mortes faziam parte de um negócio que, se tudo corresse bem, podia garantir aos traficantes um lucro de 100%.
Outro estudioso do tráfico, Gerald Horne, cita uma estimativa de Henry Wise (1806-76), que foi governador da Virgínia e atuou como principal diplomata dos EUA no Brasil: o lucro com o tráfico de escravos variava de 600% a 1.200%.
O destino mais lucrativo para os negreiros era o Brasil, diz Horne, que teve seu "O Sul Mais Distante - Os Estados Unidos, o Brasil e o Tráfico de Escravos Africanos" [trad. Berilo Vargas, Companhia das Letras, 488 págs., R$ 59,50] incluído na recente fornada de livros sobre o assunto.
Professor da Universidade de Houston, Texas, Horne lembra que, de 1500 a 1800, chegaram às Américas mais africanos do que europeus. De 1600 a 1850, 4,5 milhões de escravos desembarcam no Brasil, dez vezes a quantidade levada para a América do Norte.
O autor enfatiza que a maior parte da riqueza dos grandes países da Europa e da América do Norte foi acumulada graças à escravidão: a fase mais intensa e lucrativa do tráfico foi financiada por capitais dos EUA, em navios norte-americanos, com tripulação e bandeira ianques.

BRASIL E EUA O grande mérito do livro de Horne é descrever como as relações diplomáticas, comerciais e políticas entre Brasil e EUA se entrelaçavam e aproximavam escravocratas de lá e de cá. Juntos, os dois países chegaram a abrigar 67% dos escravos das Américas.
Os EUA eram o principal mercado para os cafeicultores brasileiros, que, por sua vez, eram os maiores compradores de escravos. Se o norte dos EUA lucrava com a construção de navios e com o tráfico, o sul via no Brasil uma possível válvula de escape para a economia escravocrata.
Mesmo antes da eclosão da Guerra Civil Americana (1861-65), uma parcela mais conservadora dos confederados acalentou planos de transferência de proprietários sulistas (e de sua escravaria) para a Amazônia e outras regiões do Brasil. Enxergavam em d. Pedro 2º um aliado, mas não conseguiram um esperado engajamento brasileiro na guerra contra o norte.
Grupos de derrotados da Guerra de Secessão chegaram a aportar por aqui; a maioria voltou desiludida. No entanto, em Santa Bárbara do Oeste e Americana, ambas no interior paulista, os confederados ficaram.
Horne traz relatos pavorosos da vida no Brasil escravocrata. Durante a corrida do ouro para a Califórnia, os navios contornavam o cabo Horn, no extremo sul da América, e chegavam ao Rio, onde os viajantes viam corpos pelo chão, sangue no porto, escravos sujos, maltrapilhos, doentes.
Numa época em que abolição era palavra maldita, foram os estrangeiros que verbalizaram os temores de revoltas. O reverendo Robert Walsh, impressionado, achava que os africanos "descobrirão a força que têm". Previa que o Brasil viraria um Haiti, palco de radical revolta escrava.
Walsh descrevia a situação dos cativos como "revoltante para a humanidade". Andavam nus, com a pele criando cascas "como as do elefante"; até cavalos e mulas desfrutavam de "situação muito superior à dos negros".

CAFÉ Os lucros do café, porém, ainda justificavam para a elite brasileira da época todo o horror da escravidão. A ação dos cafeicultores na política brasileira que a respaldava é o tema de Tâmis Parron no seu "A Política da Escravidão no Império do Brasil - 1826-1865" [Civilização Brasileira, 374 págs., R$ 49,90].
Mestre em história social pela USP, Parron mostra como a expansão do cativeiro foi simultânea à formação do Estado nacional. O dinheiro do tráfico e dos senhores de escravos nutria o orçamento estatal e formatava a política. Foi com esse suporte que Pedro 2º, por exemplo, conseguiu abafar as revoltas regionais que eclodiram no século 19 (Farroupilha, Sabinada, Balaiada, Cabanagem).
O historiador busca nos documentos a retórica que fundamentou a escravidão. Avalia que, de início, a norma de 1831 ("para inglês ver"), que tentou proibir o tráfico --atividade que chegou a estar concentrada em 29 famílias--, não foi tão inócua como se imagina: muitos a abandonaram para investir em imóveis no Rio.
Montados em negócio tão lucrativo e central para o país, os escravocratas conseguiram bloquear a implantação da lei, que previa a libertação de escravos trazidos ilegalmente e punia fazendeiros e traficantes.
O Estado incorporou a defesa dos interesses dos senhores de escravos, especialmente os do eixo Rio de Janeiro-vale do Paraíba-Minas Gerais, que, entre 1831 e 1850, concentrou 78% do contrabando negreiro.
A percentagem é idêntica ao rol de petições no Congresso a favor do tráfico procedente de Minas e do Rio (87%, se somadas às do vale do Paraíba, que chegou a ser o maior produtor mundial de café). Um "caso bem raro em que a matemática da política coincide com a matemática do crime", escreve Parron, ao apontar como os interesses regionais do contrabando tomaram conta do Estado.
Parron descreve as articulações políticas e as reações às revoltas escravas. Uma das mais importantes foi a dos malês, na Bahia, em 1835, quando cerca de 600 cativos se rebelaram: quase 70 foram fuzilados imediatamente. João José Reis, no seu "A Rebelião Escrava no Brasil" (Companhia das Letras), conta a história em detalhes.
Antes dela, em 1833, em Carrancas (comarca do Rio das Mortes, MG), os cativos mataram nove membros da família do deputado e fazendeiro Gabriel Junqueira. Cinco escravos foram mortos de pronto e 12 foram enforcados na praça de São João Del-Rei.
Houve ainda a rebelião de Vassouras (RJ), onde 70% da população era de africanos. Lá, em 1838, centenas de escravos fugiram para formar um quilombo. Foram caçados, e o líder, Manoel Congo, acabou enforcado. Parron mostra como os silêncios e os discursos no parlamento tentavam manipular os efeitos das revoltas.

GRÃ-BRETANHA No front externo, a Grã-Bretanha fazia mais pressão. Eric Williams, no seu clássico "Capitalismo e Escravidão" (1964), explica as razões da potência escravista que se tornou abolicionista: a dinâmica da revolução industrial capitalista.
Em 1850, o Brasil sucumbiu ao poder bélico britânico, aceitando interromper oficialmente o tráfico. Aprovou a Lei Eusébio de Queirós, parlamentar que manobrou para esconder a pressão externa, como mostra Parron.
Os senhores de escravos tentaram resistir ao vendaval abolicionista criando novas fontes de abastecimento de mão de obra --escrava ou não. O fim do contrabando liberou capitais para investimento e provocou especulação com os preços das commodities.
Reproduzindo debates parlamentares, às vezes de forma caudalosa, Parron relata como o país conviveu com a escravidão num contexto em que o liberalismo avançava no mundo inteiro. Ou como as ideias de liberdade e de soberania nacional foram usadas pelos escravocratas para rechaçar os abolicionistas, apontados como advogados de interesses externos, especialmente britânicos.
O livro de Parron poderia ter a preocupação de proporcionar uma leitura mais fluida e didática. Mas acerta ao apontar a participação direta do Estado brasileiro, com seu arcabouço político e jurídico, no "mais volumoso contrabando ilegal de seres humanos de que se tem notícia na história ocidental".

HAITI Com uma contextualização mais abrangente, o mesmo Tâmis Parron, com Márcia Berbel e Rafael Marquese, escreveu "Escravidão e Política - Brasil e Cuba, 1790-1850" [Hucitec, 396 págs., R$ 47]. Berbel e Marquese são professores da USP: ela, de história ibérica; ele, de história da América colonial.
Os autores descrevem como os senhores de escravos impuseram seu projeto em meio ao colapso do sistema colonial, ao avanço do "internacionalismo abolicionista" e à expansão do mercado mundial decorrente da industrialização.
A revolução escrava na colônia francesa de Santo Domingo, que resultou na criação do Haiti, Estado controlado por ex-escravos --"variável histórica inédita", ressaltam os historiadores--, é um ponto de virada nessa história.
A colônia, que chegou a abastecer mais da metade do açúcar consumido na Europa, foi tomada por uma revolta iniciada em 1791. Os rebelados derrotaram as tropas de Napoleão e criaram um Estado independente, em 1804. O cubano Alejo Carpentier (1904-1980) escreveu um memorável romance inspirado nesses fatos: "O Reino Deste Mundo" (1948). A revolta haitiana foi o modelo para diversas rebeliões nas colônias britânicas, provocando a abolição na década de 1830.

CUBA No Brasil e em Cuba, no entanto, "a ganância superou o medo", notam os historiadores. Ambos passaram a investir mais na escravaria para aumentar a produção, abocanhar o mercado deixado pela ex-colônia francesa e obter vantagens competitivas em relação às colônias britânicas. De 1820 a 1835, Cuba duplicou sua oferta de açúcar ao mercado, enquanto a produção de café brasileiro cresceu mais de 4,5 vezes.
Os autores reconstituem o jogo parlamentar que, no Brasil e na Espanha, sustentava a escravidão. No caso brasileiro, enfatizam como alterações no sistema judiciário asseguraram a traficantes e escravocratas que o Estado jamais atentaria contra aquela propriedade "ilegal, fruto da pirataria, nascida do roubo mesmo".
O núcleo da obra é a construção de paralelos entre Brasil e Cuba, mostrando como a Grã-Bretanha atuou nos dois casos. Se o império britânico jogou duro com o Brasil, levando a questão do tráfico à beira de um confronto militar aberto, em relação a Cuba houve suavidade.
Para os historiadores, a hipótese de Cuba ser anexada aos EUA segurou o ímpeto inglês. Diferente era o caso brasileiro: "Para manter sua soberania política, o Estado imperial precisou repelir de modo terminante e irrevogável o contrabando negreiro".

BASES FILOSÓFICAS Os historiadores também se debruçam sobre as bases filosóficas que tentavam justificar a escravidão, com argumentos como: a escravidão existe desde a Antiguidade e não é condenada pela Bíblia; era preciso converter os cativos ao cristianismo; era imperioso libertá-los de seus senhores africanos; a escravidão na América era melhor do que a vida na África; os negros seriam mais adaptados ao trabalho no clima dos trópicos etc.
As ideias foram se modificando e surgiram até os que defendiam que os tipos humanos eram hierarquizáveis conforme características físicas e socioculturais. Basta assistir ao perturbador e intenso "Vênus Negra", filme de Abdellatif Kechiche, para começar a entender a que ponto chegou o preconceito travestido de ciência.
Como no livro de Parron, "Escravidão e Política" poderia contextualizar melhor os discursos e documentos que reproduz. A leitura de defesas da escravidão, no entanto, não deixa de ter interesse.
A mais curiosa talvez seja a do parlamentar e ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850). Ao argumentar, em 1843, que "os africanos têm contribuído para o aumento ou têm feito a riqueza da América" e que "a riqueza é sinônimo de civilização no século em que vivemos", declarou: "A África tem civilizado a América". Para ele, a diminuição do número de escravos levaria os brasileiros à barbárie.
Barbárie foi o termo que os abolicionistas usaram para descrever, já no final do século 18, a realidade do tráfico. Em panfletos, usaram o didático desenho do interior do negreiro Brooks, onde se espremiam 482 escravos. Eles eram amontoados "como colheres", nas palavras do médico Thomas Trotter, que viajou na embarcação.
A imagem, que passou para os livros de história, mostra "o moderno sistema econômico em toda a sua terrível nudez, o capitalismo sem tanga", afirma Rediker.
O historiador alerta para o silêncio sobre o tema. "O navio negreiro é um navio que viaja nas fímbrias da consciência moderna". Para ele, é preciso debater o legado da escravidão: "A reparação está na ordem do dia".
Gerald Horne também se preocupa com o que chama de amnésia em torno de uma espécie de "genocídio insuspeitado e escondido". Pior: a questão continua.
"Mesmo no século 21, existem alegações persistentes que indicam que não apenas o tráfico de escravos ainda existe mas que há mais escravos hoje do que havia no auge do tráfico de escravos africanos", afirma Horne.

"No Brasil e em Cuba, "a ganância superou o medo", notam os historiadores. Ambos passaram a investir mais na escravaria"
"De 1600 a 1850, 4,5 milhões de escravos desembarcam no Brasil, dez vezes a quantidade levada à América do Norte"
"Alterações no sistema judiciário asseguraram a traficantes e escravocratas que o Estado não atentaria contra sua propriedade"
"Numa época em que abolição era palavra maldita, foram os estrangeiros que verbalizaram os temores de revoltas"
"O navio negreiro viaja nas fímbrias da consciência moderna", diz Rediker. Para ele, é preciso debater o legado da escravidão"
(FSP)

Nova agenda desafia os velhos partidos (Entrevista Lilia Schwarcz)

Para antropóloga, debate sobre direitos civis estão "chacoalhando" a ideia de que 56 se faz política dentro das legendas.

Ha algo de novo na política brasileira - e não são os políticos nem os partidos. E uma lenta mas persistente invasão do cenário por assuntos ditos menos votados. Homofobia, racismo, aborto, casamento gay e direitos civis, em geral, "estão obrigando o mundo político a se acostumar com novas demandas do eleitorado", afirma a antropóloga Lilia Schwarcz.

Atenta ao fervilhar desses debates, principal mente em grandes cidades, e ao divorcio entre a rotina dos partidos e o Brasil real, ela adverte: "A ideia de que o único lugar de fazer política é dentro dos partidos esta sendo chacoalhada". E o próprio mundo acadêmico esta consciente disso, como ela constatou ao lançar, com o sociólogo André Botelho, da PUC-Rio, Agenda Brasileira - uma coleção de cerca de SO ensaios, assinados por grandes nomes das universidades, sobre tudo o que vale a pena discutir no Pais.

Como sinal das mudanças, Lilia observa: "Se no passado as ONGs iam atrás dos partidos, em busca de apoio, hoje são estes que vão atrás delas, para falar a públicos influentes". Nesta entrevista, a antropóloga faz uma advertência sobre o autoritarismo nos debates. "Não poder falar das diferenças e uma forma de fascismo."

• Por que os direitos civis e temas sociais tem hoje mais espaço nos debates?

Vejo como um ciclo. A ditadura já passou há tempos. Hoje os brasileiros podem votar e exercer seus direitos. Os anos 90 foram para arrumar a casa. Enfim, a agenda "mais seria" foi cumprida e agora outra agenda vem à tona. E isso coincide com um ambiente em que as comunicações ficaram mais fáceis. Cada dia mais, a sociedade civil esta exigindo espaço para demandas que lhe interessam mais diretamente.

• Para onde isso aponta?


Assuntos como aborto, casamento gay, racismo e violência sempre foram temas políticos, mas nos os tratamos de forma subalterna. Ultimamente, eles ganharam força e dão a cara desse Brasil real. 0 barulho em torno do kit-homofobia é um exemplo, a questão do racismo e outro, e este tem como pano de fundo questões mais amplas, como exclusão e desigualdade social. Na questão de gênero, os homossexuais, o movimento LGBT, o que quiserem chamar, muitos políticos já entenderam: terão de prestar atenção e tomar posição, pois cada vez mais serão cobrados pelos seus eleitores.

• Já se viu um pouco disso na campanha de 2010, não?

Sim, mas foi uma coisa odiosa aquele debate na TV entre Dilma Rousseff e José Serra sobre aborto. Podiam ter aproveitado para discutir uma questão substantiva. O que cada um fez? Tentou garantir seu eleitorado. Vestiram a carapuça tradicional.

• Os partidos não dão sinal de que vão mudar para se adaptar a isso. Como vai ficar?

Na Europa, principalmente nos países nórdicos, já existe um modelo mais fluido de relações entre partidos e organizações sociais. Por aqui, a ideia de que o único lugar de fazer política e dentro dos partidos já está sendo chacoalhada. A política vai se deparar cada vez mais com a explicitação dos conflitos. E evidente que os movimentos por direitos civis tem tido mais espaço e isso não tem volta. Hoje, os partidos e que correm atrás das ONGs, para se associar a causas que estão crescendo.

• Esse debate social não lhe parece prejudicado pelo politicamente correto?

Essa ideologia do politicamente correto e uma das piores cegueiras que se abateram sobre nos. Ela não permite expor as diferenças em um dialogo normal. Por exemplo, neste Pais ninguém e de direita ... Como ensinava Claude Levi-Strauss, e preciso diferenciar sem hierarquizar. 0 fato e que o empenho de alguns em combater pré conceitos os leva a criar outro, que e dizer "somos todos iguais". Não somos. E ainda bem que não somos. Você não poder falar das diferenças e uma forma de fascismo. Agindo dessa forma, você não produz conhecimento, não produz conscientização, não produz cidadania.

Quem é?

Doutora em Antropologia Social e professora da USP e da Universidade de Princeton (EUA). Especializada em relações raciais, e autora de Raça e Diversidade e As Barbas do Imperador - D. Pedro II, um Monarca nos Trópicos.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Prévias? Não no meu partido (Marco Antonio Villa)

Quem quer se candidatar ao Legislativo e Executivo tem de se sujeitar ao mandão partidário, pois não há candidatura avulsa

A história do Brasil republicano é marcada pela pobreza ideológica e por uma estrutura invertebrada dos partidos. Na Primeira República (1889-1930) as agremiações eram estaduais. Durante o populismo (1945-1964), por razão legal, os partidos se organizaram, pela primeira vez, nacionalmente. Quando estavam adquirindo um perfil ideológico, veio o golpe civil-militar de 1964. No ano seguinte, todos os partidos foram extintos e o regime impôs o bipartidarismo. Durante quase uma década, a Aliança Renovadora Nacional e o Movimento Democrático Brasileiro pouco se distinguiram. A eleição de 1974 acabou sendo o divisor de águas entre o partido do governo (Arena) e o da oposição (MDB). Cinco anos depois veio a reforma partidária. Surgiram cinco partidos. Um deles, o Partido dos Trabalhadores, ameaçou ter uma organização democrática, mas, anos depois, abandonou esse projeto. Deve ser recordado que, em 1988, o PT fez, em São Paulo, para a eleição à Prefeitura, prévias. E Luiza Erundina venceu Plínio de Arruda Sampaio (curiosamente, os dois não mais fazem parte do partido).

Foi passando o tempo, surgiram novos partidos (como o PSDB), outros foram mudando seu perfil histórico (como o PMDB). Contudo uma característica esteve presente em todos eles: a ausência de democracia interna. Falam em democracia, mas só para consumo extrapartidário. Consultar as bases? Realizar, tal qual nos Estados Unidos, um sistema de prévias para indicar seus candidatos? Nada disso.

Os partidos não têm programa. É muito difícil saber o que separa um do outro. São muito mais um ajuntamento de políticos do que a reunião de cidadãos defensores de um determinado projeto. Servem para alcançar cargos e funções no Legislativo e Executivo. Dessa forma, não deve causar admiração a mudança partidária, prática rotineira no Brasil. São conhecidos casos de parlamentares que, em uma legislatura, pertenceram a três ou quatro partidos. As mudanças nunca foram devido a alguma questão ideológica. Longe disso. Rigorosamente falando, não estiveram em nenhum partido, pois sempre agiram individualmente, visando à obtenção de favores e privilégios.

A tradição brasileira é marcada pelo partido sem rosto ideológico. A identificação é pessoal. Evidentemente que há uma ou outra exceção. Mas os partidos que eleitoralmente obtiveram êxito sempre estiveram identificados com alguma liderança expressiva, tanto no plano nacional como no regional. Na esfera municipal, o problema é maior ainda: a relação político/partido é mínima, quase desprezível. É sempre o candidato que se sobrepõe ao partido.

A discussão ideológica - marca essencial dos partidos políticos nas democracias consolidadas - é considerada no Brasil, por incrível que pareça, como um instrumento de divisão política, de desunião. A competição entre lideranças e programas é intrínseca e saudável à vida partidária. Desde que estejamos pensando numa democracia, claro. É no autoritarismo que o partido é uno, indivisível, em que a direção ou o líder máximo impõe sua decisão para a base sem nenhuma mediação.

Apesar de vivermos há 23 anos em um regime com amplas liberdades democráticas, com alternância nos governos e plena regularidade eleitoral, o partido - sempre considerado essencial para a democracia - funciona como um cartório, controlado com mão de ferro por lideranças que, algumas vezes, se eternizam na direção. E o cidadão interessado em ser candidato a algum cargo no Legislativo e Executivo tem de se sujeitar ao mandão partidário, pois a legislação impede candidaturas avulsas.

A realização de prévias pode mudar esse quadro. Caso algum partido efetue um debate interno com os pré-candidatos e tenha êxito nesse processo, é provável que o exemplo seja seguido por outros. As primeiras experiências não serão fáceis. Não temos tradição de um debate de caráter democrático de ideias. Muito menos de lideranças que se sujeitem às críticas. Os líderes gostam é de ser louvados. E adorados. É como se, no campo partidário, a República ainda não tivesse sido proclamada.

As prévias também podem oxigenar o debate político extrapartidário. Com a cobertura da imprensa e o interesse das lideranças de ganhar espaço, os grandes temas estarão presentes muito antes do início, propriamente dito, da campanha. Os eleitores poderão tomar conhecimento das propostas dos partidos e de seus pré-candidatos. Ou seja, a discussão política poderá ser ampliada, temporalmente falando, e melhorada, qualitativamente falando. E o espaço do marketing político vazio, tão característico dos nossos pleitos, ficará reduzido, o que é extremamente salutar.

Os adversários das prévias são aqueles que almejam ter o controle absoluto dos seus partidos. Não admitem a divergência. Desejam impor as candidaturas e alianças sem discussão. Consideram os filiados mera massa de manobra, sem direito a palavra. Querem vencer, sem convencer, na marra. No extremo, são adversários da democracia.

Marco Antonio Villa é historiador e professor do departamento de ciências sociais da UFSCAR

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

terça-feira, 26 de julho de 2011

PT e PSDB armam tabuleiro de 2014 (Raymundo Costa)

PT e PSDB antecipam largada para 2012. Lula articula palanques até 2014; tucanos tentam tirar Serra da disputa presidencial.

PT e PSDB anteciparam a largada às eleições municipais de 2012. O centro da disputa é o território de São Paulo, maior colégio eleitoral do país, portanto, decisivo na eleição para presidente de 2014. A rigor, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, queimou a largada ao decidir fundar o PSD. Mas a partida valeu, a corrida seguiu e PT e PSDB entraram na pista com disposição de início de campanha.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenta repetir a mesma fórmula que o levou a eleger a presidente Dilma Rousseff. Seu candidato é o ministro da Educação, Fernando Haddad, um técnico que nunca antes disputou eleição, como Dilma, e que assim como a atual presidente, à época, também acumula polêmicas.

Nessa lista estão os fiascos do Enem, as cartilhas com erros de português e o "kit gay", como foi batizado no Congresso o pacote contra a homofobia.

Tucanos forçam Serra em SP para dar passagem a Aécio

Na campanha de 2010, como se recorda, Dilma foi acusada de defender o desenvolvimento a qualquer custo (meio ambiente) e a legalização do aborto, assunto que contaminou o segundo turno da eleição presidencial. E assim como Dilma, o ministro Haddad é um nome técnico de fora do aparelho petista, tem bom relacionamento com Lula e é digerível por boa parte da classe média paulistana.

Lula articula as principais candidaturas para 2012 tendo em vista as alianças com os outros partidos. O ex-presidente costuma lembrar que somente venceu em 2002, após três tentativas, ao ampliar o leque de alianças do PT juntando-se ao PL do empresário e depois vice José Alencar, morto em março passado. No que se refere a São Paulo, Haddad leva vantagens diversas em relação aos outros pretendentes do PT, sob o ponto de vista de Lula.

Em primeiro lugar, é uma novidade. Apesar das polêmicas em que esteve envolvido, deve capturar o eleitorado histórico do PT na capital. E tem espaço para crescer, sobretudo com o apoio que Lula costuma dar a seus "candidatos do peito", como ficou demonstrado nas eleições do ano passado. Se Haddad ganhar, o PT terá aberto uma brecha na muralha da cidadela tucana em São Paulo - Kassab não é do PSDB, mas é ligado e fiel ao tucano José Serra.

Na hipótese de Haddad perder, é certo que Lula não terá dificuldade para conseguir seu apoio para o eventual candidato do PMDB, Gabriel Chalita, se ele for um dos dois candidatos no segundo turno. Algo que seria difícil de tirar de Marta Suplicy - que é pré-candidata - ou Aloizio Mercadante, atual ministro da Ciência e Tecnologia, também potencial candidato à indicação. Lula joga com as alianças de 2012 tendo em vista a disputa de 2014.

Vitória na eleição na capital de São Paulo é uma variável que não se discute na equação eleitoral do PSDB, pelo menos por enquanto. A discussão entre grande parte dos tucanos é outra: como fazer José Serra decidir logo se é ou não candidato a prefeito de São Paulo. A decisão de Serra é importante para Aécio Neves e seus correligionários resolverem o encaminhamento da candidatura presidencial do mineiro.

É nesse contexto que deve ser entendida a proposta de realização de prévias para a escolha do candidato do PSDB a prefeito, de preferência até dezembro deste ano. Isso forçaria Serra a uma decisão já. Na hipótese de ele ser candidato, Aécio teria a segurança de contar com o caminho livre para começar a trabalhar sua candidatura para 2014, sem receio de que alguém possa lhe tirar a bola no meio do jogo.

Serra já disse que não será candidato a prefeito. Em particular, afirma que não disputaria de novo nem que esta fosse a última eleição de sua vida - só não diz o mesmo publicamente para não "ofender" os paulistanos, insinuando algum tipo de menosprezo pela prefeitura. Mas os adversários do tucano paulista ou não acreditam que ele consiga ficar sem um cargo até 2014 ou acham que podem convencê-lo com o argumento de que é a única alternativa viável do PSDB, sob pena de a sigla começar a desmoronar em São Paulo.

Por trás desse argumento, está o mesmo raciocínio defendido na convenção que elegeu os novos dirigentes tucanos, no final de maio, segundo o qual o PSDB deveria escolher logo o candidato a presidente. Para Serra, não interessa decidir nada agora. O tempo joga a seu favor, ao contrário do que ocorreu nas duas vezes em que disputou a Presidência da República, quando teve de deixar os cargos que então ocupava (ministro da Saúde e governador de São Paulo) no início de 2002 e de 2010.

O tempo está a favor até em relação à prefeitura de São Paulo: Serra não precisará dizer se é ou não candidato no início de maio de 2012, prazo para a desincompatibilização de pré-candidatos que tiverem cargos executivos. Um exemplo: o secretário de Energia, José Aníbal. No limite, Serra pode até deixar a decisão para o final de junho de 2012.

A exemplo de um número cada vez maior da chamada elite política do Congresso, independentemente de partido, José Serra também supõe que o candidato do PT, nas eleições de 2014, será o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Neste cenário, talvez o PSDB se convença de que o candidato ideal é o próprio Serra - o contraponto de Lula no partido..

A tese segundo a qual Aécio deveria disputar com Lula em 2014 para encorpar uma recandidatura em 2018 enfrenta problemas. O próprio Aécio tem dificuldades para enfrentar Lula, com o qual manteve excelente relacionamento no governo. Além disso, a concorrência para daqui a sete anos deve ser maior.

Sem falar do PT, cujo candidato deve ser Lula (para a eleição ou para a reeleição), o PMDB, por exemplo, contará com o nome do atual prefeito do Rio, Eduardo Paes, se os Jogos Olímpicos de 2016 forem o sucesso. Não há porque duvidar das possibilidades do governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), nome que, por sinal, anda às turras com o PT. E no terreiro do PSDB já haverá outro candidato a cantar de galo - Beto Richa, atual governador do Paraná, filho de um dos fundadores tucanos, José Richa.

Os políticos gostam de dizer que as eleições municipais são diferentes das eleições para os governos de Estado e a Presidência da República. Mas nunca deixam de disputar uma sem pensar na outra.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

Justiça, corrupção e impunidade (Marco Antonio Villa)

Não há quem não fique indignado com as constantes denúncias de corrupção em todas as esferas do Executivo e do Legislativo. A cada mês ficamos horrorizados com o descaso e o desperdício de milhões de reais. Como não é possível ao cidadão acompanhar o desenrolar de um processo (e são tantos!), logo tudo cai no esquecimento e não ficamos sabendo da decisão final (isto quando o processo não é anulado e retorna à estaca zero). O denunciado sempre consegue encontrar alguma brecha legal e acaba sendo inocentado. E isto se repete a cada ano. Não há indignação que resista a tanta impunidade.

E aí é que mora o problema central do Brasil. Não é possível dizer que as instituições democrática estão consolidadas com tantos casos de corrupção e o péssimo funcionamento dos três poderes. Agir como Poliana é jogar água no moinho daqueles que desprezam a democracia. E sabemos que temos uma tradição autoritária.

Apesar dos pesares, o Executivo e o Legislativo são transparentes, recebem uma cobertura jornalística que devassa os escândalos. Os acusados se transformam, em um período limitado, em inimigos públicos. Viram motivo de chacotas. Nada de efetivo acontece, é verdade. Porém, o momento de catarse coletiva ocorre. E o Judiciário? Age para cumprir a sua função precípua? Recebe cobertura paulatina da imprensa? Ou insinua usar o seu poder para que não sejam lançadas luzes - com o perdão da redundância - sobre o seu poder?

É no Judiciário que está o cerne da questão. Caso cumprisse o disposto na Constituição e na legislação ordinária, certamente não assistiríamos a este triste espetáculo da impunidade. Pela sua omissão virou o poder da injustiça. É, dos três poderes, o mais importante. E tem a tarefa mais difícil, a de resolver todo santo dia a aplicação da justiça.

O Supremo Tribunal Federal, por ser a instância máxima da Justiça, deveria dar o exemplo. Mas não é o que ocorre. A estranha relação entre os escritórios de advocacia e os ministros do STF deixa no ar uma certa suspeição. E no caso da Corte Suprema não pode existir qualquer tipo de questionamento ético. Os ministros devem pautar sua vida profissional pelo absoluto distanciamento com outros interesses que não sejam o do exercício do cargo. Não é admissível que um ministro (por que não ser denominado juiz?) tenha empreendimentos educacionais, ou mantenha um escritório de advocacia, ou, ainda, tenha parentes (esposa, filhos, cunhados, genros, noras) que participem diretamente ou indiretamente de ações junto àquela Corte.

O padrão de excelência jurídica foi decaindo ao longo dos anos. É muito difícil encontrar no STF algum Pedro Lessa, Adauto Lúcio Cardoso ou Hermes Lima. Os ministros que lá estão são pálidos, juridicamente falando, com uma ou outra exceção. Cometem erros históricos primários. Seria melhor que as sessões televisivas daquela Corte fossem proibidas para o bem dos próprios ministros.

Mas o problema do Judiciário é muito maior do que o STF. Nos estados, a situação é mais calamitosa. Famílias poderosas exercem influência nefasta. O filhotismo crassa sem nenhum pudor. E o que não se vê é a aplicação da justiça. Não pode ser usada como justificativa a falta de recursos. Desde a Constituição de 1988, o Judiciário tem um orçamento fabuloso. O problema é que o dinheiro é mal gasto.

O Judiciário preocupa-se com o cerimonial, o rito burocrático e todas as formalidades, mas esquece do principal: aplicar a justiça. O poder é lento e caro. E pior: é incompreensível ao cidadão comum. Ninguém entende como um acusado de desvio de milhões de reais continua solto, o processo se arrasta por anos e anos e, quando é condenado, ele não cumpre a pena. Ninguém entende por que existem tantas formas de recorrer de uma sentença condenatória. Ninguém entende o conceito do que é considerado prova pela Justiça brasileira.

É inadmissível juízes e promotores realizarem congressos patrocinados por empresas que demandam o Judiciário. É inadmissível um ministro do STF comparecer a uma festa de casamento no exterior com despesas pagas (no todo ou parte, isto pouco importa) por advogado que demanda aquela Corte. E ainda gazeteou sessões importantes (foram descontadas as faltas?). Se o Brasil fosse um país com instituições em pleno funcionamento, certamente haveria algum tipo de sanção. Sem idealizar a Suprema Corte americana, mas caberia perguntar: como seria recebida por lá uma notícia como essa?

Indo para o outro lado do balcão, cabe indagar o papel dos escritórios de advocacia especializados na defesa de corruptos. E são tantos. É evidente o direito sagrado de defesa. Não é isto que está sendo questionado. Mas causa profunda estranheza que um número restrito de advogados sempre esteja do lado errado, do lado dos corruptos. E cobram honorários fabulosos. Realizam seu trabalho somente para a garantia legal do direito de defesa? Será? É possível assinar um manifesto pela ética na política e logo em seguida comparecer ao tribunal para defender um político sabidamente corrupto? Este advogado não tem nenhuma crise de consciência?

Há uma crise estrutural no Judiciário. Reformá-lo urgentemente é indispensável para o futuro da democracia. De nada adianta buscar explicações pífias de algum intérprete do Brasil, uma frase que funcione como um bálsamo. Ninguém aguenta mais as velhas (e ineficazes) explicações de que a culpa é da tradição ibérica, da cordialidade brasileira ou do passado escravista. Não temos nenhuma maldição do passado, algo insuperável. Não. O problema é o presente.

Marco Antonio Villa é historiador e professor da Universidade Federal de São Carlos (SP).

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Ciência para o Brasil (Alaor Chaves)

A expansão do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron alavancará importantes tecnologias, e quase 40% dos gastos retornarão ao Tesouro

Os cientistas brasileiros têm demonstrado um singular atavismo pelas colaborações científicas internacionais. Isso tem sido um dos obstáculos para que nossa ciência atinja a maioridade e também se torne agente propulsor do desenvolvimento do país.
O volume da nossa produção científica tem crescido rapidamente, mas a elevação da sua qualidade não tem tido o mesmo vigor.
Reconhecemos a necessidade de dar um salto de qualidade, mas temos sido lerdos na adoção das políticas indispensáveis para esse salto. Os países com sucesso em desenvolver uma ciência tardia (ex-URSS, Japão, Coreia, China) praticaram por longo tempo um alto grau de introversão científica.
Empenharam-se na construção de uma ciência autônoma, com olhos atentos aos interesses nacionais, e só depois de se tornarem competitivos se abriram para uma colaboração mais intensa com o exterior. Nós temos trilhado o caminho inverso.
No Brasil, temos exemplos emblemáticos do sucesso de programas em ciência e tecnologia perseguidos de forma autônoma.
Após longo insucesso com práticas agrícolas importadas, o Brasil decidiu seguir seu próprio caminho, e para isso criou a Embrapa.
Hoje, nossa técnica agropecuária é a que avança mais rapidamente em todo o mundo. No caso da produção de etanol de cana, nem tínhamos com quem colaborar; com isso, desenvolvemos para o setor uma tecnologia sem rival.
O Brasil tem colaborado em projetos internacionais para a "big science", o que requer equipamento muito dispendioso. Até o momento, temos feito parcerias que dão aos nossos pesquisadores acesso a boa infraestrutura sem dispêndios muito elevados.
Neste ano, o Ministério da Ciência e Tecnologia assinou acordos de colaboração com o consórcio europeu responsável pelo ESO (European Southern Observatory) e com o Cern, consórcio dono do maior acelerador de partículas no mundo, que mudam a escala de nossos gastos nesse tipo de colaborações.
Só como taxa de ingresso no ESO pagaremos 130 milhões de euros; ainda nesta década, seremos provavelmente o seu maior financiador. Pelo acordo com o Cern, nossa contribuição inicial será de US$ 15 milhões/ano. Mas, até 2020, talvez o Brasil também se torne o seu maior financiador Generosamente, subsidiaremos a ciência europeia.
Há anos temos discutido um ótimo projeto 100% brasileiro em "big science", a expansão do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron. Seu custo será de R$ 360 milhões. O empreendimento alavancará várias tecnologias importantes. Como os gastos serão realizados no Brasil, quase 40% deles retornarão ao Tesouro na forma de impostos.
A comunidade de usuários do Laboratório já é mais de dez vezes a dos potenciais usuários do ESO ou do Cern, e abrange biologia, química, física, ciência de materiais, nanociência e pesquisa industrial.
O impacto do Laboratório em nossa ciência e tecnologia será muito maior que o dos projetos aprovados. Mas o Ministério da Ciência e Tecnologia o considera muito caro. Nenhum país teve destaque na área com esse caminho.
ALAOR CHAVES, físico, é professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Presidentes com e sem luto (Renato Janine Ribeiro)

Não podemos tratar do luto com pressa. Superar a perda de uma pessoa querida exige tempo. A pior coisa nas revistas de celebridades é que, a cada tragédia que elas sofrem, afirma-se que a pessoa "já superou". Mas há perdas que nunca superamos, como a do filho, e outras só com o tempo. Dizia-me outro dia minha colega Clotilde Rossetti Ferreira, da USP de Ribeirão Preto, que nos casos de luto mesmo a medicação pode abafar a maneira como se lida com a perda. O tempo, matéria-prima da história, é também o que decanta o luto.

Por isso, esperei para falar da morte de Itamar Franco. Em poucos meses perdemos, após longo intervalo sem morte presidencial significativa, um vice-presidente e um presidente. O enterro de José Alencar assumiu algumas cores do funeral que é um paradigma para muitos brasileiros, o de Tancredo Neves em 1985. Seguiu-se outro vice, Itamar Franco, que se tornou titular do cargo com a condenação do presidente Collor e viveu duas décadas após o mandato. Não é o caso de comparar os dois, mas de refletir sobre a memória que deles fica, a maneira como nos despedimos, a tradução afetiva de seus legados políticos.

O Brasil tem pouca tradição na liturgia do enterro presidencial. Nossos dois imperadores, que reinaram durante quase todo o século XIX, morreram e foram sepultados no exterior. Mesmo assim, a volta dos restos mortais de Pedro I, na ditadura militar, trouxe um efeito irônico: em pleno regime de exceção, Pernambuco se recusou a honrar o corpo de quem tinha chacinado - tanto tempo antes! - suas lideranças políticas. Funerais têm um significado forte. Já no regime dito republicano, os ditadores militares e os presidentes escolhidos na fraude da República Velha não despertaram saudade ou luto maiores.

Três enterros seminais marcam nossa história, compensando, pela intensidade, seu pequeno número. O último foi o de Tancredo Neves, em 1985. A história era inacreditável. À véspera de sua posse na Presidência, encerrando 21 anos de ditadura, ele era internado; um mês depois, coincidindo com a morte do maior herói popular de Minas e do Brasil, ele morria. O itinerário do corpo atraiu multidões. Vi passar a carreta, saindo do Hospital das Clínicas de São Paulo, pelo cruzamento da Rebouças com a Brasil. Encontrei uma amiga petista, que se opusera à eleição de Tancredo pelo ilegítimo colégio eleitoral da ditadura, mas que estava chocada, como todos. Durante horas, a televisão mostrou o avião levando seu corpo para Brasília, ao som de "Canção de estudante", de Milton Nascimento. Por meia hora, o pedreiro em São João del-Rei alisou o cimento que lacrava sua sepultura. A despedida do presidente que não chegou a sê-lo foi no ritmo mais vagaroso que se possa imaginar. Eram imagens intermináveis de um enorme não-evento. Com razão: sua morte abrupta bloqueara o grande evento previsto, o frenesi de acontecimentos que seria a festa pelo fim da ditadura, fazendo o regime civil começar com um vazio espantoso. A festa, retardada, só explodiu sete anos depois, no carnaval - no melhor sentido do termo - que levou ao impeachment de Collor.

O funeral de Getúlio Vargas foi o mais forte de nossa história. Seu ministro da Justiça era Tancredo, a quem o presidente entregou a caneta com que assinou seus últimos atos; trinta anos depois, Tancredo pretendia assinar com ela o termo de posse. Vargas estava destruído politicamente na noite de 23 de agosto de 1954. Mas, ao suicidar-se, reverteu a situação. Adiou por dez anos o golpe militar. Abriu lugar para Juscelino, o desenvolvimento, Brasília, a indústria, a bossa nova. Vi seu enterro no filme "O mundo em que Getúlio viveu", de Jorge Ileli, que se concentra no luto popular por sua morte, nas cenas de orfandade de um povo que se sente privado do líder querido. Rodado em 1963, o filme só estreou em 1976.

Juscelino Kubitscheck, que morreu perseguido e cassado, teve funerais sob rígido controle. Mas foi difícil a polícia reprimir a emoção. O melhor sinal de que a ditadura perdera o apoio foi dado por um senhor que tentava entrar na igreja e, contido pela repressão, gritou: "Sou cassado!". A frase mágica permitiu que entrasse. Em 1976, a punição pela ditadura tornara-se honra.

Os dois funerais deste ano foram modestos. Felizmente, não tivemos a cena horrível, quase pagã, de cinco pessoas mortas imprensadas contra as grades do Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, que marcou a emoção e sobretudo a desorganização do enterro de Tancredo. Mas me surpreendeu, primeiro, que José Alencar fosse o primeiro político, em vinte e seis anos, a ter um enterro de porte presidencial. Muitos de nós nem lembramos quando morreram os ditadores do período militar. Não houve luto por eles. Mas, aqui, vimos um vice extremamente leal ao presidente Lula, mesmo discordando de sua política na taxa de juros, e que se tornou muito querido, como registra Eliane Cantanhede na biografia que lhe dedicou, fosse pela lealdade, pela luta contra o câncer ou, ainda, pela tenacidade que o levou a viver até o fim o mandato que recebeu do povo. E agora assistimos a um enterro mais discreto, o de Itamar Franco. Enquanto Getúlio, Tancredo e Alencar morreram à sombra de suas funções, Itamar sobreviveu à Presidência quase duas décadas. Realizou o sonho de governar Minas, apoiou e atacou FHC e Lula, continuou na ativa. O curioso e triste é que uma de suas grandes realizações, o Plano Real, dele subtraída por anos de propaganda política, só lhe fosse reconhecida na beira do túmulo. Estas são ocasiões de pensar sobre a memória, sua lentidão e talvez sua justiça final.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

domingo, 24 de julho de 2011

Segredo e bandalheira (Roberto Romano)

O Brasil é o país da corrupção e do segredo, lados da vida nacional que impedem qualquer confiança nas instituições. Os operadores do Estado, sobretudo com o "privilégio de foro", desobedecem às regras basilares da fé pública. O roubo dos recursos coletivos é respondido, entre nós, com perseguição à imprensa, compra de movimentos sociais, sigilo no financiamento de obras. Sem consciência histórica, os nossos políticos e partidos retomam séculos de tirania. A prudência mínima aconselha ligar a censura (o caso do jornal O Estado de S. Paulo é prova) e o segredo que encobre as piores ilicitudes cometidas à sombra do poder. Como disse alguém, "o dia pertence à opinião pública. Nele, os segredos são espancados e os governantes não podem usar o beleguim que realiza o serviço sujo "sob ordem superior". A noite aninha o segredo, covarde razão de Estado".

Os séculos 19 e 20 reuniram censura e hábitos políticos corrompidos, a começar pelo Império de Napoleão I, que espalhou o terror e a guerra com base nas imunidades do Poder Executivo. O fascismo, o nazismo e o stalinismo exibiram o exato contrário da transparência e do respeito à cidadania. Hannah Arendt afirma que a vida totalitária significa a reunião de "sociedades secretas estabelecidas publicamente". Hitler assumiu, para a sua quadrilha, os princípios das sociedades secretas. Ele promulgou algumas regras simples em 1939:

Ninguém, sem necessidade de ser informado, deve receber informação;

ninguém deve saber mais do que o necessário;

e ninguém deve saber algo anteriormente ao necessário.

Segundo Norberto Bobbio, não lido no Congresso Nacional e nos demais palácios de Brasília, "o governo democrático (...) desenvolve a sua própria atividade sob os olhos de todos porque todos os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual razão os levaria periodicamente às urnas e em quais bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? (...) O poder oculto não transforma a democracia, perverte-a. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus órgãos essenciais, mas a assassina" (O Poder Mascarado).

Quem abre os jornais brasileiros "antigos" percebe o caminho dos que hoje defendem mistérios nas contas públicas e não têm coragem de abrir arquivos ditatoriais. A luta pela transparência, que muitos fingiam conduzir, não passou mesmo de "bravata". O segredo embaralha interesses de grupos privados e assuntos de governo, como no caso Antônio Palocci e no recente episódio no Ministério dos Transportes. Ele ameaça as formas democráticas: nele, os administradores governamentais exasperam aspectos ilegítimos das políticas no setor público. Entramos no paradoxo: o público é definido fora do público e se torna opaco. O segredo, de fato, manifesta-se em todos os coletivos humanos, das igrejas às seitas, dos Estados aos partidos, dos advogados aos juízes, das corporações aos clubes esportivos, da imprensa aos gabinetes da censura, dos laboratórios e bibliotecas universitários às fábricas, dos bancos às obras de caridade. Mas vale repetir a suspeita de Adam Smith: "Como é possível determinar, segundo regras, o ponto exato a partir do qual um delicado sentido de justiça ruma para o escrúpulo fraco e frívolo da consciência? Quando o segredo e a reserva começam a caminhar para a dissimulação?" (Teoria dos Sentimentos Morais, 1759.)

A prudência define a passagem da prática correta do sigilo para uma outra, em que o poder abusivo e tirânico se manifesta. O pensamento ético sempre se opõe ao sigilo, salvo em situações de guerra. Segundo Bentham, a publicidade é "a lei mais apropriada para garantir a confiança pública". O segredo, pensa ele, "é instrumento de conspiração; ele não deve, portanto, ser o sistema de um governo normal. (...) Toda democracia considera desejável a publicidade, seguindo a premissa fundamental de que todas as pessoas deveriam conhecer os eventos e circunstâncias que lhes interessam, visto que esta é a condição sem a qual elas não podem contribuir nas decisões sobre elas mesmas".

Os democratas ou republicanos autênticos devem se acautelar contra o segredo, pois ele se instala na raiz do poder ditatorial e dos golpes de Estado. Não admira que os nossos políticos, herdeiros de costumes definidos nos porões de duas ditaduras, considerem "normais" (com bênçãos de alguns magistrados) tanto o disfarce no manejo das contas públicas quanto a censura à imprensa. Oligarcas manhosos de partidos fisiológicos estão bem no retrato do controle oficial secreto e corrupto. Eles se acostumaram a dobrar a espinha diante dos poderosos porque tal hábito lhes permite corroer as franquias dos "cidadãos comuns". Presos aos favores, vendem a preço vil a dignidade pública na bacia das almas dos Ministérios. Mas cobram caro, das pessoas livres, a crítica aos seus desmandos. A sua técnica de aliciamento usa os laços do "é dando que se recebe", que lhes propicia o controle das informações. Só pode chegar ao público o que eles autorizam. Os coronéis estão mais vivos do que nunca, na pretensa República brasileira.

Já os que, antes de chegar aos postos de autoridade, sempre criticaram os donos do poder, embora queiram exibir uma face polida e bela, escondem (nas paredes escuras dos corredores palacianos) uma repulsiva adesão à bandalheira. A sua figura efetiva? A carantonha de Dorian Gray ou a estátua de Glauco, imagem divina que, por causa das muitas trapaças do tempo, se transformou em bestial. Nada mais desprezível do que o paladino da ética que, por "realismo", age como secretário de práticas contrárias à transparência no manejo dos recursos públicos.
Fonte: O Estado de São Paulo

Qual é o escopo? (Alon Feuerwerker)

Na crise dos Transportes a presidente vem riscando o chão a faca. Pintou a dúvida está demitido. É popular mas estabelece um padrão. Doravante a comparação não mais será com o “cadê as provas?”. Será com o “cortem-lhe a cabeça”

A novidade na crise dos Transportes é o Palácio do Planalto nela ter surfado para concentrar poder, como já se escreveu aqui. Não apareceu a acusação de as revelações fazerem parte de uma operação política contra o governo, para desestabilizar o governo.

E a coisa ficou facilitada pelo alvo ser um partido secundário na coligação, o PR. Nada que vá chacoalhar de fato a aliança dilmista. Haja o que houver com o PR a vida seguirá. Políticos não são lemingues, não correm solidariamente rumo à morte certa. A espécie não é solidária.

Restou porém a curiosidade legítima sobre a abrangência do método. Na terminologia da moda, falta saber o escopo da linha palaciana.

Não é crível que o Ministério dos Transportes seja uma ilha de problemas, então qual será a abordagem dos cenários trazidos por novas revelações embaraçosas?

Agirá o Planalto com a mesma rapidez e crueza quando o alvo for uma pasta comandada pelo PMDB? Ou pelo PT? Reproduzirá a estratégia de cortar fora inclusive tecidos sãos para evitar a permanência de coisa ruim no organismo?

A verdade é que Dilma Rousseff se depara com uma oportunidade de ouro. Tem apoio da opinião pública -entendida como o pessoal que julga dominar a opinião pública- para tratorar qualquer aliado incômodo sobre quem recaiam suspeitas de andar fora da linha.

Não parece haver obstáculos significativos à iniciativa da presidente de assumir o controle absoluto do próprio governo. Ela tem aval externo para isso.

Mas a associação costumeira entre crise e oportunidade é verdadeira nos dois sentidos. Se toda crise embute uma oportunidade, toda oportunidade também carrega dentro dela o embrião da crise, entendida como conflito agudo do novo com o velho.

Afinal Dilma foi eleita pelo arcabouço político-administrativo que agora cuida, aparentemente, de demolir. E o arcabouço a apoiou na eleição imaginando a continuidade.

Os motivos e as intenções importam menos. Valem os fatos. Na crise dos Transportes a presidente vem riscando o chão a faca. Na dúvida está demitido. Eis um fato.

É popular mas estabelece um padrão. Doravante a comparação não mais será com o “cadê as provas?”. Será com o “cortem-lhe a cabeça”.

Ainda que a guilhotina insista, por enquanto, em concentrar-se nos crânios pequenos, nos relativamente desimportantes.

Mas o efeito-demonstração é irreversível. O jogo foi zerado nesse nível.

A política da queda de braço:: Marcos Nobre

Neste ensaio, o jeito Dilma de atuar (que não é o de Lula): em lugar de contornar os vetos encastelados no sistema político, ela os confronta

"Aqui vem a parte in-crí-vel. Quando você comete os erros de dentro, os erros perdem seu significado. Os erros deixam de ser erros. Os erros, as cabeçadas na parede, se transformam em virtudes políticas, em contingências políticas, em presença política, em pontos midiáticos a seu favor" (Azucena Esquivel Plata, deputada pelo PRI mexicano no romance 2666, de Roberto Bolaño).

Lula anda preocupado com a maneira de Dilma fazer política. Teme que ela fique isolada, apesar da ampla base de sustentação do governo. Acha que, mais cedo ou mais tarde, Dilma vai receber o troco por medidas de saneamento como as realizadas no Ministério dos Transportes. E não apenas do PR.

O fato é que Dilma faz política de um jeito diferente de Lula: não contorna os muitos e vários vetos encastelados no sistema político, ela os confronta.

Até a queda de Palocci, os dois estilos se misturavam. Quer dizer, Dilma ia para o confronto e Palocci procurava traduzir da maneira mais jeitosa possível para o sistema político o estilo impositivo da presidente. Depois de Palocci, Dilma não tem mais esse tradutor e intérprete.

E Lula já não tem mais um representante cravado no coração do governo. Tem agora apenas uma espécie de informante privilegiado, que é seu fiel escudeiro Gilberto Carvalho.

O que Dilma está fazendo é administrar a sua maneira o principal elemento de continuidade entre seu governo e o de Lula, que se poderia chamar de "pacto do crescimento". Lula montou um amplíssimo pacto fundado em três elementos fundamentais: crescimento econômico em torno de 4% ao ano, em média; inflação sob controle, ainda que em um patamar elevado para padrões internacionais; compensações sociais, com destaque para aumentos reais do salário mínimo. Além disso, Dilma tem de entregar as obras de infraestrutura necessárias à realização da Copa de 2014, bem como as demais obras do PAC.

O pacto tem de ser preservado, mas Dilma não pode mantê-lo nos mesmos patamares generosos em que foi celebrado no governo Lula. O cenário da economia mundial é instável e ameaçador. E, do ponto de vista interno, há limitações de várias ordens que exigem que o pacto seja revisto para baixo.

A lógica específica do governo Dilma está na maneira impositiva, antinegociação, pela qual realiza esse necessário ajuste para baixo do pacto do crescimento, transformando todo embate em uma queda de braço. Em um ambiente político em que não há de fato oposição e "todo mundo" quer aderir, Dilma usa o "excesso de adesão" para fazer com que os pactuadores aceitem posições mais modestas no grande acordo firmado por Lula.

Até o momento, essa política da queda de braço tem sido interpretada simplesmente em termos de "avanços" e "recuos" do governo, em termos de "vitórias" ou "derrotas" da presidente. Mas não é esse o seu sentido político profundo.

Na verdade, a presidente está se apresentando à sociedade como alguém que, de dentro, luta permanentemente contra um sistema político descolado da sociedade, voltado para os próprios interesses. Esse é o lugar que Dilma encontrou para se apresentar à sociedade e para se comunicar com ela.

Quando entende que não tem condições de se impor, mostra que foi obrigada a ceder em nome da governabilidade. Procura transformar cada "derrota" em uma "vitória moral". Coisa que talvez explique, aliás, o apoio um tanto inesperado que Dilma tem encontrado na chamada classe média tradicional, sempre pronta a atirar a primeira pedra contra as mazelas históricas da política nacional.

Dilma mobiliza e canaliza a seu favor a legítima ojeriza da sociedade à desfaçatez do sistema político. Como se ela própria não estivesse enfiada até o pescoço nesse mesmo sistema político que "combate de dentro". Com isso projeta uma imagem de uma presidente que "não se mistura à baixaria", que se mantém "a salvo da contaminação".

À sua maneira, é o que também faz, por exemplo, Marina Silva, do lado "de fora" da política oficial. Marina tem dito que torce por Dilma. E disse que entende a presidente porque passou a vida toda lutando de dentro do sistema, mesmo sabendo que seria derrotada a maior parte do tempo. É uma maneira de tirar casquinha da tática de "não contaminação" da presidente.

Dilma não negocia; ela perde ou ganha, vence ou capitula. Para ser mais preciso: Dilma compra briga sobre todas as questões, mas, se for necessário, aceita perder em temas que não sejam vitais à manutenção do pacto de que é a fiadora e pelo qual foi eleita.

De modo que há mesmo um certo efeito diversionista em comprar todas as brigas, em não deixar passar nada. Afinal, a presidente se mostrou disposta a demitir todos os ministros do PMDB por causa da votação do novo Código Florestal na Câmara dos Deputados. Um tema certamente importante, mas nem de longe entre os que são vitais à manutenção do pacto do crescimento. O que não se percebeu nesse "exagero" e nessa "derrota" da presidente é que, na lógica da "não contaminação", sua atuação lhe deu um crédito internacional que ela poderá sacar, por exemplo, na conferência sobre desenvolvimento sustentável, a Rio+20, que acontecerá no próximo ano.

O outro objetivo da política da queda de braço é tentar ampliar o raio do "cordão sanitário" dentro do governo. Desde o período FHC, passando pelo governo Lula, há um conjunto de ministérios que são preservados do peemedebismo. Os exemplos clássicos são Educação, Saúde e a área econômica. O que Dilma fez foi usar a tática da queda de braço para tentar esticar o cordão sanitário até o Ministério dos Transportes. Porque, ao contrário do governo anterior, esse ministério é agora parte vital do pacto pela qual a presidente foi eleita. Estão em sua órbita as obras de infraestrutura para a Copa e, de maneira mais ampla, as obras do próprio PAC.

Ocorre que, com a intervenção no Ministério dos Transportes, a tática da queda de braço esgotou o eventual efeito surpresa que possa ter tido. O sistema político, tendo compreendido a regra do jogo, passará a chantagear nas questões de vida ou morte. Testes importantes virão, por exemplo, na simples eventualidade de irem a votação itens como a Emenda Constitucional 29 (que aumenta os recursos para a saúde), ou a PEC 300 (que estabelece um piso para salários de policiais militares e bombeiros em todo o País). Também terá grande repercussão orçamentária a decisão em torno da distribuição dos royalties do petróleo.

Além disso, é mesmo de se perguntar por quanto tempo é possível sustentar esse clima de permanente tensão produzido pelo modus operandi da presidente. Situação agravada adicionalmente pelo já mencionado panorama instável da economia mundial e de uma taxa de inflação que tem se mostrado vigorosamente resistente às variadas medidas de contenção adotadas até agora.

Na lógica da queda de braço, os políticos e a política em geral saem em bloco como vilões, posição que não será aceita passivamente durante quatro anos. Principalmente em anos eleitorais, como será o caso de 2012. E, do outro lado, a presidente dá mostras de estar decidida a levar esse enfrentamento até o limite do insuportável para se assegurar de que os elementos fundamentais do pacto do crescimento estejam sob controle.

De modo que todo o problema para o governo passa a ser então o de garantir que, até o horizonte político do primeiro semestre de 2012, a inflação dê mostras de estar sob controle sem que haja prejuízo demasiado ao crescimento econômico. Essa é a tarefa do que poderia ser chamada de a primeira etapa do governo Dilma. Que não por acaso coincide com a diretriz de que nem todo o ministério anunciado no início do governo será mantido a partir do segundo ano de mandato.

Ao longo dessa primeira etapa, a presidente não dá mostras de que abrirá mão da política da queda de braço. Mas é razoável supor que, se essa primeira etapa for bem-sucedida, haverá uma reacomodação das forças políticas e uma reconfiguração do governo. Só que é cedo para dizer mais do que isso.

Ainda assim, esse quadro geral já é suficiente para explicar, por exemplo, por que o governo Dilma não tem uma "agenda positiva" própria. Mais ainda, ajuda a entender como seu governo se insere em um projeto mais amplo de manter o PT na liderança da coalizão por pelo menos os próximos 12 anos, de maneira a completar os 20 anos de poder preconizados por Lula poucos meses após deixar a Presidência.

Desse ponto de vista, o mandato da presidente em seu conjunto representa um governo de transição. Tem de conseguir administrar o pacto de crescimento de maneira satisfatória até a próxima eleição presidencial. Se conseguir isso, disputa a reeleição com grandes chances. Só em um hipotético segundo mandato é que poderia surgir uma real "agenda positiva", propriamente dilmista.

Do ponto de vista desse projeto de poder da coalizão, o governo Dilma é a passagem pelo "deserto" que levará ao "paraíso" representado pela expectativa de riqueza a ser gerada pelo crescimento econômico contínuo e pela exploração da camada pré-sal. O específico da primeira etapa do governo Dilma é a tática escolhida para realizar essa tarefa, uma tática de confrontação permanente e interessada com o peemedebismo que o sustenta.

A tática da queda de braço é nova. Mas, tal como a tática de Lula de contornar vetos, a de Dilma não muda a estrutura fundamental da política brasileira. Pelo contrário, mantém o peemedebismo do sistema político atuante e unido para fazer face à confrontação permanente proposta pela presidente.

De modo que, do ponto de vista da democracia que se está construindo, o fundamental não é conjeturar sobre as chances de uma tática como a da queda de braço ser ou não bem-sucedida. Isso pode ajudar a explicar o funcionamento da política hoje, mas não altera fundamentalmente sua lógica.

Nos últimos 16 anos, o País realizou duas pequenas revoluções, uma econômica, outra social. Conseguiu fazer isso deixando intocado o peemedebismo de seu sistema político. Hoje, entretanto, qualquer novo avanço democrático depende de uma pequena revolução política. Como em toda democracia realmente viva, o que importa de fato é conseguir sair do pântano político em que estamos metidos puxando pelos próprios cabelos.

Marcos Nobre é professor de filosofia política da UNICAMP e pesquisador do CEBRAP, onde coordena o núcleo direito e democracia. Autor de Curso livre de teoria crítica (Papirus editora)

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO/ALIÁS

sábado, 23 de julho de 2011

DENUNCISMO E APOLOGÉTICA COMO O ÓPIO DAS CLASSES INSTRUÍDAS: VARIAÇÕES SOBRE O TEMA DA ÉTICA E DA CORRUPÇÃO E SEUS “EFEITOS NARCOTIZANTES” (José Roberto Bonifácio)

"Tá dominado! Tá Tudo Dominado!" (“Bonde do Tigrão”, Sony Music / Furacão 2000, 2001)

Vivemos como que narcotizados pela sucessão de denuncias, comprovadas ou não, de modo que a corrupção entranhou-se no cotidiano, rotinizou-se, banalizou-se. E ainda assim nada fazemos para combatê-la. O propósito deste texto e precisamente o de captar certos aspectos e nuances da maneira como a sociedade brasileira reage ao tema e o diagnostica, buscando compreender os motivos das mobilizações e comportamentos de setores relevantes do processo político, notadamente os intelectuais, as organizações e as classes sociais.
Conforme o primeiro texto, o R. Azevedo teve um insight assim digamos "olsoniano" ao atacar a questão do Imposto Sindical e se filiou - talvez inadvertidamente - aquela corrente interpretativa que, outrora, dissemos diagnosticar a Era Lula como indutora de um novo processo de "estadonovização" da republica brasileira.
O governo inicialmente cooptou a FIESP/CNI por via de políticas industriais ativas, assim como a CNA por meio de incentivos fiscais e creditícios as exportações de produtos primários, e a FEBRABAN através da manutenção dos fundamentos macroeconômicos. Na coleirinha, há décadas, ele já tinha a CUT/CGT e o MST, alem de uma miríade de movimentos sociais colecionados ao longo da trajetória oposicionista. Por efeito, de concessões ao PCdoB na maquina publica federal, a UNE/UBES foi atraída para sua orbita. Eles ainda atrairam a CNBB, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC, a "CNBB" interconfessional), bem como outra miríade de entidades evangélicas pentecostais e neopentecostais, através do Tratado Brasil-Vaticano e da Lei Geral das Religiões aprovada na esteira desta. O peleguismo, que antes se dizia ser patronal e/ou sindical, hoje em dia é também confessional e estudantil.
Há que convir, que no momento em que o lulopetismo coloniza toda esta malha organizacional enraizada e difundida ao longo da sociedade civil, ele não apenas passa a influenciar decisões sobre benefícios coletivos ou benefícios diferenciados dentro destas categorias. Ele esta também capturando para o Estado brasileiro importantes agencias de socialização política das classes sociais relevantes da sociedade, a saber as classes operarias (CUT/CGT) e camponesas (MST), as classes empresariais da industria (FIESP /CNI) e da agropecuária (CNA), e a classes medias que alcançaram seu status e renda por via da educação superior e/ou de profissões liberais (UNE/UBES).
Ate aqui falamos somente das frações de classe organizadas ou que exibem atitudes, valores e comportamentos mais seculares em sua participação política. Nada falamos do avassaladoramente crescente numero daqueles que tem menor disposição para participar de uma “Marcha pela Ética na Política” do que de uma “Marcha para Jesus” (tornada um evento oficial de abrangência nacional, instituído pelo PL n.º 3234/08.)...
Recentemente, visando consumar sua tutela sobre os formadores de opinião, o governo buscou fazer o mesmo com o restante da classe media bem informada, através do PNBL, logo rechaçado pelos chamados “blogueiros progressistas” – que nada mais são do que egressos das classes medias e operarias tradicionais arregimentados naquelas mesmas entidades supramencionadas. O “aparelhamento” destas entidades lhes permite incutir normas, valores e crenças nestas coletividades organizadas, tornando-os infensos a outros apelos. Uma nova concepção de “res publica” e cidadania se afirma, uma com a qual não estamos acostumados e apenas estranhamos como alheia ou perversa.
A ofensiva governista neste campo processa-se, pari passu com a defensiva das oposições, - sendo que muitas vezes as posições e papeis se invertem – tem produzido repercussões significativas nos comportamentos e atitudes que observamos no espaço publico. Tanto os lulopetistas quanto os “demotucanos” – rotulo convenientemente abrangente, contudo nem sempre apropriado para designar o variado conjunto de oponentes a ser enfrentado... – parecem exibir posicionamentos face a corrupção e a malversação de recursos públicos que são muito marcadas e distintas, ainda que simétricas e complementares, como se vera com respeito a divulgação de noticias e denuncias de corrupção na Administração Publica.
Da parte dos oponentes do governo há o que chamaríamos de um “efeito narcotizante” nas denuncias de corrupção. É como se o "Denuncismo" estivesse tornando-se uma espécie de "ópio" para as classes médias e esclarecidas.Ha corrupção sim e sua magnitude e repercussões são avassaladoras; na...o se sabe dizer - ao menos não de maneira precisa... - se maior ou menor do que já se teve, a menos que nos também embarquemos na onda do "nunca antes na Historia deste pais!"
O aludido efeito narcotizante e o de que estamos nos "viciando" em coisas assim, ficamos adormecidos, aturdidos, alucinados, mas ainda assim não abandonamos esta forma de dependência psíquica (não química ou fisiológica, ao menos para a maioria...). Não conseguimos por mais que nos esforcemos. E como se todo um campo neural em nosso cérebro fosse ativado e alimentado por tais percepções e ao mesmo tempo em que ele nos excita ele nos torna impotentes. Mas a oposição, como eu tenho argumentado com outras pessoas aqui, narcotizou-se na pratica do "denuncismo" quase na mesma medida em que os situacionistas viciaram-se na apologética mais visceral.
Enquanto “denuncismo” vem a ser a vulgarização de um direito e um dever legitimo que assiste ao cidadão enquanto eleitor e contribuinte - a pratica da denuncia e da revelação de esquemas criminosos e lesivos ao Erário - que não deseja ver-se espoliado, a segunda não e mais do que uma acomodação dos momentâneos detentores do poder a seu atual status adquirido e um conjunto de desculpas padrão convenientemente mobilizado para dissimular a inevitável erosão do seu prestigio e legitimidade.
Estes últimos, contudo, tem a vantagem obvia de estarem pilotando um projeto político amplamente referendado pelas massas e somente isto. Dai a "razão" que neste momento, a meu entender, assiste a um Jose Dirceu (que não parece enfrentar tanta resistência assim no seio do lulopetismo) ao dizer que os adversários não tem sido propositivos como gostaríamos que fossem. Por outro lado, tem-se ecoando em toda a parte, o surrado mantra “Não foi a corrupção
que aumentou; o governo Lula é que tornou as investigações mais rigorosas e eficazes”. Um clichê ou meia-verdade quase goebbelsiana em seu conteúdo e forma, mas incrivelmente eficaz em suas repercussões na sociedade. Isto e o que chamaremos de comportamento apologético, ou “peleguista” (em suas variantes patronal, sindical, estudantil e confessional, como visto acima), uma das três síndromes que observamos na personalidade dos governistas.
Esta defesa cega e persistente do governo vem a ser uma contraparte do “moralismo” e do “idealismo constitucional” que se manifestam no campo oposto. O primeiro como uma vulgarização e absolutização dos temas éticos e da abordagem moral dos problemas da nação, não no sentido antigo do primado da “Filosofia Moral” sobre outros modos de ver o mundo. O segundo, seu desdobramento, vem a ser a necessidade também irrealista de se regenerar a nação e a republica por meio das normas legais e constitucionais, como se tudo que se passa na vida nacional e republicana pudesse ser subsumido ao “Vade Mecum”... O corolário de ambos é o já aludido e estéril denuncismo, o qual alimenta a apologética como em circulo vicioso.
Muito típico do lulopetismo, por outro lado (ao lado do comportamento apologético ou dissociativo em face de "ligações perigosas"), são o negacionismo, nas variadas formas do fatalismo, do comodismo, do escapismo e do ufanismo. A insistência dos adeptos deste estilo de pensamento em se dissorciarem de fatos e eventos negativos e/ou desabonadores traduz bem aquilo que certo intelectual socialista italiano nos anos 1930, com muita propriedade e conhecimento de causa, chamou de "transformismo". Esta recusa em assumir responsabilidades politicas ineludiveis, esta patologica aversão a riscos,... eis a marca comportamental mais vistosa e perene dos intelectuais lulopetistas, dos grupos organizados e das massas desorganizadas a quem dirigem seu discurso. Em conjunto, tais atitudes fazem a "metamorfose ambulante" do falecido Raul Seixas parecer uma brincadeira infantil e despretensiosa.
Assim como este apego visceral a uma apologética pessoal e partidária, obscurece sua visão, o comportamento negacionista, desdobramento do primeiro, explicita-se reiteradamente no debate publico, seja na mídia ou no Congresso Nacional. Muitos acomodam-se ao status-quo, outros crêem que sempre foi deste jeito e sempre teremos que conviver com o fantasma da corrupção em nossas instituições publicas, dadas as peculiaridades da nossa “cultura ibérica”. O comportamento gêmeo deste vem a ser a baixa propensidade ao risco, que se traduz em hesitação ou procrastinação de medidas e ações políticas no sentido de mitigar o problema, ressarcir o Erário e punir os envolvidos.
Ainda a respeito da tentativa de fazer um diagnostico “moralista” da política brasileira, o texto de Lamounier é claro, lúcido e preciso. Do mesmo modo como não há consenso sobre valores que possam fundamentar um padrão ético compartilhado por todos, não há porque nem como supor que tal consenso vá fazer a sociedade brasileira despertar de seu adormecimento e tampouco de uma hora para outra. Em suas palavras:
"Não há consenso fácil. É preciso tornear os valores e objetivos: defini-los de maneira precisa, dimensioná-los; eles têm que ser coerentes e realistas, uma vez que todo consenso é difícil. Consensos formados em nível abstratos são praticamente inúteis, pois ninguém saberá ao certo com o que concordou. Um objetivos específico e já em vias de amadurecimento na opinião pública seria, por exemplo, reduzir drasticamente o número de cargos de confiança na administração federal." (Bolívar Lamounier.
Corrupção: os porquês de nossa aparente passividade, e as saídas (III), 19.07.2011 - 21h00)
[...]
O imaginário político da maior parte da sociedade brasileira – da classe média escolarizada inclusive – abriga um número considerável de crenças francamente fantasiosas. A todo momento, encontramos alguém que acredita seriamente na hipótese de um “estalo” coletivo, uma súbita iluminação ética, ou um súbito esforço coletivo para “acabar com a corrupção”. Ora, isso não vai acontecer, ponto final.
As pessoas e os diferentes grupos sociais obviamente não têm os mesmos interesses; estes freqüentemente não são sequer compatíveis. Mas, atenção, a ética política não pressupõe um consenso entre todos, nem deve ter a aspiração a construí-lo como premissa. Temos de atuar dentro, não fora do mundo; a ética política é intra-, não extra-mundana. A quem quiser sair do mundo, eu só posso sugerir que vire eremita." (Bolívar Lamounier. Corrupção: os porquês de nossa aparente passividade, e as saídas (III), 19.07.2011 - 21h00)
A revalorização da política como esfera legitima é o que se acha em pauta na discussão e na pratica da ética e dos valores. Ela há muito foi abandonada por seus verdadeiros e legítimos interessados e estes não se limitam aos grupos organizados (as elites) e aos grupos desorganizados (as massas), quase todos hoje magnetizados pelo lulopetismo. As classes medias, as tradicionais e as emergentes, devem reocupar o seu lugar como pivot do processo político. E ela não o conseguira através da exibição destas reações estereotipadas aos problemas que se afiguram.
Da parte das outras classes sociais, sobretudo aquelas onde o apelo do lulopetismo alcançou maior amplitude e profundidade, como se viu, o desafio se afigura ainda maior, dado que tendo se tornado parcialmente infensas ao estilo de pensamento “demotucano” pelo efeito “narcotizante” do enquadramento nas instituições sociais acima citadas, terão também se tornado incapazes de distinguir entre o que é e o não que é uma maneira republicana de gerir o pais e a nação.
Em suma: tanto em um quanto no outro caso, substitui-se automaticamente, por meio de um conjunto de reações estereotipadas, uma causa de interesse mais abrangente por um discurso de origem circunscrita, mas que almeja atingir tal amplitude. Ou, inversamente, coloca-se um causa de abrangência circunscrita por um interesse mais geral. O fundamento moral da política, seu conteúdo ético substantivo, fica assim profunda e permanentemente vulnerabilizado.
A mensagem do texto do Lamounier, enfim, é clara: Vamos segurar a onda nesse nosso "idealismo constitucional" que já se tornou atávico. Vamos trazer nossa ética para este mundo, vamos secularizá-la. Não nos deixemos tomar pelo “moralismo”! Haja vista o fim que levou a "Lei da Ficha Limpa"...

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Não à repetição (Marina Silva)

As instituições públicas estão acima de interesses partidários e pessoais. Tal premissa -fundamental para a democracia- tem a concordância absoluta de todos, da sociedade à classe política.
O que explica, então, que o Brasil caia sempre na mesma armadilha? Por que os governos ficam reféns de grupos com baixa representatividade política e social em busca apenas dos dividendos que a máquina pública lhes oferece?
Passam-se décadas, mudam os governantes e isso parece se perpetuar. As práticas reveladas no Ministério dos Transportes e suas autarquias não surpreendem pela novidade, mas, sim, pela repetição. Vemos, mais uma vez, interesses políticos e eleitorais se sobrepondo aos interesses do Estado e da sociedade.
É o atraso na política corroendo e subvertendo instituições pelas quais a sociedade lutou, a duras penas, ao longo de muito tempo.
O TCU, o Ministério Público, a Controladoria-Geral da União e seus congêneres são fruto de longa demanda popular por ética e transparência.
Se não funcionam com rapidez e eficiência, precisam do empurrão de todos. As autoridades públicas precisam ser salvas delas mesmas por meio da transparência, dos mecanismos de controle e da punição real e em tempo razoável.
Vamos aceitar como normal a ideia do "ah, é assim mesmo" ou, pior, de que os governantes nada podem fazer para mudar porque seriam inviabilizados pela sua "base"?
Que certas práticas são tão enraizadas que é melhor deixar como está? Que os recursos podem ser distribuídos pelos caciques políticos, sob ameaças de retaliação contra o interesse coletivo?
A complexidade das relações entre o Executivo e o Legislativo e a necessidade de maioria parlamentar que garanta a governabilidade não legitimam os acertos e negociações fora das luzes da transparência e das leis.
A verdadeira base do governante, a única capaz de intimidar a "base" do atraso, é a sociedade, e ela só fica de mãos atadas quando esquece disso.
Cada vez que a presidente disser "não" aos interesses espúrios, merece apoio do povo e, tenho certeza, o terá de grande parte do próprio Congresso.
As soluções para enfrentar os problemas não são simples, o que não isenta a sociedade de continuar vigilante, pressionando permanentemente os atores públicos a se conduzirem de acordo com os princípios do Estado democrático.
A crise nos Transportes não é mais um caso de corrupção.
É emblemática, pode ser aquele momento que permite inflexão definitiva, que dá liga às iniciativas que clamam pela mudança. É só uma das manifestações da longa crise política que temos o dever de enfrentar. Na democracia, não há lugar para a passividade.

Em torno da indignação (Fernando Gabeira)

Muitas pessoas afirmam que a corrupção chegou a níveis intoleráveis. E algumas, como Juan Arias, editor do El País, perguntam por que os brasileiros não se indignam. Em vez de buscar as causas sociológicas e econômicas, tão debatidas nos artigos sobre o tema, procuro utilizar também a memória.

Os governos Juscelino Kubitschek e João Goulart eram acusados de corrupção. É possível até dizer que os oficiais da Aeronáutica que promoveram a Revolta de Aragarças achavam a corrupção intolerável e não entendiam por que os brasileiros não se indignavam. No período Goulart havia uma forte ligação entre sindicatos e governos. Movimentos independentes no setor só surgiram no fim da década de 1960, com as greves de Osasco e Contagem. Na época anterior à ditadura, como agora, as denúncias de corrupção parecem ser apenas um contraponto oposicionista e figuram como um episódio lateral ao impulso desenvolvimentista de JK ou ao projeto de reformas de base de Goulart.

O pensamento da esquerda no poder é semelhante. Para ela, a floresta é o desenvolvimento com distribuição de renda. A corrupção é apenas uma árvore torta que insistimos em denunciar. Nesse quadro, a História do Brasil contemporâneo seria circular, com as realizações se desdobrando e algumas forças, à margem, gritando contra a corrupção.

Muita coisa mudou. O projeto de desenvolvimento recheado de corrupção não é sustentável. Novos e poderosos instrumentos estão à disposição de brasileiros muito mais bem informados que no passado. Nem sempre é preciso ir às ruas: 50 pessoas em Nova Friburgo conseguiram se organizar para pressionar a Câmara por uma CPI independente. O governo tinha maioria, mas elas venceram. Minúscula exceção, numa cidade atingida pela tragédia.

Mas a verdade é que em outros campos há também resistência. É o caso da resistência contra o mais importante ator econômico do momento: a associação do governo com alguns empresários, fundos de pensão e o BNDES. Esse grande ator é percebido de forma fragmentária. Ora se esforçando para tornar viável a usina de Belo Monte, ora no varejo tentando fundir Pão de Açúcar e Carrefour, ora sendo rejeitado no seu progressismo ingênuo, como no projeto do trem-bala. Sua ação articulada nem sempre é percebida como a de um novo ator. Exceto pelos vizinhos latino-americanos, que o consideram - a julgar pelo seminário internacional realizado no iFHC - um elemento singular do capitalismo brasileiro. Apoiadas no BNDES, as empresas brasileiras tornam-se mais competitivas no exterior. Mas trazem a desconfiança como um efeito colateral.

Cheguei, num certo momento, a comparar Lula-Dilma com Putin-Medvedev. E o capitalismo dirigido pelo Estado como fator que aproximava as experiências de Brasil e Rússia. Mas o desenrolar da crise de 2008 foi diferente para os dois. A Rússia sofreu mais que o Brasil e a interpretou como sinal para modernizar algumas áreas, privatizando-as. O Brasil, como uma oportunidade para ampliar o papel do Estado.

Pode-se compreender a demanda de indignação. Mas o sistema político está dominado, há um ator econômico poderoso e o governo emergiu vitorioso das eleições. Não há desemprego de 40% entre os jovens, como na Espanha. Ainda assim, houve indignação em Teresópolis, revelada em inúmeras manifestações. O movimento esbarrou no próprio processo político, pois conseguiu uma CPI e ela foi controlada pelo governo. O que as pessoas decidiram? Continuar manifestando indignação ou voltar à carga no momento eleitoral, quando o sistema fica mais vulnerável? Optaram pela última alternativa. Na Espanha foi a proximidade das eleições que permitiu o avanço dos indignados, mesmo sem a pretensão de disputar cargos.

Parte dos brasileiros acha que a corrupção é um preço que se paga ao desenvolvimento. Um setor da esquerda não somente acha isso, como confere uma qualidade especial ao desvio de dinheiro para causas políticas: os fins justificando os meios. Não se pode esquecer que 45 milhões votaram na oposição depois de oito anos do mesmo governo. Não eram da UNE nem da CUT.

A corrupção no Ministério dos Transportes é bastante antiga. Às vezes ele muda de mãos, passa de um partido a outro. Para os que conhecem o processo político brasileiro, a notícia não foi surpresa. As denúncias de corrupção sucedem-se diariamente e não se resolvem dentro dos canais parlamentares. Se os eleitores se indignarem, ostensivamente, podem se transformar numa indignação ambulante. As próprias pessoas que pedem hoje que se indignem vão achá-las monótonas e repetitivas. Para que os que têm o potencial de se indignar, coloca-se a questão da oportunidade exata, do preciso emprego da energia. Navega-se num sistema político cada vez mais distante, tripulado por um gigantesco ator econômico e um crescimento com viés inclusivo. Quando o adversário é ao mesmo tempo indiferente, opaco e poderoso, a indignação social tem hora.

É um problema deixar de se indignar com uma corrupção que mata, como na saúde e nos transportes, e aniquila sonhos, como na educação. Mas também é um problema indignar-se e voltar para casa de mãos vazias.

A indignação na Espanha ocorreu num momento em que poderia crescer. Ainda assim, como não se voltou para a ocupação de espaço institucional na política, seus resultados estão em aberto. O caso de Teresópolis mostrou que sem uma contrapartida institucional as melhores aspirações se afogam no pântano do próprio sistema político. O que torna a questão mais complicada do que pura e simplesmente se indignar às vésperas das eleições. É necessário vencê-las ou, no mínimo, eleger uma oposição de verdade.

A pergunta de Juan Arias é legítima. Mas seria ilusório pensar numa resposta simples, como se houvesse no enigma uma espécie de bala de prata, uma descoberta que pusesse a indignação em movimento. Em processos complicados, uma das respostas mais sábias é a do comercial de televisão: Keep walking.

Jornalista
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

segunda-feira, 18 de julho de 2011

O transbordamento verde (Alfredo Sirkis)

O nosso transbordamento significa libertar-se de luta interna e canalizar energias para os sonhos que afloraram na campanha de Marina Silva

A crise do Partido Verde nos remete a uma reflexão mais profunda sobre o inglório destino dos partidos numa vida política dominada pela cultura cartorial-clientelista.
Aquele partido que se propunha portador de novas ideias e de novas formas de fazer política ora naufraga, ingloriamente, numa tragédia de erros quase caricatural, mas altamente emblemática daquilo que há de errado e anacrônico no fazer política brasileiro.
Embora possa haver entre nós nuances em relação ao "timing" da coisa, sou profundamente solidário com o gesto de Marina Silva em resposta ao tratamento ignóbil que recebeu por parte dos burocratas que controlam o partido como cartório de mediocridades patenteadas.
Negaram aquele mínimo de oxigênio democrático à coerência entre o funcionamento interno do partido e as suas ideias generosas para a sociedade.
Lidamos com três círculos sociais diferentes. O eleitorado e a opinião verde na sociedade, que não são todos os 20 milhões de votos de Marina Silva na eleição de 2010, mas parte considerável que se identifica com ecologia, sustentabilidade e cidadania.
O segundo é o dos militantes mobilizados ou mobilizáveis pela causa verde, suas lutas e projetos, que participam sem pertencer a uma estrutura partidária regular.
O terceiro -e minúsculo- circulo é aquele da burocracia partidária, da "copa & cozinha" do PV, em que se enfrentam idealismo e clientelismo, que optou pelo atraso com requintes de cegueira política suicida. É o espaço do cartório eleitoral, das capitanias hereditárias, da presidência por tempo indeterminado, quiçá vitalícia.
Nosso enfrentamento ocorreu nesse último e minúsculo círculo, mas que aparece na mídia e no establishment político como o institucional, o que vale, não obstante a patética falta de representatividade eleitoral ou de conteúdo.
Nossa resposta será esquecê-los em sua redoma, abandoná-los aos seus conchavos e partir em busca daqueles dois outros círculos maiores: o dos ativistas das causas verdes e de cidadania e o dos eleitores que confiaram a Marina Silva seus votos não apenas como uma personalidade carismática, mas como portadora de esperança para uma política diferenciada.
Nosso movimento dos verdes e da cidadania vai se estruturar capilarmente em todo o país, a partir de bairros, cidades, regiões, locais de trabalho, estudo, congregação, movimentos e lutas afins, com apoio dos meios digitais hoje disponíveis, das estruturas em rede, democráticas e inclusivas, que a maioria da cúpula do PV negou-se tão enfaticamente a experimentar.
Não será, a princípio, um partido político, pois formar um partido agora, apressadamente, seria se expor a mais do mesmo.
Não desejamos caracterizar nossa ação como mais um "racha" típico de partido, embora possa assim parecer. Foi mais um transbordamento de uma estrutura apequenada, que não soube nem quis assimilar o potencial extraordinário gerado pelos 20 milhões de votos conquistados em outubro de 2010.
Nosso movimento continuará a ajudar e a apoiar quadros e candidaturas, no PV e em outros partidos, com os quais possamos estabelecer vínculos programáticos claros e laços de confiança e afinidade.
Nosso transbordamento significa simplesmente libertar-se de uma luta interna desgastante, sem perspectivas, para poder canalizar energias para os sonhos, os propósitos e as expectativas que afloraram tão intensamente na campanha de Marina Silva, no ano passado, e dos quais não podemos descuidar ao focar no cartório em detrimento da sociedade. Pois rumo a ela transbordamos.

ALFREDO SIRKIS, 60, jornalista e escritor, é deputado federal pelo PV-RJ e autor dos livros "O Efeito Marina" e "Os Carbonários", entre outras obras.

Será que a opção verde amarelou? (Renato Janine Ribeiro)

Não lembro caso de relação custo-benefício tão boa quanto a campanha eleitoral de Marina Silva, em 2010. Dispondo só de um partido pequeno na Câmara de Deputados, o que lhe dava um minuto e meio de televisão, atingiu 20% dos votos para a Presidência. Quer dizer que, tendo um tempo de propaganda baseado em 2,5% dos deputados eleitos em 2006, Marina multiplicou por oito esse investimento, em retorno de votos. Seu output rendeu oito por um... Já os seus adversários, Dilma Rousseff e José Serra, tiveram retorno bem menor, inferior mesmo a um. E Marina chegou a isso, não mercê das máquinas governamentais federal e estaduais, mas pelo entusiasmo e convicção de seus simpatizantes. Isso é irônico, porque o entusiasmo foi por 20 anos a marca de um PT sem dinheiro para fazer campanhas, e o PSDB nasceu com convicção de combater o fisiologismo do PMDB; mas, hoje, ambos apostam no dinheiro e nas alianças com os ex-inimigos.

Um sucesso, a campanha de Marina. Se tivemos segundo turno, foi porque um quinto dos brasileiros escolheu o verde. Muito se discutiu se Marina deveria ter apoiado um dos finalistas, no segundo turno. Acertou em não apoiar nenhum. Se seu empenho na causa social a levasse a apoiar Dilma, ou seus eleitores de classe média a conduzissem a Serra, ela se tornaria uma linha auxiliar, pessoalmente mais importante que o PCdoB para Dilma ou o DEM e o PPS para Serra - mas, mesmo assim, auxiliar. No entanto, um mês depois da eleição, já não se mencionava sua votação. Ficou, como oposição, a tradicional. Na Câmara, o PV passou de 13 para 14 eleitos, quase nada. Basta lembrar que no pleito de 2006, sem onda Marina, o PV subira de cinco para 13 deputados federais.

Um grande sucesso mas que deixou tudo como estava

Será que o verde amarelou? O PV nada fez para manter Marina nos seus quadros - longe disso. Compreendo que, para os veteranos do partido, o fato de uma enorme votação presidencial não se traduzir em assentos no Congresso tenha sido uma decepção. Entendo também que não quisessem dar a uma novata a liderança do partido. Mas o rumo tomado pelo PV é quase um suicídio. Era o único partido do qual podíamos dizer que representava ideias novas.

Como lembra Claudio Couto, o PSOL pode ser outro partido puro nas suas ideias, mas estas não são novas. Os demais partidos estão comprometidos demais com a defesa de interesses - tanto os dois grandes blocos que se alternam no poder, quanto as agremiações que apoiam ora um, ora outro.

Ora, se o PV opta pela Realpolitik, tende a se tornar uma pequena linha auxiliar do PSDB, participando de seus governos estaduais. Imaginemos então um PT que ejetasse Lula, ou um PSDB que excluísse seus maiores nomes. Eis o PV, hoje. Será difícil ele crescer. É claro que, se Gabeira se eleger prefeito no Rio, em 2012, com o apoio tucano, e o partido de Kassab levar à prefeitura de São Paulo o verde Eduardo Jorge - dois ex-petistas que hoje têm apoio mais dos liberais que da esquerda - as coisas podem melhorar. São dois nomes bons ou ótimos. Mas, salvo surpresas, o PV está em viés de desprestígio.

E Marina? Nos nove meses após seu sucesso, perdeu a chance de conservar uma forte presença política. Atuou, sim, na votação do Código Florestal. Mas fez pouco mais que isso. O ideal verde, hoje, é bem mais que a defesa das florestas. Ele é um estilo, altamente ético, de vida. Retoma a preocupação moral que norteou a criação do PT e do PSDB, mas vai além. O PT queria tornar o Brasil ético, entendendo por isso a justiça social. O PSDB pretendia tornar ético o país, significando com isso o fim da corrupção ou pelo menos do fisiologismo. Já a linha verde quer as duas metas e também um desenvolvimento econômico com valor ético planetário. Não será contra o capitalismo, como a maioria do PT já foi, nem quererá o desenvolvimento mesmo a alto custo, como nossos dois grandes partidos, mas defenderá um desenvolvimento capitalista não predatório. Isso precisa ser inventado. Seu ideal é audacioso: o exemplo é o da água que a indústria devolve ao rio, tão limpa como entrou. Quer dizer: que o uso humano dos recursos planetários lhes cause o menor dano possível e, com o avanço da ciência, um dia até os melhore. Estamos a mil léguas do uso de combustíveis fósseis, da predação dos minérios, do aquecimento global. É uma utopia, mas com forte base na ciência - e, o que é raro na história das utopias, nas ciências da vida mais que nas ciências humanas.

Esse projeto não se choca diretamente com as ideologias. Não divide as pessoas em direita e esquerda, em mundo do trabalho e do capital, em movimentos socialistas e liberais. Por isso, é um movimento simpático. Mas é exigente. Requer uma mudança radical do nosso trato com a natureza e também com o ser humano. Para isso, o que falta? A tradução da linguagem científica, que é um de seus pontos fortes, em convicção moral. Disse Al Gore: nos Estados Unidos as grandes causas políticas só triunfaram ao se converter em causas espirituais - a abolição da escravatura, o fim da segregação racial e, espera-se, a ecologia. Para traduzir a ciência e a política em valor ético, tivemos Gabeira, com influência importante mas socialmente limitada, e Marina Silva, com o impacto que as urnas revelaram. Mas é esse trabalho de conquista das mentes, bem maior que a conquista de uma secretaria, que poderá levar a uma mudança significativa, talvez a maior em nossas vidas. Depende ele de uma liderança pessoal? Como se criará uma nova mentalidade? Quando surgiu o PT, lembro uma amiga que dizia pertencer a um outro PT, o "Partido da Terra", o planeta. Pois é.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

FONTE: VALOR ECONÔMICO